Uma canção de amor nem sempre parece uma canção de amor
Eu sou de Abril, e os de Abril habitam uma espécie de último reduto selvagem da humanidade. Um traço de carácter d'os de Abril: custa-lhes esse fenómeno típico da alta civilização, que é aprender a gostar. Custa, mas não é impossível. Aconteceu-me com a música do Mikkel Solnado. Como pude em algum momento desprezar e maltratar 'We can do anything'? Gosto tanto de ouvir 'We can do anything'! Antes assim. É muito melhor descobrirmos que gostamos, do que o contrário. Mesmo que seja à força de o aprender! Com o tempo, 'We can do anything' começou a revelar-se melódica e sem segredos. Ouvia mais e mais e pensava: isto é tão alegre, tão simples e sincero. Tão bom de ouvir! Não é fácil conquistar os de Abril. E é de aproveitar, porque não é todos os dias que se celebra o amor e a vida. Ainda para mais, com tantas palmas e alegria!
Não vi nada, Vi. Nada! Não há grande mal nisso, o Borges também não via nada! quer dizer, via sombras, isso dizia que via e pelas sombras pode-se saber muito do mundo e de quem anda nele. Não me recordo se pela voz da Ana, da Mercília - não, a Mercília, não! - , ou dele próprio, o ALA, às tantas, pergunta: " - Que senhor é aquele que não faz sombra alguma?"
A Europa é sobretudo um continente percorrido a pé. E isto faz toda a diferença em relação ao resto do mundo. Numa conferência que deu no Nexus Institute (e que depois transformou no livro "A Ideia de Europa"), George Steiner defendia que a cartografia europeia é determinada pelas capacidades, pelos horizontes percepcionados dos pés humanos. E assim é. Claro que também há extensões de terreno difíceis, mas nenhuma é intransponível, como acontece noutros continentes. Ninguém atravessa a Amazónia a pé. Mas os Alpes, sim. As distancias têm uma escala humana, são percorridas há séculos e isto foi moldando a paisagem. Para Steiner, este facto determina a existência de uma relação essencial entre a humanidade europeia e a sua paisagem que, como em nenhuma outra parte do globo, tomou a forma de um tempo histórico-humano, mais do que geológico. Para isso muito contribuiram as longas marchas dos soldados de Alexandre, desde a Grécia continental às fronteiras da Índia e ao deserto líbio. Assim como os quilómetros percorridos pelas legiões napoleónicas, de Portugal a Moscovo ou, depois, pelas unidades de infantaria que 'fizeram' as duas grandes guerras... Creio mesmo que, apesar dos comboios de alta velocidade, da aviação low cost e das longas auto-estradas, esta é uma característica que a Europa nunca perdeu!
Há países e cidades com uma enorme vocação para receber. E não é só por mero interesse, ou porque dispõem de estabilidade social e política. Vai muito das suas gentes, que se habituaram a ter e conviver com os de fora, com naturalidade. Nem sempre sem animosidade. Receber os outros é uma enorme e inestimável qualidade mas, por razões diversas (entre as quais uma desconfiança e tacanhez também fruto dos condicionalismos geográficos), muitos povos não a desenvolveram. Nós. Nós, que andámos a cravar quinas em todos os cantos do mundo e a ser recebidos um pouco por todo o lado para fugir à pobreza extrema, ou às perseguições e à asfixia da ditadura, não estivemos à altura de receber os nossos, os da pátria, que fugiram de uma guerra, em 75. Recebemos, que remédio, mas com hostilidade e com inveja, até. Isso diz muito de nós. Temos a casinha aberta é certo, mas se não vierem... Quem recebe bem, recebe sempre da mesma maneira. Nos últimos anos, temos feito um esforço para conviver com os de fora, estamos a aprender, mas isso não nos dá entrada no restrito círculo dos países e cidades que sabem receber. Na fila, a anos luz de nós ainda estão Amesterdão, Berlim, ou até Barcelona. Imagine-se! Na Europa, os países com mais longa e mais forte tradição de receber de braços abertos e em doses massivas são a França e a Inglaterra. Eu acho mais correcto dizer: Paris e Londres. Nova Iorque não fez mais do que imitar o que, noutros tempos, fizeram Paris e Londres. Duas cidades grandiosas, que durante décadas receberam, receberam e receberam (é injusto não nos lembrarmos disto agora, nos momentos menos bons). Hoje, não se entra nestas cidades com a mesma facilidade. Há muros e arame farpado. Há expulsões. Há medo. Falta emprego. Há uma sangria de conflitos e tensões sociais acumuladas. Nada mais vai ser igual. Isto não faz delas cidades mais xenófobas do que Lisboa.
(Acho excessiva e até absurda a ideia do colapso do multiculturalismo, como defende Angela Merkel, mas acho corajoso levantar a questão e obrigar-nos a pensar nisso).
Há coisas que me são difíceis de entender: o que leva certas pessoas a cortar as unhas durante a viagem de comboio? Acontece muito nas linhas suburbanas (as que eu uso). Quase todos os dias, praticamente. Ouve-se um barulho seco, da lâmina a pressionar a queratina, ora mais forte, ora mais fraco. Parece mesmo o revisor a 'picar' os bilhetes. O que leva alguém a sair de casa com um corta-unhas? a usá-lo no comboio? assim, à frente de toda a gente... Porque não na estação, enquanto aguarda? nos minutos mortos que restam do intervalo do almoço? em casa??? Hei-de arranjar coragem para meter conversa com um cidadão (geralmente homens) que corta as unhas no comboio. Suspeito seriamente que haja um motivo. Talvez um desabafo. Um ritual de alívio! Quem sabe? Tenho é de ter cuidado para não ser atingida na vista!
Iolanda Bárria
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
A noite é outra coisa
As madrugadas quase não se dá por elas. Antes passasse mais tempo nelas e com elas. Mas geralmente, durmo. E a dormir como chego a saber se é madrugada, se não é madrugada?
As vozes que melhor cantam as madrugadas são as que mentem, cantando a verdade. Têm aquelas quebras, falta-lhes sono. Oiço cantar na rádio: “querem matar a madrugada… “ (lembra o Manuel Alegre…, mas não é).
Nem consigo bem dizer quanto tempo ao certo dura uma madrugada. Não é noite. A noite é outra coisa. É o anúncio do fim da noite. Sem ser, ainda, o fim da noite.
(quando tenho insónias insulto as madrugadas. Porque me lembram que não vale a pena insistir no sono, não tarda é manhã)
Fora isso, deixo-as brincar comigo. (acordem-me, se me encontrarem a dormir)