sábado, 30 de abril de 2011

Crónica Benzodiazepina


Saber receber

Há países e cidades com uma enorme vocação para receber. E não é só por mero interesse, ou porque dispõem de estabilidade social e política. Vai muito das suas gentes, que se habituaram a ter e conviver com os de fora, com naturalidade. Nem sempre sem animosidade.
Receber os outros é uma enorme e inestimável qualidade mas, por razões diversas (entre as quais uma desconfiança e tacanhez também fruto dos condicionalismos geográficos), muitos povos não a desenvolveram. Nós. Nós, que andámos a cravar quinas em todos os cantos do mundo e a ser recebidos um pouco por todo o lado para fugir à pobreza extrema, ou às perseguições e à asfixia da ditadura, não estivemos à altura de receber os nossos, os da pátria, que fugiram de uma guerra, em 75. Recebemos, que remédio, mas com hostilidade e com inveja, até. Isso diz muito de nós.
Temos a casinha aberta é certo, mas se não vierem...
Quem recebe bem, recebe sempre da mesma maneira.
Nos últimos anos, temos feito um esforço para conviver com os de fora, estamos a aprender, mas isso não nos dá entrada no restrito círculo dos países e cidades que sabem receber. Na fila, a anos luz de nós ainda estão Amesterdão, Berlim, ou até Barcelona. Imagine-se!  
Na Europa, os países com mais longa e mais forte tradição de receber de braços abertos e em doses massivas são a França e a Inglaterra. Eu acho mais correcto dizer: Paris e Londres. 
Nova Iorque não fez mais do que imitar o que, noutros tempos, fizeram Paris e Londres. Duas cidades grandiosas, que durante décadas receberam, receberam e receberam (é injusto não nos lembrarmos disto agora, nos momentos menos bons).
Hoje, não se entra nestas cidades com a mesma facilidade. Há muros e arame farpado. Há expulsões. Há medo. Falta emprego. Há uma sangria de conflitos e tensões sociais acumuladas.
Nada mais vai ser igual.
Isto não faz delas cidades mais xenófobas do que Lisboa.

(Acho excessiva e até absurda a ideia do colapso do multiculturalismo, como defende Angela Merkel, mas acho corajoso levantar a questão e obrigar-nos a pensar nisso).


Iolanda Bárria

sexta-feira, 29 de abril de 2011


A nova era

Pressentimo-la. Uns mais, outros menos, mas, como uma espécie de substância psicotrópica, essa percepção vai entrando lentamente na corrente sanguínea até dos mais alienados ou pragmáticos. É incontornável. O mundo, tal como o conhecíamos, está a mudar. O ser humano também. Não vale de muito a pena dizer como é que a mudança se está a processar. Basta dizer que a mesma se opera a vários níveis, abrangendo áreas tão vastas como a economia, a forma de estar, a consciência. Para uns, este barco, que lentamente abandona o cais, está ao seu alcance. Não o entendem, mas sabem instintivamente que aquele é o barco a seguir. Para outros, é o desnorteamento total. Apegam-se ao velho e ao conhecido como náufragos a uma bóia e quando já não há mais chão enlouquecem. Sempre houve loucos, desequilibrados, inconscientes. Mas há pequenos/grandes acontecimentos que actualmente me sugerem outra coisa. Há qualquer coisa de desnorteamento que atinge níveis verdadeiramente macabros onde antes não se supunham. Esse fenómeno também atinge diversos níveis, politica, economia, consciência (ou ausência dela).
É curioso o efeito que esta constatação tem em mim. Assisto à distância às notícias do dia. Fico pasmada com o que ouço. Por outro lado, uma saliva de desejo de renovação brota-me das glândulas salivares. Sinto-a a chegar, essa "Nova Era", vejo-a a espalhar-se como uma névoa cinzenta, lenta e majestosa. Por vezes, o velho tem que cair para se erguer o novo.


Lucinda Gray

quinta-feira, 28 de abril de 2011


No amor e na guerra vale tudo?

Uma pessoa especial afirmou isto várias vezes na última semana ao ponto de me fazer pensar sobre o assunto. Será que no amor e na guerra vale mesmo tudo? Tenho dúvidas. Não me parece que assim seja. Quando se perde no amor, ganha-se na experiência e enriquece-se a história de vida. Não faço a apologia do "vale tudo" porque tal me parece serem os trunfos de quem joga sem regras. O amor é um jogo de trocas, de dar e receber e, quando perdemos alguém para outra pessoa, temos de saber aceitar essa opção. Por mais que doa. Por mais que apeteça gritar. Mas não vale fazer um jogo sujo, cobrar, chantagear... As almas superiores são apenas aquelas que aceitam e deixam o rio caminhar. E são tão poucas...


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 27 de abril de 2011


Afasta de mim esse sorriso

Caminhava descalço pelo tempo. O trilho do futuro apresentava-se enevoado e não tinha acordado contemplativo o suficiente para descer rumo ao passado. Ali é que não podia permanecer. Então quedei-me, imóvel. À espera. À espera que a neblina se tornasse menos densa ou que o desejo da contemplação me magnetizasse e me precipitasse por uma incursão às entranhas das memórias. É curioso quando nos iludimos imaginando ter poder sobre estas coisas. “Se não me mexer nada acontece”, “o que não vês não existe” e todas essas ideias inúteis. Tivesse eu recordado a lição do Maomé e da Montanha e teria percebido que a imobilidade não é um lugar assim tão seguro. Então, sem pré-aviso, embatemos contra os vestígios do passado. Minto. Contra o passado em peso. A fluidez verbal torna-se trôpega e a noção de equilíbrio é desafiada. É que aquele sorriso pode ser trágico. Conhece demasiado bem a trama desta tragicomédia. Aquele sorriso quebra qualquer simetria. E alimenta os monólogos interiores. Com lábios que assinalam o caminho da aventura. Por momentos esqueço-me que conheço o mapa da ilha do tesouro. Porque sim. Porque aquele sorriso recorda que a vida é demasiado curta para a longevidade da sua singular subtileza. E porque desvenda contradições reafirmando o que nega. Não vá esse sorriso tão hipnotizante resgatar-me... uma vez mais...


Bruno Vilão

terça-feira, 26 de abril de 2011

Palavras Versadas


ADIAMENTO

não posso adiar para outro século a minha vida / nem o meu amor / nem o meu grito de libertação /  
Não posso adiar o coração. 

António Ramos Rosa

foi adiado o poema. adiado para a obra
de uma outra língua,
onde muita gente tem talento e vida,
o azul é fragmentário sobre
as tonalidades do imprevisível.
e não resta nada de infância no poema.
ele nasceu no lastro de um desejo maduro
e expõe a esperança através do ilógico.
foi adiado o poema porque a música
lhe parecia uma imagem diferente
e o povo desta nossa língua 
não presta muita atenção às frases.
e o todo: não existe. existem começos.
começos-inícios-princípios.
começos que fingem ser fins, e estes
finalidades retóricas de outra espécie.
e nada disto existe hoje, e o poema foi adiado. 
enviado aos deuses. adiado.


Sylvia Beirute

domingo, 24 de abril de 2011

Provocatio


SO WHAT?

Sim, sobra-me viver, que é bem giro. Sim, estive em Barcelona. Sim, dormi no quarto de um anarco-sindicalista. Sim, fui a um bar barroco lindo. Sim, conheci uma aventureira alemã especialista em "branding". Sim, conheci um gay que edita a maior secção de uma revista de grande sucesso. Não, não me chega. Falta-me uma coisa essencial. Sabes o que é? A paz de espírito que só surge quando se ama e é amado incondicionalmente, mantendo individualidade e liberdade, sem querer prender o outro a nós mas sentindo a plenitude do encontro.


Carmo Miranda Machado

sábado, 23 de abril de 2011

Crónica Benzodiazepina


Alucinómetro

Quando acordo e julgo que vejo o Willem Dafoe a andar de bicicleta na aldeia onde vivo e imagino freiras a dançar o "You’re the one that I want", tenho a certeza que o meu alucinómetro disparou. As luzes vermelhas piscam histéricas em sinal de alarme, o som ensurdecedor berra que nem uma criança a quem se tirou o pirolito e eu continuo indiferente como se tudo fizesse parte da anormalidade em que me vejo metida. A culpa só pode ser da crise e do governo. É tão fácil enfiar-lhes a culpa como se fossem um frasco de tampa hermética que eu vou fazê-lo sem pruridos. Não vejo outra hipótese, outra alternativa ou opção de escolha (se estão a ver aqui algum pleonasmo, isso significa que devem adquirir um alucinómetro como eu, porque as alucinações já estão aí). Adiante.
A culpa é deles e eu não tenho culpa que eles tenham as costas largas. Têm corpo para arcar com todas as responsabilidades como tiveram o desplante de se armar em senhores e reis de um reinado que não os soube mandar para o poleiro. Ouvi até dizer que eles pensam que têm o rei na barriga. Agora querem mandá-los para outro sítio, mas o galinheiro já está conspurcado até às orelhas que as galinhas não têm. Quem irá limpá-lo? Nós e sem alucinações. Estranhamente, está a apetecer-me agora algum prato de galo do campo aromatizado, regado com cerveja e natas. Mais uma alucinação, neste caso, do paladar. O meu alucinómetro está a entrar, inconsolavelmente, em desvario.
Questiono-me sobre a razão que me impele a atirar a culpa das minhas alucinações – que metem actores de Hollywood e freiras recatadas onde não devem estar – para a situação em que vive este país e os tais senhores que deviam estar regados, eles sim, com a cerveja e as natas. As respostas surgem-me de rompante, desgraçada e irremediavelmente em modo de tsunami, e eu sinto que quase preciso de um elefante branco para lhes barrar o caminho, não sei é porquê. Na verdade, sei pouco e, em matéria de porquês, só sei este: quando os euros que ganho desaparecem de seguida sem eu me dar a futilidades e devaneios supérfluos ou até necessários (falando de devaneios), a minha cabeça não pode senão imaginar uma realidade que não existe, tão-só porque se recusa a aceitar a real realidade (mais uma alucinação vossa) de que ando para aqui para pagar os caprichos de certos galos que só querem cantar em cima do poleiro.
Pois, no momento em que me deparar com o Willem Dafoe no seu Porsche (nem sei se o terá) ou assistir ao musical do Grease protagonizado por qualquer freira cá da terra, saberei de imediato que pago ao país o que lhe devo justamente e sei com rigor para onde vão parar os meus euros. Nessa altura, também, a minha consciência ecológica me ditará o reflexo, incontrolavelmente condicionado como os de Pavlov, de enviar o meu alucinómetro para reciclagem. Se não estiver completamente obsoleto, estará claramente gasto por excesso de uso.


Berenice Greco

sexta-feira, 22 de abril de 2011


Cândida como os anjos

Tinha apenas nove anos e o ar austero e anafado de um anjinho barroco. Era gorda, gordinha, medidas que lhe realçavam aquele aspecto angelical. Era antipática, tinha a face rosada, tinha os olhos fundos e frios e olhava tudo com ar de desprezo. Gelava-me com o fundo vivo dos seus olhos castanhos enterrados e perscrutadores. Era branca como cal pura, queimava a sua brancura. O nariz mesquinho parecia apontar em todos os sentidos, empinado, como se fera que farejasse a presa. Entrava e saía sem um "bom dia", sem um "adeus", sem um olhar doce, ou uma mão timidamente abanada em sinal de ida ou de chegada. Nunca me dirigiu a palavra, nem um trejeito sequer, sempre pedra sem eco, sempre mutismo sem língua viva. Passou-se um ano inteiro, fizemos exames na mesma carteira: era melhor aluno que ela e ajudei-a. Nesse dia, entre o nervoso da prova e o amarfanhado papelito que lhe passara sorrateiramente com algumas respostas, quase sorriu, quase um esgar de agradecimento, quase um esboço de palavra. Acabaram as aulas, estava terminada a quarta classe e feito o exame de "admissão", íamos agora para o Liceu. Fomos de férias, aquelas férias grandes que nunca mais acabavam. Nunca mais a voltei a ver.
Chamava-se Cândida.
E nunca compreendi porque gostei dela...


Joshua M.

quinta-feira, 21 de abril de 2011


Bichinhos de conta

Há dias vomitei à saída da tua casa. Deves ter reparado, e não te deve ter sido nada difícil perceber que fui eu. Devia ter-te dito, mas na verdade não aconteceu nada de original, passei inadvertidamente por tua casa e encontrei aquele bichinho de conta. Foi só.
É certo que eu já o conhecia por ali, mas sempre o ignorei: quando queremos muito, muito... não é um bichinho de conta que nos assusta.
Até ao dia em que aconteceu o inesperado, uma repulsa. Consegui sentir-lhe o cheiro desagradável (até tinha ideia que estes bichinhos não tinham cheiro), aquele andar dissimulado, fingido que se enrola, assustadiço quando nos aproximamos (atento às fragilidades e a querer atenções).
O meu estômago reagiu antes de mim. O meu estômago não o suporta. E isso é um alívio!


Iolanda Bárria

quarta-feira, 20 de abril de 2011


Parecemos putas vaidosas, a mostrar quem tem menos foguetes nas meias

Como escrever com poucas palavras a doçura de um olhar. Como deixar espaço para os outros se sentarem ao nosso lado.
Que fazer se as ideias rasgam as páginas melhor escritas se, nas subtis sombras das letras pequenas, não podemos sentir a frescura de um final de tarde primaveril.
" - Veste a minha camisola. Senta-te aqui."
Estamos cansados de nada fazer, a correr de um lado para o outro, inventando motivos para fazer mais do mesmo. Pareceu-me uma boa ideia, a sua sugestão.
" - Vá lá! Senta-te um pouco..."
Este pedaço de calçada é motivo suficiente. A carrinha que transporta a mercadoria, abriga a desfeita que fazemos à cidade que passeia nas nossas costas. Três raparigas segredam que dois homens perderam a vergonha e namoram. Abrandam o passo e espreitam o que dizemos baixinho.
" - Sofia, Paula, que miséria não saber o que fazer com a vida. Com as mulheres que nos confessam amor desde sempre.
 - Porque não lhes ligas? 
 - Porque não sei o que dizer. Tudo me parece menos. E cá dentro..."
Um homem que não regula a mente com a destreza da maioria, pergunta quem somos. Se a carrinha é nossa e se temos um cartão de empresa. Digo que sim, que não é costume estarmos sentados assim sem fazer nada, mas o peso de erros constantes, travara a ideia de voltar para casa. O Pedro retira um cartão da carteira e pede-lhe que desenhe o mapa para sairmos desta encruzilhada. Olha para o logotipo e pergunta-nos o nome.
" - Sou o Pedro. 
 - Eu sou o Duarte."
A loucura deste homem...
" - Duarte e companhia!!!"
E afasta-se de nós, dirigindo-se a duas senhoras de idade que sobem o passeio, interpelando-as.
Não quero adivinhar mais nada. Nem as palavras que não sei escrever, nem as imagens que pinto antes de dormir. Nada parece fazer jus ao teu olhar.
" - Vamos?"
Ele desenhara um nome no cartão. Talvez até tenha razão. O louco.


DuArte

terça-feira, 19 de abril de 2011

Palavras Versadas


TALVEZ BANCO

Foi antes de nascer que nasci
um pássaro pousa nos meus lábios
a noite estatela-se no solo
levem o moinho e deixem-me
talvez banco
talvez lençol branco
talvez a jacto
talvez agora
talvez louvado seja
talvez violino
depois de morrer morrerei


João Belo

domingo, 17 de abril de 2011

Provocatio


Cupido

É uma das mais belas profissões do mundo. Eu já tentei, mas não me dou bem... Ou se separam amuados, ou nem querem saber dos meus conselhos. Que coisa.


Ana Santiago

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Crónica Benzodiazepina


NÓS, QUE SOMOS DIFERENTES DAS OUTRAS

Ok, chamem-me nomes... vaidosa, convencida... com a mania que sou boa..., enfim, um rol de designações que me enternecem. Mas não, nada tem a ver com isto. Nós, que somos diferentes das outras, pertencemos a um grupo restrito de MULHERES que se sentem livres e que, por isso mesmo, provocam a raiva dos outros, especialmente daqueles que estão agrilhoados das mais diversas formas e não sabem viver de outra maneira. Algures li (não sei já onde) que quando uma mulher se sente livre, o mundo escandaliza-se. E não se trata aqui de estados civis, transitórios por essência... que nada mais são que uma invenção estúpida do homem se limitar a si próprio... Nós, as mulheres que somos diferentes das outras enternecemo-nos com a felicidade das outras; rimo-nos com o absurdo; apoiamos quem precisa de apoio; não vemos na outra uma possível rival; não dizemos a uma amiga que está magra quando ela não está; não copiamos as outras simplesmente porque não precisamos: conseguirmos inovar; sobretudo, não temos medo de amar e de assumir que amamos! Amo as minhas amigas. Uma "amizadamor" que se recria a cada dia que passa. Já tive uma ou outra decepção ao longo da vida. E geralmente, porque se revelaram iguaizinhas às outras embora tivessem tentado, por um tempo, ser diferentes. Mas não eram! E, por isso mesmo, seguiram o seu caminho!

Por tudo isto, aqui deixo um elogio às MULHERES da minha vida! Une-as uma simples característica: a capacidade de tratar a vida com uma mistura construtiva de bom senso e loucura. MULHERES TOTAIS. MULHERES PLENAS. MULHERES DONAS DA SUA SEXUALIDADE. MULHERES LIVRES. São estas as mulheres que pertencem ao meu clube.


Carmo Miranda Machado

A Doença do Lápis Azul

Era um homem qualquer, como outro homem qualquer, um único detalhe o desigualava: possuía uma colecção de mais de um milhar de lápis-de-cor – de cores impossíveis e inimagináveis –, quando lhe foi precocemente diagnosticada uma enfermidade, à mercê da qual ficaria gradualmente limitado a ver tudo azul. Um dia, conformado por ver o céu, arranjou emprego de funcionário e passou a usar somente um mero lápis azul com o qual, em vez de escrever ou desenhar, apenas lograva riscar os textos e imagens que um inquisidor, seu patrão, achava que o povo não deveria gostar. E se, em certos dias, o homem riscava praticamente tudo o que via com os maus olhos de outrem; noutros, quase se enfadava e se enchia de spleen, amolecia na tarefa e chegava mesmo a ler e a admirar certas obras.

Mas, um dia, o inquisidor, que o ajudara desde os riscos iniciais, caiu de uma cadeira carunchosa e finou-se. Triste dia para o pobre riscador que, sem empregador nem emprego, foi entediando e definhando até que enlouqueceu. Vagueou alheio, esconjurou artistas que sabia de cor, balbuciou pragas contra todas as escritas (literárias e musicais), contra todas as imagens (negras ou coloridas), até que, pouco tempo depois, foi encontrado inerte e seco: varavam-lhe a cabeça dois lápis azuis, de pontas unidas no centro do seu mínimo e deformado cérebro. Segundo peritos, as chagas haviam sido auto-infligidas, quando este quis riscar uma ideia contestatária em que andava centrado havia já algum tempo – dar várias tonalidades ao azul.

O herdeiro da colecção de lápis do funcionário, sem saber o que lhe fazer, doou-a ao herdeiro do inquisidor, que clericalmente a acareou. Porém, o afortunado donatário da colorida colecção logo se encantou pelo lápis azul, o qual só o usava em privado. Era homem de poucos riscos públicos, preferia a palavra atirada ao vento para reprovar os criadores desalinhados. Por isso, quando não gostava de determinada criação, mandava emissários persuadir o artista a ocultar a sua arte, oferecia-lhe lápis e folhas completamente cinzentos, para ele registar as suas futuras criações.


Joshua M.

quinta-feira, 14 de abril de 2011


Uma questão de ciúmes

Foi durante um simpático almoço que recebi mais um consternar de dúvida, descrença e desconfiança (sim, assim tudo em conjunto) perante a revelação de que sou imune a ciúmes. «Isso é impossível» ou «isso é porque nunca gostaste de alguém a sério», são as respostas mais comuns a este estímulo verbal. Ora a palavra ciúme, vinda do Latim *zelúmen, de zelu-, que significa inveja, acaba por ser assim um dos sete pecados capitais. Ciúme é, e cito aqui o Dicionário da Língua Portuguesa, «inveja de alguém que usufrui de algo que não se possui ou que se desejaria possuir em exclusividade». E ainda «sentimento de possessividade em relação a algo ou alguém». E também «sentimento gerado pelo desejo de conservar alguém junto de si ou por não conseguir partilhar afectivamente essa pessoa ou sentimento gerado pela suspeita da infidelidade de um parceiro».

Devem julgar-me muito má pessoa para não acreditarem que sou imune a este pecado capital. Tenho outros, é certo. Não este... Mas aposto que se disser os que realmente me assistem, e como sou imune a este pecado tão comum devo ganhar créditos extra para os outros, haverá lugar a um coro de consternação global. Até parece que ser ciumento está na moda ou que é uma característica a valorizar numa pessoa. Oh sorte. De todos os pecados capitais aquele que é entendido como mais socialmente correcto é o que não me calha no quadro de referências!? Oh pontaria social.


Bruno Vilão

quarta-feira, 13 de abril de 2011


Um alívio

Conheceram-se nos fundos de uma livraria, onde se encontravam para trocar impressões sortidas. Uma tarde, depois de muito dissertar sobre autores e teorias e enredos e estórias e as línguas em que são escritos, ele fixou-se na capa de "On the Road", do Kerouac, numa edição dos anos 90, da Penguin, que detestava, e disse-lhe (confessou) que era só por causa das capas que mexia nos livros e os comprava e que nos últimos tempos já quase não os lia, ou lia às golfadas e cada vez se deixava disso mais cedo, quase ao inicio, porque o que gostava mesmo, o que queria, era poder admirar as capas. Que o deixassem em paz com as capas!
Foi então que chegou a vez dela e ela disse (confessou) que nunca tinha ouvido nada tão raro e bonito no que a livros dizia respeito. E pôs-se a pensar, sem lhe dizer, que um homem que amava assim, o que só conhecia pela metade (ou nem isso) e virava costas ao desconhecido e às orgias de letras e frases e pontos, só podia ser um homem direito. Também no sentido de avisado e sensato.
Ela disse que já eram horas de saírem dos fundos da livraria.
Aliviados.
Ambos.


Iolanda Bárria

terça-feira, 12 de abril de 2011

Palavras Versadas


é assim como um país

o órfão é um país montanhoso
de onde pode ver-se tudo em redor,
janela inenarrável de solidão panorâmica.
o órfão avista ao longe o caçador furtivo
que aponta sorrateiramente a alma
à obscena imortalidade do amor.
o órfão ouve vozes escuras na telefonia,
lembra-se de tardes de espadachins e sol
novelas noticiários folhetins e futebol.
o órfão esquece-se e apetece-lhe entardecer.
o órfão trabalha na estiva da coragem,
traz nele o olhar triste de um navio
que pede sirenes ou o beijo de um farol,
descarrega o sangue embarcado de outros
surpreende-o o perfume longínquo do mar
apaixona-se por peixes de rapina.
o órfão sonha reaprender com a mãe
a respirar debaixo de água.
o órfão tem as asas do pai, dizem-lhe.
o órfão é um novelo descontinuado de ternura
um país frio de corações múltiplos
um animal frágil e asfixiado
incapaz de respirar
para além do próprio tempo.
o órfão habita a morte mais de perto
porque perdeu a dimensão do princípio.
o órfão é o país isolado de uma língua distante
e escolhe os vizinhos
e escolhe os amigos
não pela capacidade de compreender
mas pela urgência de voar


Bill enGates 

domingo, 10 de abril de 2011

Provocatio


Eu quero a tua ajuda!

Não é porque caímos menos ou porque achamos estar para lá do erro. No princípio a vontade e o avanço são comandados pela aceitação de que nada sabemos. É essa humildade redentora que dá forças para nos levantarmos de cada vez que nos estatelamos no engano.

Estender o braço e pedir ajuda é a primeira lição. A ser sincero, esse pedido, será a última acção empreendida pelo ego.


DuArte

sábado, 9 de abril de 2011

Crónica Benzodiazepina


Sem prazer, esqueçam!

Eu e a Brígida assistimos a uma espécie de palestra sobre literatura e novos media. Corria tudo lindamente, até um dos presentes monopolizar as atenções com uma conversa gasta e entediante, do género: "o livro impresso vai deixar de existir? Estará para breve? O que acontecerá ao livro? Ohh, os tablets não têm cheiro. Ohh! vou sentir falta do papel a deslizar nos dedos. E os separadores? ou marcadores? qual será o seu destino? um museu? ... tarari, tarará, tarari, tarará...

 - A ideia que temos de um livro é muito marcada pela sua forma. Isso torna-se muito claro quando o livro passa para o formato digital (e tem graça). Já pensaste nisso,  Brígida? Não vejo problema algum em ler-se um ‘livro’ (será um livro?) num ecrã. De todo, não fosse dar-se o caso de os tablets ainda se encontrarem na idade da pedra quanto ao conforto e prazer da leitura. Não sabem nada sobre isso. Zero! E sem prazer, esqueçam. É o que te digo, Bri.

Neste ponto, a Brígida fez um estrondo enorme com o livro que tinha nas mãos. Disse-me:
 - Acabei de esmagar um mosquito aqui com a contracapa do 'Half a Life', do Naipaul. Achas que o conseguiria fazer com um Kindle? um iPad? ou qualquer outro?
Com o meu portátil não resulta, já tentei!
Ah e digo-te mais: este mesmo 'Half a Life' (incansável) livrou-me ontem de torrar o crânio no inclemente sol da praia do Guincho. Fez as vezes do chapéu que me esqueci em casa.
A minha questão é esta e sempre a mesma: um tablet faria o mesmo?

Quando o fizer eu também vou para a fila comprar um.

Nota: (vale a pena conhecer os recentes estudos de Jakob Nielsen sobre as prestações do Kindle e do iPad)


Iolanda Bárria

quinta-feira, 7 de abril de 2011


A José Saramago

Oubliette

Perdera a noção do tempo. Já não fazia ideia de há quanto tempo aquele lugar o oprimia. Uma eternidade, vista de dentro da fortaleza inexpugnável que tentava ser. O seu pensamento atrofiara-se, estava condensado, comprimido, no exíguo espaço que o habitava. Ali morria a cada momento. Sentia-se agora fraco, sentia-se muito fraco e isso fizera com que pensasse tentar uma evasão. Deixara de fazer riscos na parede para contar os dias. Um dia, interrogou-se do porquê dos riscos e deixou de os fazer – nesse dia, aplacado por uma febre muito alta, sentiu-se completamente perdido nas contas do tempo. No auge do febrão chegou mesmo a imaginar que aqueles riscos alinhados marchavam contra si, como soldados de espingarda e baioneta em riste. Os seus riscos eram soldados, eram sabres, eram a razão da sua dor cravada nas entranhas. Decidiu mesmo que não faria nem mais um risco. E, afinal, eram apenas linhas, memórias alinhadas dos seus dias de solidão. Havia visto chegar tantas luas, lá do fundo do seu degredo, para iluminar o breu do espaço a que estava limitado. Ele tinha de se manter vivo; tinha de estar atento à passagem do tempo. Resolveu então que, em vez dos dias, começaria a traçar na parede as luas, facilitando assim a sua tarefa e diminuindo o número de inimigos caso sobreviesse uma nova febre. Assim não se perderia nas contas, mesmo que a febre-dos-três-dias lhe levasse o tino por mais alguns dias. Ao melhorar, reconheceria sempre a fase da lua, saberia quantos dias durara a sua doença.
Mas, alguns meses depois, no meio da uma nova crise de febre, foi invadido por uma estranha lucidez: conseguia raciocinar outra vez, mas não se lembrava porque estava ali. Quem o pusera ali? Porquê? Teria passado quanto tempo? Lembrou-se de que em tempos tivera uma família. Sim, a memória das imagens revelava-lho claramente - não podia estar enganado. Lembrou-se ainda como havia lutado por uma causa. Descobriu que tinha convicções e que por elas havia perdido uma parte da vida. Saberia alguém da sua existência? Viria alguém para o salvar? De qualquer maneira, haveria de manter a sanidade mental, contando as luas até ver o sol. Um dia, haveria de voltar a ser o que era. No entanto, já não estava certo de querer sair dali. Se lhe viessem abrir a porta, ou derrubar as paredes que o cobriam, não saberia para onde ir, mas, ao mesmo tempo, desejava esse dia como se desejasse o mistério de um buraco negro que fascina e amedronta. Esse dia chegou inesperadamente quando menos o previa: acordou a meio de uma noite de lua nova, abriu os olhos e confirmou que já não existia qualquer barreira que se interpusesse entre si e o mundo. Decidiu fugir, correr, correr sem destino. Correu durante horas, até que caiu de cansaço e adormeceu sobre as ervas. Ao despertar, viu o sol iluminar o céu inteiro, viu os mesmos soldados de armas ao alto. Porém, desta vez, os soldados traziam, nas pontas das espingardas, espigas de trigo e papoilas rubras, em vez de sabres. Davam-lhe a mão e ajudavam-no a levantar-se do chão...


Joshua M.

O que faz falta ao homem...

É a intensidade, segundo Karl Jung, que faz falta ao homem para ele se sentir auto-realizado. Mas muitos de nós vivemos num limbo onde a única intensidade sentida é a da azáfama estupidificante e repetitiva que mantemos. Viver com intensidade pressupõe quebrar o jogo, romper as barreiras, abrir alas e deixar passar a vida, aceitar os imprevistos, criar absurdos, perder os medos, abandonar hábitos, clichés... mudar, evoluir, rever, reconstruir quem somos. E sobretudo é aceitarmos todas as partes presentes em nós, por mais dolorosas, imponderáveis, imprevisíveis ou loucas que possam ser. Por que o que deixamos de nós ao abandono voltará um dia para nos cobrar.


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 6 de abril de 2011


Palavra amarrotada

Há uma palavra fugidia. Não a sinto. E, por tal, não a consigo escrever. Nem no papel, nem no ar, nem na agenda passional da qual apenas arranco páginas à bruta, de forma crua, amarrotando-as tanto quanto amarrotado me sinto. Há dias em que pauso, sento-me, pego suavemente na caneta e esboço-a. Mas a tinta, trôpega, começa a fervilhar e a caneta arde-me nos dedos. Em masoquismo sensorial forço-me a escrevê-la. Mas o bloco de papel, anti-magnético, desliza pela mesa fora como íman invertido, até tombar no chão. Insistente, pego num lápis de carvão e persisto, escravizado. E assim que a palavra começa a ganhar contornos mentais, ouço comboios a vapor ao meu redor, que o carvão do lápis alimenta, esgotando-se em segundos. Nem soletrá-la consigo. Seja por desdém, agonia ou descrença, a palavra teima em não ganhar forma. Aproximo-me dela o mais possível, em desalento, enquanto devoro avidamente uma romã.


Bruno Vilão

terça-feira, 5 de abril de 2011

Palavras Versadas


AMO-TE ASSIM SEM CORPO

amo-te assim sem corpo.
sem dias que sacodem lembranças.
sem últimas coisas.
sem ouvires de língua.
sem palavras que respiram pelo
nariz de outras.
sem compromissos abdominais.
sem o coração no bolso.
sem ruídos obscenos que
indiciam nudez.
sem borboletas vulgares
sobre o poema.
sem o conhecimento de toda a gente.
sem o teu conhecimento
ou existência.
amo-te assim sem corpo
com todo o meu corpo, 
lembranças,
últimas coisas,
ouvires de língua,
palavras ardentes como 
febres frias,
compromissos fundidos noutros,
o coração dobrado, 
as braçadas da vida
nua e lenta como a borboleta
neste poema.
amo-te assim sem vida.
sem morte.
sem corpo.


Sylvia Beirute

domingo, 3 de abril de 2011

Provocatio


Perdoar...

Perdoar não é esquecer o que a outra pessoa nos fez de mal. Perdoar é um acto de amor próprio. É não deixar que essa pessoa nos continue a fazer mal. É querer ser feliz. É libertarmo-nos do passado e vivermos o agora.


Ana Santiago

sábado, 2 de abril de 2011

Crónica Benzodiazepina


O que é "a crise"?

O sociólogo Laurent Mucchielli estuda a delinquência (urbana, sobretudo), partindo da desconstrução de ideias. Um dos seus alvos preferidos é a estatística. O que ele faz é descascar as estatísticas da delinquência: como são feitas, com que bases, quais as ideias, as premissas, quais os modos de ver que estão subjacentes. A partir desta exposição, constrói alvo novo, uma tentativa de compreensão, as bases para uma grelha de leitura. Sem vícios (ou o menos possível).
Depois de praticamente banida a visão política, apenas o raciocínio económico – omnipotente e omnipresente -, influencia a tomada de decisões, nas sociedades modernas. Isto é muito pobre e está longe de entender e explicar tudo. Os tempos difíceis que atravessamos foram e ainda são terreno fértil para a disseminação das ‘verdades’ da economia, mas também podem ser terreno fértil para a sua falência, basta vacilar nas respostas e soluções…
As ciências sociais podem ter aqui um papel muito interessante, precisamente o de desconstruir conceitos,  ideias dadas como adquiridas e muitas vezes vazias de sentido. Clarificar. Abrir outros caminhos. Obrigar-nos a repensar o que damos por conhecido.
 
O que é “a crise”?


Iolanda Bárria

sexta-feira, 1 de abril de 2011


A MULHER E O PRÍNCIPE ENCANTADO

Hoje apetece-me contar-vos uma história. Era uma vez uma mulher que sonhava com o seu Príncipe encantado. Infelizmente, desde criança que lhe contavam histórias onde havia sempre um príncipe encantado (lindo de morrer... não interessava se antes tinha sido um sapo ou um burro ou uma lagartixa) e em que os dois ficavam juntos, tinham muitos "filhinhos" e eram felizes para sempre. Ora, a merda toda, é que as nossas queridas mães e avós e tias não tiveram o bom senso de nos explicarem que tudo aquilo era história, ficção, mito, ilusão e outras porras...
A verdade é que o Príncipe Encantado é isso mesmo: encantado, e por mais que se deseje, ele não se desencanta em sítio algum. Ora bem, a juntar a este quadro, vem uma outra faceta das históriazinhas com as quais crescemos que particularmente me irrita. Num desses contitos, chega a Fada e fornece à Cinderela todos os apetrechos necessários para ela ir ao tal bailarico... até aqui tudo bem, mas já pensaram que a puta da fada não lhe perguntou sequer se ela queria ir ao baile? Ou se queria o vestido daquela cor? Ou se gostava de sapatos de cristal? E pior ainda, por que raio é que o dito Príncipe haveria de ser o homem dos sonhos da Cinderela? Bem, isto de os outros decidirem por nós já tem os dias contados (espero eu!), porém não deixa de me intrigar que tudo acabe com um homem a correr o reino com um sapato na mão em busca do pé perdido... E com tudo isto, como é que as mulheres não haveriam de ser taradas por sapatos?

(Desculpem-me o non sense que hoje se apodera de mim...)


Carmo Miranda Machado