domingo, 30 de setembro de 2012
Provocatio
A ARTE DA VIDA
Acordar cedo num dia de chuva e ir ter contigo ao hotel... Percorrer o teu corpo com o olhar e fixar-me nos teus olhos que me despem a toda a hora e em qualquer lugar.
Carmo Miranda Machado
sábado, 29 de setembro de 2012
Crónica Benzodiazepina
O paraíso
Depois de ter acabado de ler "Cruising Paradise", do Shepard, dei comigo a ler "El Paraíso en la Outra Esquina", do Vargas Llosa, sobre as vidas aventureiras e nada tranquilas de Paul Gaugin e da sua avó, Flora. As personagens de Shepard andam pela América, mesmo a América. Lá para dentro, para o sul castigador, que é imenso e está cheio de ar para respirar. É uma travessia pelo paraíso, para todos e para os 'agentes do mal', que os há e muitos.
Já no livro do peruano, o paraíso dificilmente sai do título. A não ser nos raros momentos em que Koke se liberta do homem civilizado...
Calharam-me estes dois, um atrás do outro. E é isso que tem a sua graça, porque eu não sou de escolher livros com 'paraíso' no título. E não é comum isto acontecer: a mim ou seja a quem for. Calharam-me e isso é uma coincidência. Um desconcerto, até.
Estava a atravessar a Sidónio Pais, em direcção às sombras das árvores maravilhosas que moram no alto do Parque Eduardo VII, quando dei pela repetição das palavras nos títulos dos dois livros. Já depois de os ter lido!
O que também não deixa de ser curioso logo ali, à entrada dos meus quinze minutos diários de paraíso.
Iolanda Bárria
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
A CAGADA DE BAIXO - BLOGONOVELA EM CINCO EPISÓDIOS (III)
A CAGADA DE BAIXO
III
O garoto, o Fábio, era um pouco lerdo. Tinha problemas de aprendizagem na escola, mas se fosse para a
malandragem aprendia logo, afirmava a mãe. Parece que o álcool
ancestral lhe sitiou os genes. Não desenvolve em raciocínio, é
pouco apto fisicamente, pouco sociável, obeso. Os miúdos lá da
escola bem o chamavam: “Ó gordo, anda brincar com a gente!”
Enquanto ele preferia ficar no seu recato, armado de balde e pá a
revolver a areia em volta da barraca. Já achara um anel de ouro e
várias moedas amarelas nessas obras de Verão. Tinha um emepê três, um emepê quatro,
queria um aipode e um aipede. O pê-cê estava bom, dera-o um senhor ao
pai, um doutor a quem o Esteves fizera umas obras de restauro na
casa. O homem não tinha espaço e preferia trabalhar no portátil.
Gostava de praia, gostava de areia, de molhar os pés na água e até
de se aventurar com uma prancha de bodibórde apanhando boleia da
ressaca das ondas que iam morrer no areal da praia.
O cão, o Cherreque, era tão feio e rafeiro como os donos: estava sempre à espera de uma brecha para se atirar a qualquer pedaço descuidado, aproveitava qualquer desatenção dos veraneantes para surripiar uma sandes, um naco de pão, ou uma “bola de berlim”. O “furto de formigueiro” era a sua especialidade e por mais comida que houvesse ingerido nada lhe sabia tão bem como o que subtraía aos incautos. Melhor que isso só virar um caixote de lixo e esventrar os sacos de plástico em busca de aparas, disto ou daquilo. Em resultado dessas incursões o cão sofria de desarranjos intestinais, cagava por todo o lado, escolhendo por regra os lugares circundantes à barraca. Era sempre a mesma merda. Alguém tinha de cair nela mais tarde ou mais cedo. Foi naquela tarde do último dia de férias.
O cão, o Cherreque, era tão feio e rafeiro como os donos: estava sempre à espera de uma brecha para se atirar a qualquer pedaço descuidado, aproveitava qualquer desatenção dos veraneantes para surripiar uma sandes, um naco de pão, ou uma “bola de berlim”. O “furto de formigueiro” era a sua especialidade e por mais comida que houvesse ingerido nada lhe sabia tão bem como o que subtraía aos incautos. Melhor que isso só virar um caixote de lixo e esventrar os sacos de plástico em busca de aparas, disto ou daquilo. Em resultado dessas incursões o cão sofria de desarranjos intestinais, cagava por todo o lado, escolhendo por regra os lugares circundantes à barraca. Era sempre a mesma merda. Alguém tinha de cair nela mais tarde ou mais cedo. Foi naquela tarde do último dia de férias.
Joshua Magellan
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
Tudo o que eu sonhei contigo
Sonhei contigo. Para ser sincero, não
sei se sonhei ou se sonhei que sonhei.
Gosto de ti, da imagem que fiz, e contra mim falo. Tu não gostas de mim. Não te culpo. Poderia lá culpar a fórmula que me apaixonou. Apenas não encaixo. Desencontrei-me de ti, quando te distraíste com outro homem. Desencontrei-me de todas as mulheres que me amaram, distraído com todas as mulheres enamoradas de outros homens, por quem sonhei estar apaixonado.
- Mas eu faço-te perguntas...!?
Gosto de ti, da imagem que fiz, e contra mim falo. Tu não gostas de mim. Não te culpo. Poderia lá culpar a fórmula que me apaixonou. Apenas não encaixo. Desencontrei-me de ti, quando te distraíste com outro homem. Desencontrei-me de todas as mulheres que me amaram, distraído com todas as mulheres enamoradas de outros homens, por quem sonhei estar apaixonado.
- Mas eu faço-te perguntas...!?
Não as ouço! Não me interessam!
DuArte
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Um mundo feliz
Não quero ter o tempo todo
completamente ocupado. Quero deixar espaço para o não planeado,
para me deixar surpreender, para mudanças, para me perder, para me
reencontrar...
No fundo eu quero o MUNDO e quero
continuar inebriada pela vida, espantada com ela, arriscaria mesmo
dizer FELIZ porque sim! Não é nada palpável, não é nada
especial. Simplesmente sinto-me bem, com o coração em paz, sem
mágoas e com vontade de viver muito.
Missanga
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Palavras Versadas
SIMMS
Fui suicidado
Sim...
mas quero mais.
é o apelo à dúvida e à dívida dividida da morte.
essa sorte mortífera de azares vividos unicamente nos elevadores das nuvens.
que tenho eu com isso, perguntas.
provavelmente nada.
apenas penas que nadam nas correntes criogenadas do cheiro impune da chama
Sugo.
(portanto nada tenho)
há cartas e cartas. de amor. de suicídio. de suicidados. de negócios. cartas.e cartas. sinais. mensagens. vidas. mortes. poetas concretos, discretos, abjectos, semideuses e comuns na sua manipulação putrefacta.
a minha carta é simples
mediocremente esgalhada
nas propriedades simples
de um desgosto de amor;
nada que nenhum amante te não tenha feito ou um poeta cru te tenha lambido
falo do ritmo dos silêncios,
da orgasmática dos ecos, das transfusões sudacionais,
entre o diapasão no cimento e o sangue no biberão
toda a magnitude do esquecimento reside no autoconhecimento,
o cimento sarcástico do ventre que se esconde nos horários e falsas obrigações
;
estarei suicidado quando me leres
nas ilações dos juízes có(s)micos
no teu tricotar umbilical
entre a lágrima e o riso genuíno
;
estarei suicidado quando me leres
;
posso
e devo dizer
que amei
que amei o mundo
o fundo
o disposto
o desgosto
a infâmia
a elevação
abismos
putas
altares
incensos
pulsações
tectos
doenças
putrefacções
dejectos
ilações
amei amante sem amar com o amor que sabia e mesmo que o sentisse queria dar
amei incondicionalmente a vida.
mas a vida serei eu e essas questões de merda dos pseudopoetas?
amei.
não deu.
fui suicidado.
querem vós vozes que acredite no amor? ou na vida?
amei incondicionalmente a vida;
a minha carta é simples
mediocremente esgalhada
nas propriedades simples
de um desgosto pela vida;
ser suicidado deve dar direito a tentar outra vez, deuses vossos?
a perguntas parvas responde-se poeticamente:
suicidado trabalharei os nós das forcas,
com sorrisos adultos e apóstolos escondidos de deus
;
estarei suicidado quando me ler
domingo, 23 de setembro de 2012
sábado, 22 de setembro de 2012
Crónica Benzodiazepina
Nostalgia de Outono
O cheiro das castanhas assadas continua a impregnar o ar e os nossos sentidos nos fins de tarde dourados de Outono. Ainda são “quentes e boas” na minha memória mas deixaram de o ser nos pregões extintos dos vendedores. “Um cartuxo de castanhas, por favor.”, e já não me chega às mãos uma embalagem improvisada nas páginas de uma velha lista telefónica. “Não é higiénico.”, dizem os senhores de Bruxelas. E nós, nós obedecemos aos senhores de Bruxelas. As castanhas ainda são lusas, vindas de um qualquer souto centenário que teima em escapar incólume às chamas que, ano após ano, consomem Portugal.
Sinto o cheiro quente das castanhas assadas na rua. Mais à frente está o vendedor. O fumo denuncia-o. Fecho os olhos e num instante regresso aos dias leves da adolescência. “Um cartuxo, por favor”, peço com um sorriso enquanto deliberadamente deixo cair o estojo junto de um homem elegante que aguarda a sua vez. “É velho para ti”, sussurra uma amiga. O homem entrega-me o estojo e eu agradeço-lhe com um sorriso rasgado e um olhar coquete. Pago ao vendedor e respondo serenamente à minha amiga: “É homem!”. Não expliquei mais nada. Nem sabia. Praticávamos por instinto a arte que acabáramos de descobrir.
Missanga
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
A CAGADA DE BAIXO - BLOGONOVELA EM CINCO EPISÓDIOS (II)
A CAGADA DE BAIXO
II
A filha do Sousa – a Cecília – mãe do Fábio e mulher do Esteves, era funcionária da Junta de Freguesia de Cagada de Cima, o senhor Passos devia uns favorzitos ao Sousa e lá se arrumou um empregozito de recepcionista na sede da Junta. Tinha dias de receber mais de vinte telefonemas e de atender uma dúzia de pessoas. Já para não falar da trabalheira que eram as eleições. Para entender aquilo tudo que lhe pediam era preciso ter um curso. Tirou vários. Ela aprendia bem, mas esquecia-se depressa. O próprio professor da escola primária lho dizia. Gostava de praia. A praia era o tempo de poder sacudir o mofo de si e dos seus pensamentos. Não o dizia à boca cheia, mas confessava-o às amigas: “o meu Esteves era tão jeitoso e depois ficou assim...”. Ela era casada, mas não era cega: não deixou de reparar naquele jovem másculo, de se fixar no volume aparente dos calções, de pensar que o rapaz devia ter um pénis bem avantajado; de mirar o vizinho da barraca que dormia descuidadamente com os tomates à mostra – gostava quando ele punha os óculos para ler o sol e um jornal espesso. Tinha um ar de sábio que lhe complicava com a libido; de mirar com deleite o grupo de jovens efebos que jogavam futebol e diziam caralhadas de cada vez que falhavam uma bola – ao pressentir aquelas doses de testosterona sentia um arrepio –, vê-los suados e a soltar palavrões, acentuava a virilidade que lhe atacava as defesas. Em suma, a sua praia era esta, ali estava na sua praia.
Do Tó Esteves, canalizador, homem de biscates, sempre “ao gancho” e ao que possa deitar a mão – pouco se pode dizer. Bebamos um copo com ele, por ele. É disso que ele gosta, de um bom copo num qualquer bar de praia com vista para a mulher e para o garoto. Não é de piropos nem de falsidades, à mulher só mente em matéria de litros bebidos. Vai deitando o olho às "gajas", mas sem apetites que não sejam o de mais um copinho. Com a crise, voltou ao “palhinhas”, agora de plástico branco, símbolo indelével da diáspora portuguesa na ida para além-pirinéus em busca de um vinho melhor na vida. Gosta de praia, gosta do que mulher o ensina a gostar, para além dos velhos prazeres aprendidos na aldeia. Na praia não falta quem goste de um bom tintol e de um disputado jogo de “Sueca”. É da Pampilhosa da Serra: nasceu em berço de sequeiro no cimo de uma lapa, nunca se deu com os ares do mar.
Joshua Magellan
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
Pureza e Maria da Graça
Sempre respirou com dificuldade. Um ar pesado e espesso que entra e sai, empurrado. Não chega a ser um som, mas vai e vem em crescendo e é um exército de martelos no cérebro de quem a ouve. Cinco, dez minutos que sejam ao seu lado e já só existe aquilo. A batalha da Pureza com o ar. Que todos ouvem, mas ela desconhece.
Curiosamente, não é a única. De todas a mais próxima, Maria da Graça diz que nunca deu por nada!
Iolanda Bárria
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Ensaio da lua quando deita
Mingua tardia no tempo dos homens, plana em céu aberto soberana, lúcida e leve. É pleno satélite a girar por seres alegres, bola brinquedo ou brinco de pérola. Sua pureza espelha fases, frases sem cê cedilhado, faces. A lua é noviça inteira, inteiramente contemplada. Da terra, líquida, vê-la é passear sentimentos em água mergulhados.
Mingua tardia no tempo dos homens, plana em céu aberto soberana, lúcida e leve. É pleno satélite a girar por seres alegres, bola brinquedo ou brinco de pérola. Sua pureza espelha fases, frases sem cê cedilhado, faces. A lua é noviça inteira, inteiramente contemplada. Da terra, líquida, vê-la é passear sentimentos em água mergulhados.
Manuela Barreto (Brasil)
terça-feira, 18 de setembro de 2012
Palavras Versadas
CINDERELA
cinderela na rua do mundo.
doces olhos vezes baixinho.
a escrita sobe pelas escadas.
as páginas são sempre a próxima
página.
todas as pessoas estão no lado direito
das suas opções.
o corpo já não contém cinderela
na rua do mundo.
há pontos do meio em forma
de poesia inglesa.
as pessoas salvaguardam o seu
património.
desaparecem palavras belas daqui.
é meia-noite mas há muito
que anoiteceu.
a neurose intelectual está diante
do meu último capítulo.
Sylvia Beirute
domingo, 16 de setembro de 2012
Provocatio
Paradigma
O que é preciso mudar para mudar um paradigma?
É contabilizável?
De que nasce um paradigma? Como desaparece?
Como sabemos, com certeza, que entramos num novo paradigma?
Iolanda Bárria
O que é preciso mudar para mudar um paradigma?
É contabilizável?
De que nasce um paradigma? Como desaparece?
Como sabemos, com certeza, que entramos num novo paradigma?
Iolanda Bárria
sábado, 15 de setembro de 2012
Crónica Benzodiazepina
É mentira
Há pessoas que mentem compulsivamente
e fazem-no com a mesma naturalidade com que respiram. De entre estas
há os bons mentirosos, aqueles que constroem uma estória e dizem
exactamente a mesma mentira vezes a fio, sem nunca se enganarem. E há
os maus mentirosos que se traem a si mesmos na primeira oportunidade,
incapazes de manter a mentira e muitas vezes sendo os únicos a não
darem por isso.
Os restantes, os que não mentem
compulsivamente, mentem de vez em quando, na maioria das vezes por
alguma espécie de necessidade momentânea.
Nas raras ocasiões em que menti, além
da mentira adicionei toda a espécie de justificações para que a
mentira fosse efectivamente convincente. A última vez que o fiz, o
visado disse-me simplesmente que não precisava de justificar nada.
Só aí percebi que se não estivesse a mentir nunca me passaria pela
cabeça justificar o que quer que fosse. Por ser verdadeira, a minha
palavra bastaria.
Desde então tenho, quase
inconscientemente, prestado mais atenção às palavras que se dizem.
E é um facto incontestável. Normalmente, atrás de uma mentira vem
um rol não solicitado de justificações que a denunciam.
Missanga
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
A CAGADA DE BAIXO - BLOGONOVELA EM CINCO EPISÓDIOS (I)
A CAGADA DE BAIXO
I
Trabalhei em
Agosto. Foi um mês produtivo. No entanto, não gosto de Agosto, fico
a contragosto. Nem de Julho: muito calor, muita gente nas praias. Por
isso, este ano, mais uma vez, fiz férias em Setembro e fugi para
sul, na procura de um lugar à beira do mar. Adoro praia, praias.
Esta sim, a praia é a minha praia. Ir à praia e ficar do lado de
fora de uma barraca de pano, daquele pano às riscas, aproveitando a
sombra dos outros. Um pano alegre para um verão alegre.
Ora, estava eu, numa praia alegre cheia de pessoas ociosas, a curtir a minha alegria à sombra dos panos riscados da vizinhança, quando me cheirou a merda. Tinha-me sentado em cima dela...
Antes de mais, convém explicar que, às tardes, a barraca de riscas alegres era habitada por uma família inteira, a qual vos vou apresentar, de cabo a rabo:
O cabo Sousa, o avô, o senhor Sousa, era reformado da GNR, tinha sido casado e agora era viúvo. Um eterno admirador do "senhor professor" e da “brigada do reumático”, limitava-se a defender os valores do “tempo da outra senhora”, do tal “Estado Novo” – que acabou por aluir já em muito mau estado. Votou no "senhor professor" vezes sem conta; gastou mais cem euros em telefonemas para o eleger – mas nunca percebeu porque lhe chamavam bota-de-elástico. Gostava de ir praia. Ver as “gajas” nuas, como gostava de dizer com um sorriso malicioso, era um dos poucos prazeres que concedia a si próprio desde que a sua falecida Alice se finou de ataque cardíaco durante um desses calores da menopausa.
Ora, estava eu, numa praia alegre cheia de pessoas ociosas, a curtir a minha alegria à sombra dos panos riscados da vizinhança, quando me cheirou a merda. Tinha-me sentado em cima dela...
Antes de mais, convém explicar que, às tardes, a barraca de riscas alegres era habitada por uma família inteira, a qual vos vou apresentar, de cabo a rabo:
O cabo Sousa, o avô, o senhor Sousa, era reformado da GNR, tinha sido casado e agora era viúvo. Um eterno admirador do "senhor professor" e da “brigada do reumático”, limitava-se a defender os valores do “tempo da outra senhora”, do tal “Estado Novo” – que acabou por aluir já em muito mau estado. Votou no "senhor professor" vezes sem conta; gastou mais cem euros em telefonemas para o eleger – mas nunca percebeu porque lhe chamavam bota-de-elástico. Gostava de ir praia. Ver as “gajas” nuas, como gostava de dizer com um sorriso malicioso, era um dos poucos prazeres que concedia a si próprio desde que a sua falecida Alice se finou de ataque cardíaco durante um desses calores da menopausa.
Joshua Magellan
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Porque escrevo?
Um dia percebi que a maior parte das pessoas com quem falava não percebiam o que eu lhes dizia. Nesse dia deixei de me enervar e passei a dizer menos coisas para não ter de observar expressões patéticas. Por isso escrevo. Porque as palavras, por mais insignificantes que sejam, têm a capacidade de limpar a alma, de clarificar... E o papel não nos observa como se fossemos loucos.
Porque há um limite para tudo, até para a humilhação, como diz Inês Pedrosa: "as cartas de amor escrevem-se sempre à noite e deixam-se de molho, num bom caudal de lágrimas, até à manhã seguinte. Depois relêem-se e, infelizmente, rasgam-se."
Carmo Miranda Machado
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
Pensamentos que falam
Um texto nada é sem alguém que o escreva, sem alguém que o leia. Ele não existe além do pensamento. Inventado e logo morto, à espera que a mente o reinvente, noutros olhos, noutro parecer. Nasce e morre tantas vezes, sempre que abro ou fecho um livro, de cada vez que te lembras ou esqueces alguém.
Um texto nada é sem alguém que o escreva, sem alguém que o leia. Ele não existe além do pensamento. Inventado e logo morto, à espera que a mente o reinvente, noutros olhos, noutro parecer. Nasce e morre tantas vezes, sempre que abro ou fecho um livro, de cada vez que te lembras ou esqueces alguém.
Os textos nunca chegam a sair de
dentro. Afloram a periferia, de boca em boca, olhos nos olhos, para
serem de novo engolidos na abstracção.
Talvez por isso não façam sentido os
direitos de autor, as ideias patenteadas, a sabedoria pessoal. A
ideia de que é possível separar uma parte do todo. O efeito da
Causa.
Um texto nunca se emancipará, coitado,
por mais que tente. Podemos acreditar que sim, e isso é tudo o que
ele necessita para pensar que existe. Pensar que andamos por aí.
DuArte
terça-feira, 11 de setembro de 2012
Palavras Versadas
segundo esquerdo
fecho os olhos
— ninguém em redor para me ouvir
chorar.
transformei numa casa impenetrável as
palavras mais silenciosas
que encontrei pelo caminho
ou que me escolheram
abrindo-me
portões pesados
rangendo o seu cancro de metais
brilhantes
incandescente
solidificados numa sebe áspera e
escura
uma fome opaca
de tão espessa impossível de se ouvir
menos ainda ver para dentro
agora paro,
paro de sonhar com ruas a que não
pertenço
paro de inventar vizinhos com vista
para o coração em ruínas
assumo finalmente o sangue a entupir
o escoamento do terraço
assumo as vertigens da loucura
panorâmica
o desespero imóvel da vida
paro de chorar
e admito
que no lugar que habito não existem
áreas comuns
o meu prédio é a solidão
segundo esquerdo
Renato Filipe Cardoso
domingo, 9 de setembro de 2012
sábado, 8 de setembro de 2012
Crónica Benzodiazepina
Patchwork
A minha vida - se calhar como todas as vidas - é feita de
retalhos, um patchwork nem sempre perfeito mas repleto de momentos
que certamente me dão muitas razões para sorrir.
Pequenos almoços de nan e laci em terras da Índia, as ruelas de
Udaipur atravessadas por elefantes, as cores e cheiros de Jaipur, o
mistério do Ganges em Varanasi, o Outono em Londres, deambular pelos
mercados de Portobello e Camdem, percorrer as ruas de Oxford, entrar
nas suas muitas livrarias, ver teatro em Stratford-Upon-Avon,
perder-me em Nova Iorque, ver nevar no Central park, horas perdidas
em Manhattan, o fim do ano no Hogmanay de Edimburgo com muitos kilts
à minha volta e onde a tradição ainda é o que era (nada por
debaixo dos kilts), as danças índias na Cidade do México, o sol do
Olodum em São Salvador da Baía, a beleza estonteante do Rio de
Janeiro, as pontes de Praga, os bares e música cigana de Buda e de
Peste, os bombons de chocolate Mozart de Viena de Aústria, a música
de Salzburg, as gentes de Cuba e os seus sorrisos, um café na
Bodeguita del Medio em Havana, os cachimbos de água fumados no
Cairo, o Khan Al Kha-lili, o deserto de Siwa, a biblioteca de
Alexandria, atravessar o Atlas de carro em Marrocos, jantar por 50
cêntimos na praça Jam Al Fna em Marrakesh, perder-me na medina de
Fes. Fazer um passeio de bibicleta em Amesterdão, o ferragosto na Sicília,
uma "spaguetada" com uma família siciliana, percorrer os canais de
Veneza a ouvir a banda sonora do filme "O Piano", uma bebida numa
esplanada da praça S. Marcos, conduzir em Nápoles, o Coliseu de
Roma, a Torre de Pizza, as ruínas de Pompeia, o mar revolto de
Génova, a arte pelas ruas em Barcelona, os canais de Bruges, as
ilhas gregas, compras em Atenas, as praias do Mar das Caraíbas, o
Oceano Pacífico ou o Índico... banhar-me em Saona e não querer
voltar, percorrer de barco os locais das filmagens do "Platoon", um
hamam na Turquia, o "Hotel Pêra Palas" e o quarto de Agatha Christie,
navegar rios e canais na selva silenciosa da Costa Rica, ver os
navios passar o Canal do Panamá, a colorida Sidi bou Said na Tunísia
e Palolem, sempre sempre Palolem...
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
TIBI - BLOGONOVELA EM CINCO EPISÓDIOS (V)
TIBI, O BARBEIRO DA CARVALHOSA
V
Sentada a tomar o pequeno almoço, na
mesa da cozinha, ainda dorida do sexo, Susana ouviu a campainha
tocar. Arranjou-se o melhor que pôde e foi ver quem era.
Quando abriu a porta e deu de caras com Jacinta em lágrimas sentiu as pernas tremerem. Não disse nada. Jacinta também não estava em estado de dizer o que quer que fosse. Olharam-se, sem saber o que fazer, até Susana se afastar da porta e Jacinta entender o movimento como um convite para entrar. E assim ficaram, mal paradas, ao fundo das escadas, logo a seguir ao pequeno hall da porta de entrada.
- Que se passa?
- O Joaquim anda a trair-me.
Toda a vila de Alfarelos sabia. Susana não era a única depositária do sémen de Joaquim mas sentiu-se como a única atingida. Ficou calada perante aquela confissão e mais calada ficou quando Jacinta a abraçou num pranto.
- Então, mulher, recompõe-te. Sabes quem é?
Aquelas palavras soaram-lhe tão mal, tão falsas, mas tão práticas.
- Sei. É por isso que estou aqui.
Susana afastou-se meio passo, rechaçada pelas palavras de Jacinta - "Está louca!" – pensou.
- Preciso da tua ajuda. Não tenho coragem para ir lá sozinha.
Quando abriu a porta e deu de caras com Jacinta em lágrimas sentiu as pernas tremerem. Não disse nada. Jacinta também não estava em estado de dizer o que quer que fosse. Olharam-se, sem saber o que fazer, até Susana se afastar da porta e Jacinta entender o movimento como um convite para entrar. E assim ficaram, mal paradas, ao fundo das escadas, logo a seguir ao pequeno hall da porta de entrada.
- Que se passa?
- O Joaquim anda a trair-me.
Toda a vila de Alfarelos sabia. Susana não era a única depositária do sémen de Joaquim mas sentiu-se como a única atingida. Ficou calada perante aquela confissão e mais calada ficou quando Jacinta a abraçou num pranto.
- Então, mulher, recompõe-te. Sabes quem é?
Aquelas palavras soaram-lhe tão mal, tão falsas, mas tão práticas.
- Sei. É por isso que estou aqui.
Susana afastou-se meio passo, rechaçada pelas palavras de Jacinta - "Está louca!" – pensou.
- Preciso da tua ajuda. Não tenho coragem para ir lá sozinha.
DuArte
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
O segredo
O segredo (ou parte dele) está em aceitar que existem dentro de mim tantas contradições, que não sou perfeita (a perfeição é uma seca), que nem sempre me entendo, que nem sempre estou de acordo comigo própria, mas que gosto de mim. E aceitar os outros como são, com os seus medos, fraquezas, fantasmas, contradições e também com o seu lado solar. E perceber igualmente que não posso gostar de toda a gente (há pessoas que não gosto porque sim e pronto), nem achar que toda a gente tem de gostar de mim (como é óbvio, nem toda a gente tem assim tão bom gosto). Quem agrada a gregos e a troianos tem forçosamente de ser falso.
Missanga
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
As estações só existem fora de casa
Com esta idade, ainda não sei dizer qual a estação do ano de
que mais gosto. Isto pode dizer muito de uma pessoa. Gosto das quatro
como as conheço. São belas e à sua maneira todas conseguem ser
insuportáveis. Não há ninguém que maldiga das chuvas de Verão.
Sabem tão bem. Há tempos ouvi maltratar a Primavera, porque lhe
despenteava os cabelos e pingava quando não se está à espera... O
Outono é doce, é a estação da marmelada e da geleia de marmelo,
mas às vezes isso enjoa. Gosto da secura do Verão, é difícil o
Verão e isso cheira bem, mas não imagino ninguém a escrever poesia
ou filosofia no Verão. Como são deliciosas as sombras do Verão. O
Inverno sabe muito bem em duas ou três situações: logo no início
e quando se está fora dele, ou o vemos passar à janela. Gosto da
expressão 'os rigores do Inverno' e parecendo o contrário, é uma
estação muito calorosa. Custa-me um bocadinho grafá-la sem
maiúscula, é a que mais me custa. Lembro-me de ir para a faculdade
de gola alta e casaco e agora há ar condicionado em todo o lado.Quem
se atreve a usar gola alta, fora das estepes da Mongólia? A verdade
é que as estações quase só existem na rua. Vivem pelas ruas, sem
abrigo, que é como deve ser, mas é uma perda não as deixarmos
entrar pela casa, nem nas casas por onde andamos, nem nos carros ou
nos transportes. Ficam à porta. Saímos da rua e mudamos para um
ambiente que não é nada, porque não é o morno ou o fresco que
fazem as estações. A temperatura é apenas o mote. Entra, Verão,
entra! Bebes alguma coisa? Quero que te sintas em tua casa!
terça-feira, 4 de setembro de 2012
Palavras Versadas
Na casa das palavras
A palavra é a nossa casa comum
como pode ser uma mala cheia de tudo e nada
como pode ser uma mala cheia de tudo e nada
onde ficam retidos todos os sentidos
todo o afecto que nunca pressentimos
todo o medo que temos guardado
um momento mudo e cego insoletrável
o amor que transpira das bocas
consternadas
o calar de segredos obscenos numa
língua rara
uma língua fechada sem chave de acesso
uma pronúncia ao avesso do signo
um dado inacessível a quem não sente
peito
um espaço aberto ao sentir sem chave
nem casa
nem significado onde morar
Joshua Magellan
Joshua Magellan
domingo, 2 de setembro de 2012
Provocatio
É um fato, quer dizer, facto!
Certos livros só os consigo ler enquanto faço o pino. Vou passando as páginas com a ajuda do sopro, ou da língua, o que é uma porcaria bem sei, mas tenho as duas mãos ocupadas. Certos livros só com o cérebro deveras oxigenado.
Iolanda Bárria
sábado, 1 de setembro de 2012
Crónica Benzodiazepina
Morre-se muito nas estradas
portuguesas, sendo diversos e distintos os factores que contribuem
para este grave problema nacional. A grande maioria dos acidentes
rodoviários são provocados por erro humano, nomeadamente por
velocidade excessiva, manobras perigosas, condução sob efeito de
álcool ou drogas, falta de civismo, entre outros. A não utilização
dos sistemas de segurança obrigatórios (cintos, capacetes, cadeiras
infantis) é um outro factor que faz aumentar exponencialmente o
número de vítimas mortais em sinistros rodoviários. Há, no
entanto, acidentes que têm a sua origem no mau estado ou má
concepção das estradas e na sua deficiente ou inexistente
sinalização. Não será pois justo imputar as culpas dos números
negros de acidentes rodoviários somente aos condutores,
cabendo-lhes, no entanto, a fatia mais grossa de responsabilidade. A
actuação dos organismos competentes deveria pautar-se por um
desempenho muito diverso do que tem vindo a ser feito, não se
demitindo das suas responsabilidades e fazendo campanhas adequadas e
agressivas, que mostrem, brutalmente e sem rodeios, os efeitos
nefastos dos acidentes. As multas podem influenciar o comportamento
de alguns condutores, mas não são suficientes para mudar toda uma
cultura de condução (mal) implementada, devendo a punição para
pessoas condenadas criminalmente neste cenário, passar pelo trabalho
cívico com sobreviventes mutilados de acidentes. É difícil mudar
mentalidades e hábitos (mal) adquiridos mas, tendo em conta os
benefícios que poderiam ocorrer ao serem postas em prática algumas
medidas mais agressivas, certamente valerá a pena o esforço.
Missanga
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