quarta-feira, 30 de novembro de 2011


Os outros

Livros, filmes, terapias, toda a sensibilidade e bom senso deste mundo, ou mesmo uma espiritualidade acima da média, não são capazes de nos permitir fazer aquilo que podia construir a verdadeira paz entre nós: colocarmo-nos a cem por cento no lugar do outro. Exactamente no lugar do outro.
Podemos imaginar, compreender, munirmo-nos de toda a abnegação possível, desprezar a pena e elevar-nos à excelência da raça humana com compaixão. Podemos "sofrer com". Não poderemos jamais "ser como". Eis a verdadeira solidão. A incapacidade de ajudarmos alguém que não seja apenas por empatia e um abraço apertado. A probabilidade de nos perdermos uns dos outros, por não conseguirmos estar todos no mesmo lugar. Às vezes penso que essa incapacidade nossa é o maior trunfo de Deus para precisarmos dele.
Resta-nos estar cada um no seu lugar, mas ao lado do(s) outro(s). Sem o perder de vista.


Ana Santiago

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Palavras Versadas


a gaivota que trazia no bico um pedaço de mar

desfez o ninho para voar e voou sem se erguer até crescer
para além das asas desertas sobrevoou o mar no fundo – a ave
era um peixe azul marinho – nadando pelo ar inerte
certa da certeza das ondas e do peso das nuvens

indo e vindo e revoltando
a salmoura urdida pelas marés reiteradas

cruzando o ramerrão lunar das vagas vai
colhendo pérolas de maresia
pedaços de brancura fugaz na espuma do céu
lutando contra a corrente de ar incondicional
ferida de morte súbita
cai pesada a gaivota – que mal sabia voar
e nadava pelo ar inconsistente – no triste pranto da chuva 

sobrevive à queda abrupta da viagem
trazendo consigo uma nuvem breve na água do bico

: um pedaço de mar


Joshua M

domingo, 27 de novembro de 2011

Provocatio


e o paraíso no teu olhar...

Lauro:

" - Só hoje de manhã reparei que a Maria de Deus é estrábica!
Estrábica!
Tinha-a perfeita.
Que aborrecimento! que chatice, quero dizer!
Sinto um mal estar...
Já não é a mesma coisa olhar para ela, ah isso nunca...
Como é possível, ainda ontem a vi tão de perto, olhos nos olhos (até a beijá-la)! um olhar lindo, doce... e hoje dou com este desencontro: um olho para cada lado!

Estrábica, quem diria!"


Iolanda Bárria

sábado, 26 de novembro de 2011

Mário de Cesariny (9 de Agosto de 1923 / 26 de Novembro de 2006)


Lago Mudo - (a)variação

Primeiro foi o Pessoa a dar o mote, ao contemplar o Lago Mudo. O Cesariny seguiu-lhe os passos em “O Virgem Negra” para explicar as palavras do poeta dos heterónimos às criancinhas naturais e estrangeiras. E eu, como uma criança invejosa que do canto do pátio do recreio observa os dois a jogarem às palavras, ávido por entrar no labirinto lúdico das letras, sinto-me impelido a perguntar-lhes, quase em surdina: “Também posso brincar?”.

O oblíquo olhar que me lançam é revelador de uma cúmplice desconfiança, como quem pensa: “Mas quem és tu, que ousa poder dar continuidade à tradução da explicação do Lago Mudo?”. A verdade é que acharam piada ao arrojo e os sinais que recebi deram-me alento para decifrar às criancinhas virtuais e matreiras, a explicação do Cesariny sobre o "Lago Mudo", do Pessoa. Então, e só então, atrevi-me a contemplá-lo, também:

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa revolve
Não sei se culpo tudo
Ou se tudo me absolve.

A brisa não me conforta
E o lago é uma visão distante
Não sei se leio em linha torta
Ou se me enleio no instante.

Trémulos vincos enfadonhos
Não sei se de vinda se de ida
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única saída?

Para quem não conhece ou quiser recordar o original do Pessoa, aqui está:

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

Assim como o “cover” do Cesariny:

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa sacode.
Não sei se fodo tudo
Ou se tudo me fode.

A brisa é o lago a ir
A uma ideia de mar.
Não sei se me ate a rir
Ou desate a chorar.

Trémulos vincos medonhos
Cercando a água toda,
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única nódoa?


Bruno Vilão

Mário de Cesariny (9 de Agosto de 1923 / 26 de Novembro de 2006)


Santas e marinheiros

Foi numa agradável tarde passada em conversa com o meu querido amigo António, em que falámos (também) de Mário Cesariny, que o recordei. E as memórias deslizaram. Vagas. Leves. Soltas. Relembrei-me das palavras trocadas, dos acenos, do sorriso (sempre) malicioso, das constantes provocações, dos elogios ardilosos, dos aplausos resgatados nas estreias de peças em que eu participava e, claro, das histórias. E, oh, se aquele homem tinha histórias para contar. Além do mais, sou um dos cinco mil rapazes que se pode orgulhar de ter no currículo um pedido de casamento do Mário Cesariny, em jeito de provocação. Revivi então um episódio, em que o Cesariny, em passo apressado ao lado de um qualquer marinheiro, passou na rua por um amigo em comum. Era Sexta-feira Santa, esse dia tão sagrado em que se deve honrar o caminho do Senhor, e solta-se a questão: “Ó Cesariny! Pelo amor de deus, hoje é Sexta-feira Santa”. A resposta, como sempre, estava à boca de cena, aguardando ordem de disparo: “Não há problema. Marinheiro não é carne, é peixe. Hoje pode comer-se à vontade”.


Bruno Vilão

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


Génesis (ou, uma estória de afectos muitíssimo original)

Era uma vez uma estória que começava como todas as estórias, “era uma vez”... Era uma estória de um príncipe e de uma princesa que, um dia desencontrados, se vieram mais tarde a reencontrar, à imagem de todas as estórias do género. Ela era vendedora na loja das meias; ele trabalhava no turno da noite no metropolitano. Ela baixa que, ao sol do Rossio, não entrava na Rua da Betesga; ele debaixo de terra, não passava de estação, nem nunca foi apontado pelo Chiado. Encontraram-se entre estações, no começo da primavera. Casaram nas "noivas de santo António" e separaram-se numa festa de carnaval.
Com a euforia do festim, a confusão dos mascarados e a pouca convivência entre ambos, perderam-se um do outro: ele saíu por engano com uma suposta dama de copas; ela deitou-se com a máscara do rei de espadas. Deram conta disso alguns anos depois, quando por acaso se reencontraram entre estações, num dia de greve dos transportes. Ela perguntou-lhe se ele ainda vivia naquela casa. Ele, disse que sim. Ela, confirmou-lhe que também ainda estava a viver nessa mesma casa. Trocaram um carinho com as mãos e olharam-se cheios de saudades nos olhos. Prometeram voltar a ver-se mais vezes. Ela deixou o número de telefone dela; ele guardou-o na carteira, junto à fotografia da mulher de máscara.
Um dia, encontraram-se frontalmente num café a meio da noite. Ele, não suportava mais aquele trabalho, resolvera desertar. Ser polícia subterrâneo não era nada fácil. E depois ter de andar sempre com aquela máscara, dia e noite. Ela, fora despedida: o negócio das meias acabara praticamente desde que se começaram a usar aqueles fatos-máscara que cobriam o corpo todo. Estavam ambos ociosos, à procura de algo em que entreter o ócio, quando se reencontraram nessa tarde. Ela, teve dificuldade em reconhecê-lo sem máscara; ele, reconheceu-a – mesmo sem lhe conhecer a cara –, reconheceu aquele sinal nas costas da mão e as nódoas de batôm carmim na ponta dos cigarros. Foi bom dar-se conta de que conhecia as mãos dela, de que agora poderia ligar essas mãos a um rosto. As mãos sem rosto têm sempre alguma coisa a dizer, mas é a expressão do rosto que dá sentido às suas acções, seja crime ou carinho.
E assim termina esta estória, tal como terminam todas as estórias, por ter de terminar. No dia em que os amantes se viram cara a cara, se deram por fim a conhecer, deram para sempre as mãos que já conheciam. Beijaram-se, sim, provavelmente ter-se-ão beijado, sofregamente, como o fazem todos os amantes reencontrados. Assim poderiam ter ficado imortalizados – numa pintura, numa fotografia, ou até num texto – atados um ao outro para sempre, num abraço de vida que o mútuo afecto vai reinventando.


Joshua M.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011


Naquele tempo...

No princípio de tudo, era o tempo dos sonhos... Aquele tempo em que, em vez de moelas recheadas de alfinetes, jantávamos salmão à sombra dos abismos e éramos felizes! Um tempo em que o grande segredo do amor era simplesmente não amar... Tempo em que passávamos noites juntos à luz do fogo que ardia nas nossas mentes sem nunca tocarem o coração.

Nessa altura, eu sabia já, como sei hoje, que tudo o que deixamos ir está perdido para sempre.


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


Reminiscências de um sonho

" – Não haverá maneira de sairmos daqui? Para um lugar diferente? Para algo que não seja vaguear pelo mundo como uma alma penada? Se calhar alguns mortos vão para outro lugar...!?"
" – Ouvi dizer..." – Começou uma falecida na voz baixa dos segredos. "...que alguns se vão daqui."
" – Como?" – Perguntei imediatamente, animada pela perspectiva.
" – Não sei!" – disse ela encolhendo os ombros. " – Dizem que há outros lugares para se estar morto. Não sei se melhores, se piores. Nem sei bem se é verdade. Ouvi rumores..."
" – Então nós passamos a vida inteira a fugir da morte, a adiar o nosso encontro com ela e depois de mortos ficamos perante a perspectiva, ou a certeza, de não morrermos mais e de passarmos toda a eternidade a vaguear, sem sequer esperança de morrer porque já morremos?" Perguntei, mais para mim própria do que para ela. " – Eu pensava que a morte ainda estava tão longe de mim. Eu ainda achava que era uma coisa que só acontecia aos outros, aos velhos ou aos incautos. Eu ainda me achava imortal. Isto só pode ser um pesadelo, um sonho ridículo do qual espero acordar rapidamente. Uma pessoa devia saber quando morreu, quero dizer, alguém deve informá-la. Mesmo que se vá para o inferno tem de haver alguma coisa, sei lá, uma placa a dizer “Wellcome come to hell” ou algo parecido, em inglês, claro, como nos filmes. Assim não tem sentido."
" – E porque deveria ter?"
" – Porque quando estamos vivos, fazemos planos, temos sonhos, temos esperança e, sobretudo, sabemos que um dia a morte virá ao nosso encontro. Pensei que quando morresse ficaria absolutamente morta, de corpo e alma, morta para todo o sempre. Assim teria sentido…"


Missanga

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Palavras Versadas


Obliterei o meu amor no dia em que entrei no teu autocarro

Sentada nos bancos de trás
Esperei por entre rostos sem alma
Os teus olhos aquecerem os meus
Descobri serranias ao vento
Estrelas sem norte
Planetas de outras galáxias
Desesperei na espera
Do meu colo sequioso
Paisagens em corrida
Diziam-me que não vinhas
Saí na paragem seguinte
E atirei ao rio mais próximo
O teu bilhete de regresso.


Berenice Greco

domingo, 20 de novembro de 2011

Provocatio


desamor

não morri sozinho se estancámos o vinho
nos copos de prata dos amores de lata

do teu sorriso que não foi preciso
guardei apenas a cópia-pirata

atravessar as luas fora da passadeira
é hoje, meu amor, a noite inteira


Bill enGates

sábado, 19 de novembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


A inteligência sensitiva

Sensibilidade. Sensibilidades. Formas de estar consigo e com os outros. Inteligência de alma e de pele.
Não sei porquê, mas de tudo o que me foi apresentado como passível de ser apreendido pela razão, a possibilidade de inteligir a própria sensibilidade, na sua importância efectiva sobre a vida, sobre o destino dos outros e o nosso próprio, foi sempre o que mais me apaixonou. Esta é uma matéria que analiso desde que me lembro.
Entre diversas nuances e planos, constatei sobre o assunto, a algum custo, que o Ser sensível não é aquele que sente, e ponto. Para se ser um Ser sensível, não basta sentir, porque sentir sentimos todos, coisas pelo menos… O Ser sensível é aquele que reage de acordo (de forma altruísta), ao que os outros sentem e necessitam, tendo em conta que aquilo que os outros necessitam nem sempre corresponde ao que desejam. Os Seres sensíveis percebem, mesmo sem serem pronunciadas palavras, uma série de informação que não está escrita em lado algum, não deixando esta de ser possivelmente a mais relevante das informações. Apenas pelo brilho de um olhar, pela ausência de luz num sorriso, pela forma como se conjugam as palavras aplicadas sobre um assunto que nem sequer interessa… momentos em que eles vêem de imediato o que mais ninguém vê.
Constatei outra coisa, a sensibilidade e a inteligência, na forma como esta é aplicada, não está necessariamente ligada ao nível sociocultural do portador, nem ao grau de formação académica. Não há efectivamente ligação nenhuma entre ambas. Podem ser médicos, cabeleireiros, filósofos, empregadas domésticas, arquitectos, advogados, economistas ou vendedores de flores.
Tenho o privilégio de conhecer Seres excepcionalmente sensíveis, alguns deles meus amigos.


Lucinda Gray

sexta-feira, 18 de novembro de 2011


BLACK DRESS

Ela pertencia àquele grupo de mulheres que se sentam sempre na segunda fila embora desesperadas por se sentarem na primeira. Naquela tarde, quando procurava a sua metade perdida entre os estilhaços que restavam da sua vida, percebeu duas coisas. Uma, que as emoções são o colorido da alma e que não vale a pena disfarçá-las de palhaço; a outra, menos relevante e, por isso, mais interessante, que os corações sobrevivem...


Carmo Miranda Machado

quinta-feira, 17 de novembro de 2011


Penso, logo persisto

A minha experiência é a de que é impossível calar os pensamentos. Tentar calar os pensamentos é dar-lhes uma importância que não têm, é dar-lhes ainda mais poder sobre mim.
Pensamentos são como nuvens. Umas são brancas e têm formas atraentes, outras são escuras e auguram temporais. Nem umas nem outras são reais. Sem o meu apego, os pensamentos voltam para o mesmo nada de onde surgem.
Ainda é enorme o meu apego aos pensamentos. Tudo o que percebo foi construído com eles. Abdicar dos pensamentos é abdicar de quem o eu imagina ser, quem os outros são, é abdicar do mundo percepcionado. Abdicar dos pensamentos é dizer não ao passado e aos planos para o futuro.
Testemunho os pensamentos como um céu nublado, sempre à espreita de uma aberta. Sei que a minha identidade não está neles, mas depois das nuvens, depois do azul, depois do sol.


DuArte

quarta-feira, 16 de novembro de 2011


Todos os heróis são terrenos

Desconfio sempre de quem não tem medo. Não merece ver-se diante de grandes dilemas e situações, aquelas que podem mudar o mundo para sempre. O seu e o dos outros. Ignoro conscientemente quem não sente a dor. É vil ter a ilusão de estar acima do corpo e da alma, correr à frente da velocidade sentida e atempada das nossas células. Cuspo em cima sem saliva, desprezo quem aproveita a fraqueza dos outros. É de uma cobardia soberbamente feita para o "bem comum", que pode roçar a tendência para criar buracos negros na existência, no fundo dos quais caem os fracos quando assim têm de ser.

Amo os que, ao contrário de tudo isto - e inversamente à ordem natural dos que, com um olho feito rei na barriga, reinam entre os cegos -, se vão perdendo e ganhando em todos os seus medos e dores. Pela coragem dos outros.

E desses será um reino.


Ana Santiago

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Palavras Versadas


O TEMPO EXISTE COMO SE FOSSE UMA DANÇA

o tempo existe como se fosse uma dança,
há uma beleza intransigente
ao passar do dia
que se incorpora na morte
em contagem regressiva.
e então
para me iludir dei a volta à desilusão,
para me afastar dei a volta à vontade de parar,
para ser mãe dei a volta à casa das mães.
e nada se me correspondia.
a magnificência eram só palavras que
cresciam todos os dias,
a força comprimia todo o hermético,
as preferências procuravam uma condição melhor.
e tu disseste
seremos felizes como um raio de sol,
lento, iludido, magnífico;
há um rigoroso silêncio a manter,
a entrada é como uma escolha,
a forma é uma ilha que encanta demónios.
e depois um raio de sol pousou
na tua beleza intransigente,
na tua alma esperando o vento,
na dança que dissolvia o corpo no sangue.
e eu fechei os olhos
como um «muito obrigado e até sempre».


Sylvia Beirute

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - E O SEXTO-SENTIDO - (VII) - Provocatio


O SEXTO SENTIDO

Hoje escrevo-te, sentido último, para mim primeiro, que sem ti não sobrevivo...
És o sexto e pressinto-te na mente, corpo, na pele e no som destes dias que passam amarelos. Avisas-me sempre, à mesma hora, para me quedar na viagem...
Mas eu avisei-te que sem rede, me atiro ao abismo, que sem esse voo rasante isto não presta...
E do alto das colinas, do cimo dos montes, sobrevivo à passagem dos dias porque espectadora do que vejo... Sabes tu, que vês mais longe e sabes mais, que vês sempre mais do que é preciso... que a tua visão alcança o longe sem lentes de aproximar...
Acato-te de olhar travesso, quando me apetece partir, num riso que bem conheces, num riso de perceber tudo o que me dizes e mais ainda... num riso de saber que sem mais o teu sentido, sairia de mansinho e sem chorar...
Mas não... porque existes e te partilhas, vou navegando sem bússola os mares revoltos embora tu queiras o navio preso no cais...
Por ti, embriagada de palavras... procuro manter o tino... sim, esse estranho e limitador tino ... e só por ti, por vezes páro esta bebedeira de palavras... se o quiser manter...
Tempus fugit, dizes-me ao ouvido quando me tento esquecer...
...Como é viver com um coração esburacado, amigo de jornada?
Não sei quem te dá crédito...
Sei que não tenho nada para ti excepto o que sou nos meus impulsos...
Eu que me não recomendo a ninguém... eu que não sei fazer mais nada do que ser...
Tu me mostras que talvez tudo isto que sou eu não passe de uma banal vulgaridade, tão banal quanto vulgar...
Talvez pouco elevado face à tua dimensão a qual, suspeito eu, vá muito para além do que por aqui se passa.
Mais que tudo, e agora não digo talvez, sobram-me letras onde me faltam sons.

Por isso, te persigo e te escuto... sexto sentido...

P.S. Texto escrito a pedido num momento em que o sexto sentido se me escapa ou quer escapar. (11/11/11)


Carmo Miranda Machado

domingo, 13 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - E O SEXTO-SENTIDO (VII)


achando o sentido perdido

meditei. pensei. raciocinei. submeti à questão ao mais severo espírito científico. explorei, indaguei. li e reli canhanhos. vasculhei dicionários e enciclopédias. elaborei gráficos, diagramas, organogramas. inventei "electrovideogramas" e até "aeroespacialgramas". cheguei a usar computadores com discos internos e externos, inchados de toda a sorte de informação sobre o tema. passei noites sem dormir, estudei. investiguei até arranhar o inverosímil. contei as estrelas e consultei as videntes. contratei bruxos, cartomantes, profetas e quiromantes. mandei traçar os mais precisos mapas astrais. realizar as mais aprofundadas investigações forenses, médicas e psicológicas. usei lógicas e teorias demagógicas. deitei mão à arqueologia, à sociologia, à pedagogia, à filosofia, à cientologia. e a sem número de "ciências-logias". explorei as teogonias, as teosofias. indaguei junto da santa sofia e das laicas "sofias". revelei epifanias. segui o sentido das parusías. recorri ao labor dos glosadores, dos comentadores, destes e daqueles, dos mais altos doutores. tanto à exegese como à maiêutica. ao saber da ascese e da hermenêutica. usei a inteligência mais artificial e a mais sobrenatural: a do bem, a do mal; a do demónio, a do divino. procurei em todos os estabelecimentos de ensino. nas academias, nas tertúlias, nos becos, nas esquinas, nas avenidas. empreguei na tarefa todo o esforço e engenho que pude. atravessei o deserto e a tempestade. quase periclitei, mas porfiei. um dia dei por terminado o que pensei ainda não ter (haver) acabado. e ainda assim...

tudo em vão. tudo por uma busca que se revelou tão exaustiva quanto inglória. tudo por muito pouco...
no entanto - diz-me o meu sexto-sentido que -, não o podemos nem devemos negar: quem o faz é porque nunca se enganou e raramente tem ideias.


Joshua M.

OS CINCO SENTIDOS - E O SEXTO-SENTIDO (VII) - Crónica Benzodiazepina


O equívoco dos sentidos

Há coisas que sabemos simplesmente, porque sim. O processo que nos leva a esse conhecimento, apesar de nem darmos por ele, não é assim tão simples. Imaginemos um pacato jantar com uma dúzia de amigos e conhecidos. No decorrer do jantar, os nossos sentidos captam todo o tipo de informação: aromas, paladares, gestos, semblantes, olhares, tons de voz, atitudes, silêncios, subtilezas. Muita desta informação fica registada no nosso consciente. Contudo, captamos também, de modo inconsciente uma variedade quase ilimitada de informação que fica devidamente armazenada no nosso cérebro. Nem sabemos que a possuímos até precisarmos dela, até tomarmos uma atitude que percebemos não ter nada de concreto a suportá-la mas que nos parece a mais correcta, sem sabermos muito bem porquê. É o sexto sentido, ou pressentimento, ou intuição ou, em inglês, “feeling”. Não é proveniente de artes mágicas ou de poderes sobrenaturais. Não se adquire numa qualquer loja de esoterismo. Existe, simplesmente, em cada um de nós. Envolve a comunicação entre os dois hemisférios cerebrais: o esquerdo, racional, onde são armazenadas todas as coisas concretas - números, palavras e regras; o direito, responsável pela linguagem não-verbal - símbolos, imagens e sensações. Relacionar os dois é intuir.
Quantas vezes sabemos intuitivamente coisas que preferíamos não saber? Quantas vezes ignoramos o nosso sexto sentido porque queremos continuar a viver uma ilusão qualquer? Muitas.
Estarão os pressentimentos sempre correctos. Provavelmente não. A informação é transmitida ao cérebro através dos nossos outros sentidos. E os nossos sentidos podem também enganar-nos…


Missanga

sábado, 12 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - VIVER COM TODOS... (VI)


Em todos os sentidos

A catástrofe era previsível, eminente, o sol estava cada vez mais próximo e era inevitável que desabasse antes da lua nova. Eles sabiam que o dia chegaria, mais dia menos dia, mas não estavam certos quanto à data. O evento fora aprazado há anos entre todos. Chegara o momento, o dia esperado. Todos o aguardavam com um misto de impaciência e nostalgia. O banquete estava a ponto de servir, a mesa posta a rigor, com todos os luxos e mordomias à disposição dos convivas que começavam a chegar. Eram apenas um grupo de amigos que, a si próprios, tinham prometido realizar uma festa sem fim. Uma festa até ao fim dos dias.

A Visão de Pan

No início de Maio, quando as terras transpiram as derradeiras águas de inverno, ainda os prados estão viçosos. A primavera cobre os campos de flores, pinta-o de todas as cores e matizes. Pela hora do meio-dia, o astro atingia o zénite sobre o centro do terreiro onde haviam improvisado a grande mesa. A paisagem estendia-se tranquila e verdejante. Os raios de sol ofuscavam o olhar deixado no encanto da paisagem. O calor derretia as silhuetas dos que ao longe se iam avistando, dos que se iam fazendo perto do fim do caminho. Voltavam a encontrar-se, para não mais se separarem. Era bom verem - reverem - todos aqueles amigos, com um sorriso aberto nos olhos. Conhecer os amigos dos amigos, porventura novos amigos.

O Tacto de Hedoné

À medida que iam chegando cumprimentavam-se efusivamente, com beijos ternos, prolongados apertos de mão que se convolavam em abraços amigáveis, mãos batidas nas costas. Sob o sol ardente o suor ia abrindo os poros e inundando o corpo. Um conjunto de sensações sitiava a pele. A mesa do banquete convidava ao repasto, com loiças imaculadas, finos copos de cristal. A toalha era de linho áspero, ao pousar as mãos, sentia-se cada entretecer do movimento do tear, como se a pele absorvesse toda a sua história pela textura, todo o seu ciclo - de semente a pano cru.

O Olfacto de Grenouille

O respirar da natureza deixava no ar uma infinita mescla que invadia docemente o nariz. O acre do limão e do vinagre temperava-se com o cheiro adocicado das flores e do mel. O delicado bouquet dos vinhos casava por amor com o aroma da fruta madura. A sombra e o odor da tília pairava sobre a frescura da hortelã e do manjericão, do alecrim e do aloendro. O cheiro de especiarias vindo da cozinha divagava ao sabor da brisa quente do suão, mesclava-se em torrentes de ar com o odor dos perfumes da natura. Entretanto, já sentados à mesa, os convivas salivavam ao sentir próximo o começo do festim.

O Paladar de Pantagruel

Atiraram-se com ganas ao repasto por volta da hora do meio-dia, cada qual de talheres em punho, aparentando uma fome de séculos. Na mesa, havia de tudo: as melhores iguarias, a doçaria mais fina, os mais raros manjares, os néctares mais exóticos e estranhos. Num frenesi gustativo deglutiam, degustavam, sorviam, arrotavam, apreciavam. Engoliam, bebiam e voltavam a beber, a espaços, com brindes, com palavras votivas de que o prato, o vinho seguinte, seja ainda mais delicioso. A cena intercalava com o vómito de alguns, com a sesta de outros e a cavaqueira dos resistentes, que se prolongavam numa infindável degustação etílica.

A Audição de Ulisses

Por uma larga hora, apenas o silêncio cortado por murmúrios de satisfação, apenas o zumbido das moscas sob o calor estival. Na cabeça de cada um, a percussão maquinal das mandíbulas induzia ao êxtase. Como se um inaudível canto de sereias encantasse os comensais, deixando-os em transe com as suas melodias. Sem desviar os olhos do prato, sorriam como se o sol reflectido na porcelana lhes cantasse, ele próprio, metido entre coribantes, bailando ao som da flauta e do címbalo. Por vezes, pausavam para necessidades, para uma sesta sobre as ervas. E por ali se foram quedando, dominados por aquele encanto sonoro, numa folia sem tréguas.

Até perderem os sentidos. Até ao fim dos dias do sol...


Joshua M.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - VIVER COM TODOS... (VI)


Na Ilha dos sentidos

Saborear um bom vinho, de uma casta rara e deliciosa. Bebê-lo lentamente, sentir-lhe a textura, descortinar-lhe os aromas, pouco a pouco, sem pressa.
Ler um livro devagar, voltar atrás, reler passagens, sublinhar, compreender as entrelinhas. Retornar a ele, tempos depois, e constatar que um bom livro pode ler-se inúmeras vezes e, de todas as vezes, encontrar sempre algo novo.
Olhar o mar revolto de inverno e os mares serenos de verão. Olhar e perder-me em mim mesma, sem pressa de me encontrar.
Ouvir as notas das “minhas” músicas rodopiarem pela casa, animando-a de vida, enquanto eu, indolente, me espreguiço na chaise longue, semi-aninhada nos braços fortes de Morfeu.
Fazer amor lentamente, como se o tempo tivesse parado, como se nem sequer houvesse tempo. Beijar-te a alma nua, sem reservas. Repousar no teu corpo, sabê-lo na ponta da língua, contar pelos dedos todos os espaços, todos os teus segredos, os teus caminhos que me levam ao paraíso.

Sempre, com todos os sentidos bem despertos!


Missanga

OS CINCO SENTIDOS - VIVER COM TODOS... (VI)


O poder de um sentido

Estando os Cinco Sentidos reunidos em pessoa livre e consciente a pedido de uma voz activa, propunham-se deliberar em assembleia sobre qual dos sentidos deveria deter o poder sobre os outros.  Os opositores na candidatura à cadeira do poder sensorial digladiavam-se com bravura, esgrimindo desde os mais nobres aos mais baixos argumentos (em política importam os fins e não os meios). Todos realçavam a sua especial importância, o seu determinante papel na expressão do ser.

Foi então que a mesma voz (agora altiva) declarou aberta a sessão:

Na primeira fila estava logo a Audição, que bocejou e se estirou na cadeira como se tivesse ouvido o bater da hora da sesta.

O Paladar e o Olfacto, feitos um com o outro, segredavam e conspiravam entre pigarreares de garganta e fungares de nariz. Já tinham uma gizado uma estratégia para atingir o poder e poucas hipóteses teriam os outros, cada um por si, de conseguir força e engenho suficientes para derrotar estes dois em conluio. A língua inquieta dava voltas pela boca fechada a custo, detinha-se entre um palitar de dentes e uma última engraxadela no esmalte. Enquanto isto, a saliva ameaçava extravasar pelos cantos da boca e tombar em jorros de baba.

Logo a seu lado, a Visão, que observava pelo rabo do olho o comportamento da vizinhança – “nem chus, nem mus”. Os olhos estavam inquietos, giravam por toda a sala como um radar. Detinham-se no rosto espelhado, fixavam-se no esgar de escárnio afivelado na boca (que parecia exprimir o que o Paladar e Olfacto nos bastidores lhe ditavam). Depois mirava as orelhas, mas estas permaneciam imóveis, sempre em modo de escuta (ou não!?). Irrepreensíveis, como soldados montando zelosa guarda aos segredos que escutam e guardam num túmulo de silêncio. Tudo para que a boca não saiba, ou dará no trombone.

De repente, com ares de sábio, levantou-se da bancada o Tacto e disse: “ - tenho estado aqui a ouvir-vos, a tentar entender-vos, e das razões que cada um afirma retiro uma conclusão – pareço ser o único candidato à liderança dos sentidos, com condições e carisma para exercer esta nobre e responsável magistratura. Pois lembrem-se que estou por todo o lado e por/para isso disponho do maior órgão do corpo humano, a pele. Sem mim todos vós estaríeis perdidos, expostos aos raios solares abrasadores do verão e aos rigores dos frios e neves do inverno, aos banhos e alimentos gélidos ou escaldantes. O efeito dos elementos sobre a vossa carne ainda viva, por-vos-ia em trânsito acelerado para o outro mundo.”

Anos se passaram desde que o Tacto começou a governar os sentidos, por vezes surge uma revolta de um ou outro dos sentidos submetidos, algumas delas pensam ser revoluções com êxito, mas a breve prazo levam invariavelmente à loucura e ao desvario.


Joshua M.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - VIVER COM TODOS... (VI) - Provocatio


Sim, com sentidos...

Gosto de olhar o som das folhas embriagadas com o vento
De tocar o aroma das cores de Outono
Provar as formas de um corpo que treme
Pintado de suavidade musical.


Berenice Greco

OS CINCO SENTIDOS - VIVER COM TODOS... (VI)


Enlouquecer até à liberdade dos sentidos

Estou exausta, completamente exausta. Exausta de tudo, exausta desta vulgaridade toda, exausta das pessoas e do seu ridículo desejo: a igualdade. Estou exausta da minha escrita primária sem fundamento, exausta do meu fingimento e da minha aparente (in)sensibilidade, exausta da minha visão, do meu olfacto, da minha audição, do meu tacto - tudo me sabe a nada. Completa e absolutamente exausta da minha imobilidade e da minha extraordinária capacidade de deixar passar diante de mim coisas que não quero perder. Estou exausta desta enfadonha e asquerosa exaustão!

Quero sentir liberdade!

Quero cometer uma loucura!


Joana Santos

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - O PALADAR (V)


Aquele músculo indomável

Tó Xico era insondavelmente de uma estranheza quase virginal. Ninguém, ou quase ninguém, sabia quem ele era ou foi. Dizia-se que fora um bicho-do-mato, dizia-se que tinha sido um lobo-do-mar. O que era certo é que, ao olhar para o Tó Xico, se sentia uma espécie de ardor na língua que adivinhava um sabor agridoce se o fitássemos nos olhos.
Por isso, Tó Xico vivia numa antiga mina abandonada, de acesso difícil pela estrada já varrida da face da Terra graças a uma erosão acelerada e de acesso inconscientemente negado pela futilidade que aquele espaço oferecia ao resto da população que gostava mais de se dedicar ao diz-que-não-disse.
Tó Xico arrastava-se, todos os dias e desde há anos, que não sabe contar, numa dolência silenciosa provocada por uma rinalgia aguda, que lhe afectava o olfacto. Tinha um nariz com forma sigmoidal que, se visto por alguma prerrogativa caída dos céus, provocava gargalhadas repetidamente ecoadas por montes e vales ainda desconhecidos. Por isso, Tó Xico, condescendente há muito com a sua fatalidade, deixava-se esquecer no seu buraco onde se dedicava a práticas pouco convencionais. Era um tirossemiófilo desde tenra idade, levado pela moda de recolectar tudo o que fosse desnecessário para, quem sabe, um dia, enriquecer à custa deste hábito tão inócuo como infecundo. Era também um glicófilo incurável que só se continha porque não saía de casa. No entanto, quando era gente do mundo, como os outros do diz-que-não-disse, recolheu tantos e muitos que precisaria de uma vida toda para os catalogar. Mas o que ele gostava mesmo, e apesar de sua rinalgia ser uma déspota inclemente, era ficar segundos a exercitar as papilas gustativas para depois expô-las e roçá-las em ritmo ternário, graças ao monstruoso músculo de que dispunha na boca, nos pacotes de açúcar virados do avesso. Eram momentos de deleite de uma exclusividade divinal, sob o ponto de vista de este homem pouco habituado à loucura dos sentidos. Naquele dia teve uma ideia algo acídula: descer à vila, enfrentar os alucinados do quotidiano, embrenhar-se no mercado municipal e comprar uma série de iguarias que tranquilizariam as suas insaciáveis papilas gustativas. Regressou com funcho, salva, açúcar mascavado, alcaravia, cerefólio, cravo-da-índia, entre outros acepipes para o paladar.
Tó Xico ignorava conscientemente em que se metia, mas a ideia era mesmo essa: a surpresa e o estranhamento na língua. Sim, aquele músculo indomável que se mantinha na sua boca e que, mais do que tudo, temia uma glossoplegia.


Berenice Greco

terça-feira, 8 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - O PALADAR (V) - Provocatio


Uma história de amor verdadeiro!

Aqui está a prova da ligação amorosa entre gorgonzola e morango. Um caso insólito, mas gelidamente apaixonado. Pena não ser um amor eterno, como deveriam ser todas as histórias de amor. Estes dois, lá nisso, são sinceros e só prometem o que está ao seu alcance: prazer, puro prazer (e sem tempo a perder!)  

yep, yep, yep

shlep, shlep

yupi, yupi

yuhuuu

PS: para a próxima gorgonzola vou-te levar a sentir o cheiro bravio de outros frutos do bosque, acho que vamos gostar muito.


Iolanda Bárria

OS CINCO SENTIDOS - O PALADAR (V)


Na língua dos sentidos

No mundo da culinária, o lume brando é um conceito sábio. O aquecimento gradual e ponderado potencia o sabor, minimiza os riscos de esturrar as iguarias e de queimar a caçarola. Já no mundo das emoções, o lume brando é um sarilho. Elas precisam de ferver. De borbulhar. De fazer saltar a tampa nos locais mais insuspeitos. Precisam de excesso de vapor e de pimenta. Na língua dos sentidos. Pois a chama curta corre sérios riscos de se desvanecer. À mínima corrente de ar.


Bruno Vilão

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - A AUDIÇÃO (IV)


Quando os sinos se dobram

Acordo e sinto o ar pesado à minha volta. Tento mexer-me e percebo que não consigo. O corpo não me obedece. A escuridão envolve-me. Não sei onde estou. Os dedos, consigo mexer os dedos das mãos e consigo ouvir, vindo de muito longe, o som de um sino. A escuridão continua imensa, impenetrável. Não há fresta de luz que a quebre. E ao longe, o sino. Tento lembrar-me de alguma memória antes deste acordar tão silencioso e solitário. Em vão. O silêncio assusta-me tanto como a minha imobilidade. Apenas o som do sino, lá longe, muito longe.

Junto ao minúsculo sino um bêbado ressona álcool, rodeado de garrafas vazias de vinho barato. O tilintar quase incessante do sino quebra o silêncio de morte tão característico daquele local. O bêbado acorda por alguns segundos e ouve o sino. Olha-o descrente. “As coisas que o vinho faz. Então o morto agora puxa o fio do sino!?”. Enroscou-se melhor junto à campa e continuou o seu alcoolizado sono.


Missanga

domingo, 6 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - A AUDIÇÃO (IV) - Provocatio


J'ai choisi une fenêtre de verrre

Oui, oui, j´aime bien du pain chaud!
Et (du) Chopin, aussi.

Mas não gosto de me pentear!
E ainda gosto menos de comer caracóis. Nem mesmo quando eles se chamam escargots e até conseguem ter uma aparência sofisticada e deliciosa. Blargh! Non, merci! Mas não me importo de ficar ali sentada a ouvir, les escargots para cá, les escargots, para lá.
Des escargots... j´aime bien le dire!


Iolanda Bárria

OS CINCO SENTIDOS - A AUDIÇÃO (IV)


Silêncios intermitentes

E de novo aquele som. Ouvia-o, distintamente, quebrando o silêncio da noite. Não o ouvia sempre, nem continuamente. Surgia de repente, no silêncio, sempre no silêncio. Parecia vir dos confins da terra, um rumorejar de abelhas abafado e novamente o silêncio. Havia quase uma semana que aquele som lhe interrompia o adormecer e a deixava inquieta. Perguntou aos vizinhos. Nenhum ouvia tal barulho. Pensou que fosse imaginação, tão súbito era o som para logo deixar de o ser. Percebeu que o gato também o ouvia. Ficava, como ela, quieto e atento. Seriam fantasmas? Dizem que os gatos vivem entre dois mundos: este e o mundo dos mortos. Uma noite, porém, o som foi mais intenso. O leve rumorejar tornou-se assustador. Parecia vir das entranhas da terra. A cama abanou, algo se quebrou na sala, ouviram-se gritos. A seguir, de novo o silêncio…


Missanga

sábado, 5 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - A VISÃO (III)


Considerações nada concisas sobre o excesso

Ludovico não era um desses homens vulgares. Era um homem feio.
“ - Desumano, de tão feio”, ouvi-as dizer, entretidas a descaroçar frutos difíceis para a geleia.
Há algo nas pessoas feias que nos faz querer continuar a falar delas e sobre elas e eu não estou muito certa sobre a razão disso. Deve ser do excesso. Como não prestar atenção ao que nos ultrapassa?

Ludovico era um homem feio e não deixou a Lourença outra alternativa senão a de sucumbir ao excesso e cair desamparada numa paixão que elas diziam louca, mas que se veio a revelar cega.


Iolanda Bárria

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - A VISÃO (III) - Provocatio


Uma visão celestial

Se o céu se move, por que paramos nós? A estrelas dançam num ritual de chamamento, querendo emprestar-nos o seu brilho que, por vezes, não vemos. Ouçam, de olhos fechados, para ouvir melhor.


Berenice Greco

OS CINCO SENTIDOS - A VISÃO (III)


Ver. Sombras.

Não vi nada, Vi.
Nada!
Não há grande mal nisso,
o Borges também não via nada!
quer dizer,
via sombras, isso dizia que via
e pelas sombras pode-se saber muito do mundo e de quem anda nele.
Não me recordo se pela voz da Ana, da Mercília - não, a Mercília, não! - , ou dele próprio,
o ALA, às tantas, pergunta:
" - Que senhor é aquele que não faz sombra alguma?"


Iolanda Bárria

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - O TACTO (II)


A linguagem é uma pele

Se o Barthes tiver razão, «a linguagem é uma pele»: esfrego a minha linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras. Mas é apenas a minha linguagem que treme de desejo. Daqui nascem todos os equívocos e toda a perversão-subversão dos sentidos.

Quando de facto tacteio, o desejo dissolve-se na ausência da linguagem na extremidade dos dedos. É apenas tacto. É apenas dedos. É apenas pele. É somente um forjar estético do desejo da linguagem.

Não me sinto tocado. Apenas as palavras tacteiam a minha pele. E permaneço como uma página em branco, de caneta quedada ao lado, desprovida de inspiração para expressar o desejo.


Bruno Vilão

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - O TACTO (II) - Provocatio


No topo do Tacto

Agora é o chamamento da Natureza.... oh, tanto que dizer.... Abram os olhos e ouçam na pele, nas papilas gustativas, pelos olhos ou pelos dedos, mas sintam por inteiro.


Berenice Greco

OS CINCO SENTIDOS - O TACTO (II)


Raridades

A Vi já tinha ficado banzada com os cuspidores de fogo que viu, certa vez, em Ankara!
Depois disso, ainda conheceu, em Goa, uma criatura que caminhava sobre pregos e vidros e se deitava plácido, sobre chapa incandescente.  E uma outra que revirava uma lâmina na língua, enquanto choramingava canções de amor, pelas ruelas escuras de Djémila, na Argélia.

E os espantosos engolidores de peixe cru?
já viste algum, Vi?


Iolanda Bárria

terça-feira, 1 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - O OLFACTO - (I)


Pelo odor das palavras

Nasceu sem olfacto. Nunca se deliciou com aromas divinos, com o cheiro da castanha assada nas ruas de Outono, com o cheiro a terra molhada depois duma chuva de Verão, com o cheiro a maresia, com o cheiro do café acabado de fazer, com o cheiro a pão quente. Do mesmo modo, desconhece o fedor da bosta, da comida estragada, das lixeiras a céu aberto, das casas de banho públicas. Conhece, no entanto, cheiros mais subtis, aromas que passam tantas vezes despercebidos a possuidores de faros apurados: identifica de imediato o cheiro do medo, o aroma da mentira, o inigualável perfume do sexo, sem nunca se enganar. Quiseram estudá-la. Fugiu e arranjou emprego numa loja de perfumes. Sabe de cor todas as composições, os diversos tipos de aroma e tornou-se a vendedora preferida de todos os clientes. Ninguém sabe do seu pequeno “defeito de fabrico”.


Missanga