Nesse dia fui mais uma vez visitar os meus avós, eles vivem numa daquelas regiões comunitárias conhecida pela “Comunidade do Pensamento”. Gosto de ir àquele sítio, é um ambiente diferente do que estou acostumado. As pessoas, de singela aparência, vivem um dia-a-dia calmo, entre os afazeres agrícolas e uma regular vivência cultural. Isolados deste mundo que foi imposto na maioria das comunidades, rodeados do essencial para sobreviver com alguma dignidade, não abdicam de pensar livremente. Nessa tarde, e porque o meu avô achou que estava no momento certo para ver a Torre de Babel, assim se chamava a sua secreta biblioteca, lá fomos os dois direitos ao momento há muito esperado. Entrámos num edifício discreto e dirigimo-nos a um dos cantos, onde existia um alçapão cuja escada nos guiava a uma enorme cave repleta de informação: livros, dvd’s, cd’s, todo o espólio que eles haviam salvo dos “autos de fé” levados a cabo pela “Comunidade Capital”. Há mais de cem anos que todo o material tinha aposta uma chancela: “Visado Pela Censura” – a imagem mais visível da DCI (Direcção do Controlo Intelectual). Entendeu o governo que aqueles conteúdos podiam ameaçar a estabilidade social e política. De alguns autores era até proibido mencionar o nome.
Sabia que o meu avô e os seus amigos dedicavam os seus momentos de lazer ao debate cultural e político, mas hoje percebi por que razão se tinham refugiado aqui, eram eles os censurados, tinham tido a ousadia de pensar de maneira diferente e de publicar as suas ideias. Ostracizados por esta nova ordem mundial, sancionados intelectual e socialmente, resistem mantendo a esperança de que um dia volte a liberdade de expressão a todas as comunidades. A história da humanidade já tinha provado que a opressão fora muitas vezes uma alavanca para a produção cultural, subtilmente muitos autores tinham conseguido ludibriar os censores. Por tudo isto, muitos preferiam constituir um “mundo” aparte, gozando de uma liberdade que, apesar de condicionada, lhes permitia o espaço suficiente para sobreviver enquanto homens racionais. Num ambiente de tertúlia um deles declamava. E assim, neste ano de 2122, soava a nostalgia dos velhos contemporâneos do século XX, num poema do Alexandre O’Neill. “...O medo vai ter tudo/ quase tudo/ e cada um por seu caminho/ havemos todos de chegar/ quase todos/ a ratos.”.
M. Jota
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