quinta-feira, 20 de maio de 2010


O Outro

Tudo tão negro à volta. As pessoas que passam e me vêem, tanto me vêem que me sabem mortal, que me sabem infame, tão aquém do que podia ser, de tudo o que devia ser, tão vergonhosamente nada. Todos os que passam parecem gritar-me a minha inferioridade, todos me olham pelo canto do olho. Quero fechar-me em casa, sozinha, sem mundo que me envergonhe por ser diminuta, por ser um qualquer resto do que fui. Será que fui? Um vestígio, mastigado e cuspido, de algo irreconhecível. Tudo parece tão claro lá fora, agora que o vejo de dentro. Tudo ferozmente brilhante nos olhos que se esgueiram para baixo enquanto rúbea se torna a face. Fechar todas as persianas, já! Fechar tudo, trancar-me aqui dentro a sete chaves e engoli-las depois. Passos. Parece que me perseguem esses esquadrões da morte que me mostram o quanto tenho de fraco, o quanto tenho de torpe, o quanto tenho de nada. Passos que sei que vêm de dentro de casa, mas não os vejo, não há corpos, só os passos cavalgando por dentro, cada vez mais alto, cada vez mais alto... Param. Tranquei-me no quarto, já não me apanham. O que se passa comigo? Não há aqui ninguém, não há, mera ilusão, só ilusão! E um medo tão grande deste medo que sinto, este medo que são todas as estórias que ouvi e me encheram a alma até rebentar, todas as outras que vivi e se esvaem por entre meus dedos ou demoram até me queimar. Aqui ninguém, e no entanto parece que caras indefiníveis se descolam das paredes. Fecho os olhos, tranco-me aqui dentro, dentro de mim. Assim me dupliquei. Um clone de mim vive a vida que deixei de ter. Será que também tem medo? Espreito para baixo da cama, com medo de me ver por lá, olhar o abismo e ele responder. Olhar, e o abismo ser eu. Assim o sei, tal como o soube o poeta: "se eu quisesse enlouquecia...".
 
Virginia Machado

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