quarta-feira, 31 de agosto de 2011


Eu, criatura...

Sempre que crio, em paralelo nasce em mim uma vontade de destruir. Nem sempre, ou melhor, quase nunca essa vontade de arruinar parece provir da fonte criativa, dado que a projectei inconscientemente e de forma automática para o “outro” de quem agora pareço ser vítima. Não é de admirar que eu encontre legitimidade para cometer sempre o mesmo erro: sem saber da rasteira que a mim passo, invisto e defendo-me num combate onde estou dos dois lados do ringue.

Culpo os outros pelas minhas dúvidas inconscientes, procurando refúgio nas suas ausências para a total ausência de mim. Esqueço-me que “esses” de quem me descarto e desdigo, sou eu fragmentado, cada vez mais frágil de tão dividido.
A única solução para este processo ambivalente, é não agir, não julgar; aceitar tudo o que já foi pensado, até que os efeitos percam força e a poeira assente; até que as ondas tumultuosas se desfaçam e voltem a ser um espelho de água.


DuArte

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Palavras Versadas


Profecia

Vinte e sete hélices de voo
e só cinco funcionavam
Por instantes a esperança pairou
mas já esperançada no silêncio

Vinte e sete hélices de voo
e só cinco funcionavam
as hospedeiras alvoroçadas
ajudavam a recodar o passado
Cada um beliscava-se ferozmente
para não ter de sonhar de novo
o dia mais feliz

Vinte e sete hélices de voo
e só cinco funcionavam
Houve alguém que sentisse
ser semelhante à super-nova

Vinte e sete hélices de voo
e só cinco funcionavam
as nuvens ainda tentaram
deter a queda
mas fez-lhes cócegas a matemática


João Belo

domingo, 28 de agosto de 2011

Provocatio


Aqui acabam as ilusões
Em que o mundo nos seduz
Aqui há paz e descanso
À sombra da eterna cruz

eu rimo, tu rimas...

Podia acabar a infelicidade, a dor, a fome, até! Mas o que acaba mesmo são as "ilusões em que o mundo nos seduz". É tão bonito! E dá que pensar, ó se dá! (mesmo que tenha sido tudo arranjado só para rimar com "cruz", o que eu não acredito).
Palavras sábias para apreciar enquanto se está vivo. O que não deixa de ser injusto, imerecido, um desperdício!


Iolanda Bárria

sábado, 27 de agosto de 2011

Crónica Benzodiazepina


Vidas erradas por aí 

Há pouco fui ao supermercado e passei, como habitualmente, por um sem-abrigo que há muitos meses se instalou junto à porta de acesso ao parque exterior. Enquanto caminhava ouvi o tipo duma carrinha de distribuição afirmar, mais do que perguntar: “Tu, com essa vida, nem miúdas sacas”. O sem-abrigo que terá pouco mais de 30 anos - suspeito que lavadinho e com roupa catita punha muitos tipos a um canto - replicou-lhe calmamente: “Por acaso ainda na semana passada estive com uma. Tu devias estar a ver bola enquanto eu estava na brincadeira com ela”. O outro, de pança farta, querendo ter a última palavra: “Ah sim? E debaixo de que ponte?”. Já não ouvi a resposta. Quando saí, já o pançudo tinha isso à sua vida (arrisco-me a dizer vidinha) e o outro, o sem-abrigo, contava a sua estória a uma pequena plateia de mulheres e crianças. Fui andando devagar e percebi que o divórcio dos pais o tinha atirado para as estatísticas das crianças que ninguém quer. E assim foi crescendo, entregue à sua sorte e fazendo por sobreviver. Agora está ali. Nunca o vi pedir nada a ninguém, nunca o vi ser mal-educado e tem ainda nos olhos um brilho que a vida não lhe conseguiu apagar.
Fiquei a pensar que é preciso tão pouco para uma vida dar errado. Estamos sempre muito mais perto do precipício do que aquilo que imaginamos. Uma opção mal tomada, um passo em falso, um desaire amoroso, qualquer coisa. O facto é que todos temos em nós a possibilidade do abismo.


Missanga

sexta-feira, 26 de agosto de 2011


Por um direito real de habitação periódica

Habitamo-nos em todas as ruas, em todos os amigos, em todas as palavras aventadas. Habitamo-nos no silêncio também e nas pausas em que não falamos para nos ouvirmos. Habitamo-nos na corrente do rio que nos leva ao mar, numa tarde soalheira em que a praia está cheia de veraneantes habitados por nós em sonhos. Habitamo-nos na nossa habitação, no lugar dos outros e no que não é nosso, no que não conhecemos e no que desconhecemos. A vida é construída, a vida é uma habitação que se faz de palácios e de moradias de renda económica, de barracas e de vãos de ponte onde um cartão velho nos espera o sono. A vida é o espaço e o tempo que habitamos, as janelas por onde olhamos para um passado que já não é nosso, para um futuro que ainda não sabemos ser nem quando vai ser. A habitação é essa vida a correr, essa lida; essa vida parada, essa vida que não nos diz nada. E habitamo-nos sucessivamente, reiteradamente: desde o berço em que vivemos na perspectiva de não nos deixarem morrer à fome, desde a urna em que não queremos morrer pelo esquecimento, desde o primeiro choro ao último lamento. Habitamo-nos sempre. Habitamo-nos aqui e ali, acolá e algures, em todos os lugares de nenhures. Habitamo-nos porque quando deixamos de nos habitar, o mundo deixa de existir. Somos casas sem fim num mundo à espera de ser demolido por falta da nossa existência. Habitamo-nos porque a habitação é nosso lugar-comum, entre aqueles com quem nada temos em comum. Habitamo-nos um e outro e aqueloutro, até chegarmos à conclusão que não somos nenhum deles e que não passamos de mais um. Habitamo-nos fantasmas e demónios, inconscientes de havermos vivido para lá do nosso vulto. Habitamo-nos heróis e deuses na esperança de que acreditem em nós e nos ofereçam honras e sacrifícios. Habitamo-nos só por nos habitar, queremos ser e procuramo-nos, somos e não existimos em nenhum lugar.
 
 
Joshua M.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011



agora já sei sonhar

finalmente os olhos começam a pesar. horas contorcendo os lençóis amarrotados, olhando o branco cálido de um espaço sufocante, fitando o nada dos carneiros saltitantes que se contam. horas tentando encontrar uma porta para o outro lado da consciência. peguei num livro. há tanto tempo não lia... foi beckett. foi teatro. foi sentir-me de novo num palco. alegria. parece que mesmo quando escrevo somente corro ficando parada. parece que estando parada estou sempre ainda assim correndo...tal como tu me dizias.
gostava de colar post-it's na parede com tudo o que me lembras... só palavras que te definam, gritem ou sussurrem o que em mim significas. gostava, mas é tão cedo... e gosto de saber que não há pressa. e gosto de saber que ainda dormes ao meu lado amanhã.
chove lá fora. dizem que é a aproximação de um ciclone qualquer. não sei bem porquê, a palavra ciclone sempre me lembrou a palavra centauro; e centauro é em mim a representação de tudo o que é másculo, de todas essas lendas mais ou menos míticas de destemidos heróis e minotauros, de lutas infindavelmente espartanas, de testosterona que sobressai em farta barba. não sei porquê, pensar centauro traz-me à mente a tua imagem. e, sabendo já porquê, sorrio. sorrio enquanto os olhos se contorcem devagar, enquanto os músculos se tornam dormentes, enquanto o livro cai por entre os lençóis vincados de tanto os apertar para lhes espremer o perfume teu que ali ficou. e hoje não tenho medo. sei que ficas em cada raio de luz de cada novo amanhã.


Virginia Machado

quarta-feira, 24 de agosto de 2011


SEMPRE

Sempre que o dia nasce com sol, a minha alma tranquiliza-se e tudo se torna mais fácil.
Sempre que penso em ti, choro e rio, sofro e enterneço-me ainda.
Sempre que telefono à minha mãe fico com a sensação de que devia estar com ela, ao lado dela, perto dela...
Sempre que acordo, pergunto-me se não deveria continuar a dormir.
Sempre que conduzo, apetece-me cantar.
Sempre que vou à praia, apetece-me continuar...
Sempre que vejo um avião, vou com ele.
Sempre que adormeço, percebo que um bom sono é essencial.
Sempre que faço amor, sinto-me rejuvenescer.


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Palavras Versadas


o íman e a bicicleta

abrimos gavetas de par em par
porque temos gavetas
porque somos um par
mas tudo que há nelas é de plástico
de corpo dúctil, brilho quebradiço
riso maleável e som volúvel
nada é o que parece, ao tempo elástico
tudo se molda, no mundo postiço
que queríamos insolúvel

insistimos de cócoras a espreitar
debaixo dos móveis está tudo igual
tudo se dobra, tudo se vende
nada nos consegue arrepiar
nada compreende a textura do metal
nada nos prende, e como tal
dizemos ‘não é nosso este universo’
tudo se transforma com rapidez
até ser inverso, outra vez

cada um era íman, agora já não
o mundo plástico não sabemos atrair
nem nos atrai com tantas cores fingidas
e dores tingidas num fundo falso
largamos a pele de íman no chão
já que estamos sós por que não sair
à procura de novas descidas
brincar ao imprevisto no encalço?

às vezes parece a vida inteira
cortar o vento desta forma secreta
que absolve da sentença de solidão:
pela íngreme ladeira
solta-se a bicicleta
e o amor grita ‘sem mãos!’


Bill enGates

domingo, 21 de agosto de 2011

Provocatio


Agosto

Eu contava com um mês limpinho. Sem filas, sem pagamento de portagem, com muitos restaurantes fechados, é certo, mas com muitos outros locais sem as habituais enchentes. Vestida de fresco, este seria o habitual mês de "entremeio", pós-férias, pré-rentrée. Eu contava com um mês limpinho. Eu bem me parecia que já devia ter (e)migrado. Por agora é tarde. Conto as horas até segunda-feira. Algures num atalho esquecido do poder.


Ana Santiago

sábado, 20 de agosto de 2011

Crónica Benzodiazepina


O valor do conhecido

À medida que os anos vão passando, vamo-nos apercebendo do real valor da amizade. Não dos “amigos aos molhos”, mas daqueles que correspondem com um grau de cumplicidade fundamental à nossa sanidade mental. Pode, esta ideia ser um “clichet”, sem que este facto a belisque na sua essência. Sinto isto há muito tempo. Prezo muito os meus poucos amigos. Guardo-os dentro do meu universo, onde não existe tempo nem espaço, como estrelas geradoras de órbitas, gravidade e oxigénio. Mas, tal como qualquer universo que se preze, estamos em continua expansão e surpreendo-me com a agradável constatação de ainda conseguir fazer novos amigos. Uns adquirem o estatuto, se é que assim se pode chamar, de mansinho. Pé ante pé, atingem-nos o coração. Outros não necessitam de fazer nada, dois dedos de conversa e percebemos que aquela pessoa será irremediavelmente uma amiga por afinidade até ao último dia da nossa vida. E isso é bom. Tão bom que chega a raiar o piroso. Contudo, surpreendente foi a minha mais recente descoberta - o valor fundamental dos conhecidos e o importantíssimo papel que desempenham na qualidade das nossas vidas. Não, não me refiro aos influentes, às cunhas ou aos fretes por conveniência. Refiro-me ao senhor do talho que me guarda o melhor naco de carne ou, pelo menos, caridosamente me faz crer que assim é e me chama por “vizinha” com um sorriso carinhoso. Ou ao rapaz da bomba de gasolina, que me faz sempre uma “festa” quando me vê e acena sempre que apenas passo, sem necessidade de abastecer. Não menos importante, os empregados de restauração que sabem exactamente como gosto e do que gosto, fazendo questão de o demonstrar, sabem também qual a marca do meu whisky e que marca de tabaco fumo, poupando-me a maçada de ter que meter trocos na irritante máquina costumeira. Adoro os meus conhecidos, que são cada vez mais, sem que isso me atormente, pese ou atrapalhe, bem pelo contrário. Amigos não são o oposto de conhecidos, como fui ensinada a acreditar. São relações de naturezas distintas, que não se comprometem mutuamente, nem tão pouco se opõem.
Uma constatação simples, é certo, mas ao assimilá-la do alto da sua quase estúpida e flagrante simplicidade, transformou-me num ser muito mais feliz.


Lucinda Gray

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



Na pele da minha alma

Em dias como o de hoje, sinto uma brisa triste entranhar-se em mim, sinto o cheiro da nostalgia, a monotonia dos dias cinzentos, a frieza das gentes, a fragilidade de tantos outros no mundo cruel. Em dias como o de hoje, meus lábios gretados estão, minha pele roxa está, meu corpo gélido treme, minha alma chora da dor que é estar só. Senti uma vontade louca de correr para quem me amasse, de me lançar nos braços de quem me pudesse proteger das atrocidades do mundo e chorar tudo o que em mim hoje e sempre doeu. Hoje sim, hoje, só hoje, seria bom ter com quem contar.


Joana Santos

quinta-feira, 18 de agosto de 2011


Insone

Devo dizer que anoitecia. A minha mente amordaçada pela liberdade trauteava o compasso nocturno. Caminhava por instinto, desregrando a escuridade. Os sinais permaneciam irrequietos, as incertezas deslizavam trémulas, a mente extasiava-se palpitante. A noite permanecia. Ou era eu que permanecia dentro dela. Num qualquer recanto obscuro do dia. E a noite resistia, sombria. Por vezes tudo surge submerso na densidade da noite. E eu ia fluindo em tons de musicalidade fragmentada sobretudo sobre nada. Mas nada sobra. E a noite insistia, em perversa melancolia.


Bruno Vilão

quarta-feira, 17 de agosto de 2011


A minha verdadeira identidade habita em ti

Tinha-lhe enviado uma mensagem a perguntar se queria ir tomar um chá, algures na rua das galerias. Não respondeu. Decidi ir sozinho enfiar-me no amontoado de almofadas marroquinas, pôr-me a pensar se haveria realmente alguém do outro lado a ler o que escrevera.

...não havia ninguém. As pessoas são fantasmas intermitentes, surgem do nada e antes ainda de as vermos, já se foram para o mesmo nada onde as sonhamos.

Há momentos – são muito raros – em que a intermitência parece fixar-se por instantes na eternidade. São esses momentos que nos fazem tentar repetidamente a ideia de que é possível. E de tanto tentarmos, a intermitência faz-se imagem – a vã ilusão de realidade.


DuArte

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Palavras Versadas


ANTÍTESE

prefiro a voz quando incompleta, quando
parece esvaziar, e não confirma horas.
há nesse esvaziamento muito de acessório de estilo,
muito de virtude transformadora,
muito de casal feliz esperando pacientemente
o amor.
e é necessariamente leve o resultado,
é um passado que se dissolve e se enche
de moradas póstumas,
de respeitáveis silêncios que em si concentram
todos os privilégios da solidão,
todas as crianças de força
que habitam este mundo com citações francesas
aos olhos gordos.
a memória na voz é a coisa mais deliciosa do mundo,
a memória que se parece nivelar
por aquelas cores
que continuamente se clareiam e contorcem
em direcção a um fim ou a um começo
que não permanece.
o que sei: o que sei é que a minha voz emoldurada
na poesia perfurante das possibilidades
parece compreender a vida que nunca lhe alcançará
a superação, o seu espírito de ser muito mais,
muito mais que a sua forma.


Sylvia Beirute

domingo, 14 de agosto de 2011

Provocatio


A perdição de um dia 

Hoje perdi-me de mim... Hoje tenho andado à deriva, sem ninguém ao leme.

Se alguém me encontrar, por favor, devolva-me a mim.


Missanga

sábado, 13 de agosto de 2011

Crónica Benzodiazepina


A procissão vai no adro e vai linda!

Houve um tempo em que apenas e somente aos homens era permitido transportar o andor durante a procissão. Regras são regras e homens são homens, já se sabe!  Às mulheres sobra-lhes em ideias e outras ligeirezas o que lhes falta em força de ombros! Curvam demasiado, não andam a direito... 

E os santos pesam muito. E são santos!

Mas eis senão quando veio outro tempo! A todos apanhou distraídos, tal foi a lentidão silenciosa com que se instalou. Neste outro tempo, os poucos homens de que se fala na aldeia, estão velhos, ou doentes, ou mortos.

"A procissão não pode acabar" diz o povo, sempre tão sábio e sensato. Pois siga então a procissão!  
Reparei no padre, meio cabisbaixo, disfarçado mesmo, entre o seu rebanho.
Mas os santos não se queixaram, pareceu-me mesmo que gostaram.
Muito?

É bom, porque vão repetir!


Iolanda Bárria

sexta-feira, 12 de agosto de 2011


beijos com sentidos

estou farto deste dia sem esperança de te ver amanhã, apetece-me nascer outro dia e voltar a crescer dentro de ti, adiar todas as tarefas inadiáveis e parar de viver e viver sem destino – ser só querer viável até ao infinito de te querer, em todos os possíveis sentidos que a afeição possa conter

só…

porque me busco nas fatais delícias dos teus lábios, polpas que inebriam e embriagam como cachos de fruta colhida em vinho: sinto atear-se o êxtase que nos acende cada desejo oculto; sinto restos de sentir no rasto da nossa boca calada e consentida – e restamos apenas nós nos beijos que nos sobram, restando como réstias de ambrósia e néctar da tempestade de nos querermos e darmos em cada dar

só…

por te saber vaga no oceano e longe, mergulhei no teu mar e senti-te como polvo aventado contra a areia, envolto na espuma de cada volta da maré, em roldão até abordar às escâncaras da praia; corpo estirado em braços e pernas, músculos retesados, ardor e tentáculos cerrados; corpo ávido de trucidar a saudade de ser corpo, corpo aceso em ânsias de voltar a ser corpo – Fénix revivificada pelo fogo de cada despertar, renascida luz da manhã seguinte, sol que me anima

só...

a perene realidade do amanhã em que te quero reviver, fúria no enleio do meu corpo mergulhado contra o teu, ambos cercados um do outro, fará dos nossos corpos um corpo nosso – uno – logrado pelo sal do deleite em que adormecemos; e despertarei contigo, corpo-sorriso, corpo colado ao corpo, pela noite que nos prendeu – para reviver, em todas as manhãs, a ténue indelével imagem do sabor do nosso querer

só...

até ao fim dos dias de solidão, até que a nossa eterna lembrança seja cada vez mais real...


Joshua M.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011


História da gaivota que sabe voar e não precisa que a ensinem

Não há tempestade no mar, nem consta que haja por aqui um gato que a ensina a voar. Esta rapariga gosta claramente de aventurar-se por novos ambientes. Todos os dias quando a piscina esvazia para almoço ela pousa entre a piscina das crianças e a dos crescidos, numa pausa entre o mundo dela e o nosso. Já pensei dar-lhe um nome, para depois exibi-la como mascote das minhas férias, mas isso seria reduzi-la a uma identidade que ela não procura. Nem todas as coisas têm de ter palavras a assiná-las. A gaivota vem como vou eu daqui a pouco entrar pelo mar adentro, sem querer que ninguém saiba o meu nome. Nestas férias estou verdadeiramente aquilo que não sou - antipática. Não dou conversa a ninguém. Não me apetece. Nem mesmo àqueles rapazes giros que estão sempre a roubar-me a espreguiçadeira para jogar às cartas, nem mesmo àquele rapazinho de Évora que está sempre a espreitar toda a gente por cima do livro de BD e que diz: "Lá em Évora demoramos sete horas a chegar à praia!". Criança adorável. Noutras férias teria tido vontade de adoptá-lo. Nestas, não. Sorrio-lhe apenas e ele percebe que eu estou como a gaivota: entre mundos.


Ana Santiago

quarta-feira, 10 de agosto de 2011


CAMINANTE NO HAY CAMINO...

Caminante no hay camino
El camino se hace al andar

Tenho alma de caminhante. Vagueio em busca de algo por descobrir. Não me confino ao simples existir e como seria mais feliz se o fizesse! Tenho alma de cigana, de percorrer os sítios e não assentar. Sinto-me um cowboy a percorrer a planície desconhecendo o que vai encontrar. Quero partir e chegar incessantemente. Testar os meus medos, ousar-me a mim própria. Sou persistentemente tentada pelo fundo do abismo. Mas sonho que um dia acordarei com a sensação de paz que só encontram os seres quando já não esperam nada!


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Palavras Versadas


POESIA

Poemas nem pó!
Não escrevo sobre a nostalgia.
Não escrevo sobre o meu estado de espírito
Só escuto os ouvidos do mar.
Só me lembro de querer chegar para nunca mais partir.
Perto da chegada a infância longe da morte.
Perto dos desejos o teatro.
Perto do sul lentos os lábios.
Perto das lágrimas a saudade
em sopros de sal de vento azul forte.
Ou então só escrevo uma vontade.
Uma página inteira de olhar.
Uma voz engasgada na alma do ventre do norte.
Ou então só escrevo um beijo
sem espuma, sem oceano
no silêncio a esvoaçar.
Um pedaço de poesia ainda aceso
mas que inevitavelmente o tempo apagará.
Uma palavra de esperança, um adeus
e mais nada.


João Belo

domingo, 7 de agosto de 2011

Provocatio


Luz na escuridão

Pois eu estava tão desesperado com o sono que fui tirar um café longo na máquina do hotel onde estava a trabalhar. Não satisfeito com o arrojo, só por si suficiente para me pôr o chakra do coração aos saltos, enfiei-me na casa de banho a transmutar a energia do quarto para o terceiro olho. Fiquei tão eléctrico que numa sacudidela mais forte, confundi qual dos chakras devia apertar: se o do ânus, das energias baixas; se o chakra da zona genital, rico em energias fracas. A coisa destrambelhou de tal forma que quase me explodia um tomate.


DuArte

sábado, 6 de agosto de 2011

Crónica Benzodiazepina


A Volta

Certa ocasião o P. ofereceu-me um dvd onde gravou horas de "A Volta a Portugal em Bicicleta". Não era um resumo, mas “a versão quase integral das melhores etapas”, garantiu-me. Foi nos tempos em que a RTP2 ainda fazia longos directos das melhores etapas comentadas por uns senhores, não sei se todos jornalistas, mas todos com um tom de voz estupendamente monocórdico e com um palavreado muito técnico e profissional. Dezenas de bicicletas a deslizar umas atrás das outras e um coro a repetir as mesmas coisas numa cadência rolada, influenciada pelo próprio pelotão. Um mimo!
Cada um só pode (deve) falar da sua experiência e eu experimentei ali, naquele bendito dvd da Volta, um portentoso soporífero, que aniquilou as minhas abusadoras insónias de Verão que me torturavam e, por arrasto, consumiam ainda mais o P.
Um achado, o bendito dvd!
É bem de ver que, para mim, "A Volta a Portugal em Bicicleta" ganhou um interesse especial, nasceu um certo carinho, que não se deve apenas ao sono, devo dizê-lo. É preciso ver que há ali uma dureza, um desafio aos limites físicos que chega a  fascinar. Qual futebol, qual boxe… 40º à sombra e aquela rapaziada a atravessar o país sem largar o pedal. Chegar à meta, em cada etapa, e logo um enxame de gente a sufocá-los com palmadas nas costas e a fazer perguntas. E eles a aguentarem-se, rijos! Gosto dos palanques improvisados e das meninas pouco vestidas que agarram os camisola-amarela e chuuac, com muito suor! Gosto dos capacetes aerodinâmicos e dos raminhos de flores mal arranjados.
Parecem rebentar naquela roupa colante. Mas festejam, felizes, os camisola-amarela.
Nem sei bem explicar isto, mas sempre achei que o ‘folclore’ da Volta tem uma estética muito ibérica.
Voltaram as noites quentes de Agosto e eu tentei ver uns resumos da Volta que passam na TV.  Mas está tudo muito diferente, mais acelerado, novo palavreado, muita net!. " - Nã... isto não é para mim", comentei com o P., " - vou é procurar o meu dvd."


Iolanda Bárria

sexta-feira, 5 de agosto de 2011


Abismo azul

Ela ia numa estrada muito branca, tão branca que chegava a ofuscar. Ia de carro ter com os amigos à praia num sítio qualquer desconhecido. O dia estava claro e luminoso com o céu pintado de um azul intenso. Ia feliz! Subitamente a estrada acabou e o carro voou sobre o precipício. Era uma arriba imensa. Lá em baixo o mar azul cintilava reflectindo o brilho do sol enquanto ela, calmamente, pensava: “Por que raio, ninguém colocou uma tabuleta a dizer que a estrada acabava ali?” Pensou também que aquele mergulho em direcção ao plácido abismo azul seria fatal. No entanto estava tranquila, enquanto voava e absorvia o mundo azul que a rodeava.
Caiu sem susto e pensou que tinha acabado de morrer, pois seria impossível sobreviver a tamanha queda. Estranhamente sentia-se viva, muito viva, enquanto o mar a envolvia lentamente e cheiro inebriante a maresia lhe despertava ainda mais os sentidos. “Acho que afinal não morri...”, pensou enquanto se soltava e se esgueirava pela janela. Ali perto barquinhos muito brancos vinham já resgatá-la das águas planas e cálidas daquele oceano tranquilo.

E então despertou, calma e serena. Pela primeira vez não acordou, em pânico, durante a queda. Talvez porque tivesse visto para onde estava a cair (ou a voar) e não fosse um salto cego, no escuro, sem saber para onde ia…


Missanga

quinta-feira, 4 de agosto de 2011


Benditos plágios malfeitos

Se os surrealistas portugueses escreveram no seu tempo “não somos originais”, nós, hoje, seremos certamente muito menos. Mas não será por receio da exposição à crítica e ao plágio que nos toldarão os sentidos. Da nossa inquietação mental e fleumático pretensiosismo, impõe-se a procura de rasgar a barreira da mediocridade consciente, propiciadora de espartilhos mentais e de encarceramentos racionais.

No "Manifesto Surrealista", André Breton postulou o automatismo psíquico, a necessidade de libertação do acto criativo das amarras da consciência e da razão. Como inóspitos plagiadores, apostamos na fluência desimpedida do inconsciente, na capacidade de criar imagens soltas, desencontradas, reveladoras de um universo onírico escondido nas entranhas da consciência.

E por não sabermos igualmente, como Mário Cesariny de Vasconcelos, se fodemos tudo ou se tudo nos fode, impomos uma orgia mental pautada por uma ideologia poética e por uma alucinada experimentação intelectual.

Revoltamo-nos pela pureza dilacerada, pelo magnetismo oprimido, pela irreverência original perdida de que se reveste a nossa natureza individual, e contra a ansiedade contida, ironicamente oferecida pela domesticação do Eu único, do Eu puro, do Eu natural, submetido a cada cruel instante à apreciação da imagem do Eu ideal.

Superando as tensões e as máscaras sociais impostas, procuramos atingir e expressar a transparência do sonho nos palcos, nas telas, na tinta sobre o papel... Insurgimo-nos também contra a submissão às normas estabelecidas e proclamamos a omnipotência, a superioridade do sonho e do inconsciente sobre o real, o desregramento de todos os sentidos.

E como plagiar não custa, ambicionamos ainda a desconstrução da forma e a potencialização do imaginário.

Pois tal como Breton:

Não será o medo da loucura que nos forçará a arrear a bandeira da imaginação.


Bruno Vilão

quarta-feira, 3 de agosto de 2011


A minha história começa...

A minha vida começa no dia em que decidi deixar de viver a minha vida como quem vive sobre uma escada rolante que desce.

(Pascal de Duve, poeta belga, 1964-1993)

Decidi deixar de ser boazinha para ser verdadeira. Fartei-me de dizer sim. Fartei-me de te aturar. Fartei-me de concordar. Fartei-me de suportar. Fartei-me de repetir. Fartei-me de me mentir. Fartei-me de te sorrir. Fartei-me. E se eu não mudar, morro. A mudança é a minha essência. Tudo no universo se move e eu tenho andado parada. Preciso de ser quem sou e não quem gostariam que eu fosse. Não serei uma "nice dead person" como muitas que andam por aí. Por isso, começarei hoje a tratar da minha paz interior como a minha mãe costumava tratar das flores no seu jardim.


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Palavras Versadas


dama de ouro

a minha esperança é debruada a cristal intermitente
porque escolhi a transparência
do cravo na sua jarra sobranceira que abre
a porta, cravo liquefeito acendendo a luz
de interrogação, a quem chega. se um dia
me ouvirem dizer 'agora não posso,
estou a regar a vida' saibam que essa flor
murchou de generosidade
vergando-se no interior da própria jarraiz
para dar lugar a um desmesurado jardim levitante
incontível no hall de entrada. chamar-lhe-ão
amor, ou simplesmente o jardineiro
esculpindo o tronco onde irá deitar-se
no abraço musculado da casa reencontrada
a dama de copa
 
 
Bill enGates