quarta-feira, 31 de março de 2010


O Ursinho Pooh

- Hoje, quando vinha de levar os meus filhos à escola, senti-me inundado por pensamentos falsos. Aqueles pensamentos que nos atiram para a lama.
- E que fizeste?
- Fintei o ego. Parei de repente, de olhos fechados, concentrado no espaço imaginário entre as sobrancelhas.
- E resultou?
- Lindamente, até ouvir um sonoro pum. Repara que eu estava com um mísero chá vermelho no estômago. Só costumo tomar pequeno almoço depois de os levar à escola.
- O ego é imparável. Serve-se dos estratagemas mais mal cheirosos para nos trazer de volta à Terra.
- É..., o ego é um porquito cheio de esquemas!


Duarte

terça-feira, 30 de março de 2010

Palavras Versadas


A Primeira Impressão das Palavras

Todas as palavras se imprimem
e se espalham
pautas de tinta
pelos papéis anónimos
desenhando ideias
mais ou menos complicadas
ou pequenos traços
breves nadas

Todas as palavras se imprimem
na memória atenta
no infinito são
como frases gastas
entre dentes
examinadamente remoídas
pelas caveiras
instruídas

Todas as palavras se imprimem
sinais negros
sobre o corpo
das folhas puras
gravadas nas noites brancas
dos poetas
e na alma vaga
dos estetas

Joshua M.

sábado, 27 de março de 2010

Em Branco

Deveria deixar-te em branco à semelhança da minha alma. Vazia, por isso limpa e opaca. Barreira intransponível de mármore macio. Pedra tumular sem inscrição abandonada num planalto perdido, onde apenas os pássaros acedem. Deveria deixar-te em branco, por viver, imaculada e fria. Inacessível ao negro dos sentimentos, ao colorido das imagens e dos sabores. Como se escreve branco em branco?

Lucinda Gray

sexta-feira, 26 de março de 2010


A Menina que gostava da flor

A menina andava pelos campos, sempre de um lado para o outro, colhendo flores, piscando os olhos em todos os sentidos. Os rapazes que passavam por ela ficavam, ficavam a olhar, ficavam a ver a graça dela ao colher, ao baixar com ligeireza e descuido o corpo até à flor, ao piscar os olhos. Um dia a menina encontrou uma flor muito especial, um belo girassol, que a cativou imediatatamente. Ela caíu sob um raio de paixão ao ver um elegante e garboso girassol, com uma coroa de ouro. Ele, por sua vez, também se encantou com o jeito dela e com o seu grácil piscar de olhos. Seria um princípe ou um general concerteza, por ser ele a envergar a farda mais distinta, entre todos os outros - pensou ela. Agora também ela era uma verdadeira princesa, apaixonada por um princípe, que afinal não passava de uma pobre flor. A questão inquietou a comunidade inteira, reuniram urgentes os decanos que, depois de algumas horas de ponderação, sentenciaram ser de todo impossível aquele amor: geneticamente inexequível, legalmente inexistente e moralmente reprovável, foi o veredicto. A menina foi então obrigada a consultar a sabedoria de um curandeiro, que lhe diagnosticou glaucoma. Num ápice, reuniram uma equipa de cirurgiões, que operaram os olhos da menina de uma facada certeira. Ao despertar da modorra da anestesia, perguntou débil pelo seu amado girassol. Chorou por ele, dias e noites. Mas, depois de convalescer, decidiu fugir da cama do hospício onde a queriam prender. Andou por aqui e por ali, algures e sempre longe. Os rapazes deixaram de a ver, de reparar nela; ela, por sua vez, deixou de piscar os olhos e de colher flores. Sempre perdida de olhos postos no vazio, gastava a vida em busca do belo girassol amarelo dourado, correu os campos entre girassóis, mas sempre os mesmos vulgares amarelos, soldados sem general. Vagueou até à loucura do amor, perguntando a todos por ele. Todos lhe diziam nunca ter topado tal girassol nos campos da Provença. Alguém aventara mesmo a teoria de que, o sol do inverno provençal não queimava as flores até ao ouro, só no sul despontariam girassóis dourados, como os que a menina buscava incessante. Vagueou incerta e reiterada durante as noites frias e os dias quentes, acabrunhada e solitária pelos trilhos da procura, até que se acoitou em casa de um pintor meio louco. Do garboso girassol restava-lhe apenas a memória, os retratos do génio do pintor, em frente do quais ela passava o dia inteiro. E assim ficava, inerte o dia inteiro, diante da beleza do seu princípe girassol, comendo apenas o que o pintor lhe oferecia, num gesto com uma mão direita aos lábios. O pintor, que acabou por enlouquecer com ela, cortou uma orelha e deixou de pintar girassóis, apenas estendia os olhos fixos sobre os campos de trigo azuis até ao infinito.

Joshua M.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Palavras Versadas


Noites Nossas

Ensinaste-me que as palavras
são rudes, rudes
como o espanto dos teus passos
na calçada
do beco das flores - e disseste-me
que a vida te fizera assim -
e falaste das noites
em que te sentiste bêbado
de palavras com cheiro de gritos
- das noites em que acariciaste
palavras nos vidros dos autocarros
- das noites em que sentiste
o cansaço das palavras
nas latas caídas
no paredão do cais...


Antonina C.

quarta-feira, 24 de março de 2010


 Garganta Funda

Ontem meditei diferente. Fui para o jardim, e, ao som de uma batida minimalista, comecei a rodar em volta, como fazem as crianças quando querem ficar zonzas. Descalço, pés na relva, os braços estendidos um pouco abaixo dos ombros. A mão esquerda virada para cima, para o céu, para agradecer quem sou, a vida, a agradecer que existes, o amor que sinto por ti e por todos os outros. A outra mão virei-a para baixo, para devolver à terra tudo o que é falso: as angústias, os lamentos, as vontades e as expectativas, tudo o que me afasta de ser feliz. Deixei tudo para trás, as coisas boas e as coisas más - todas perdem sentido, quando deixam de ser relativas.
Rodei, rodei, rodei... Foram quarenta e cinco minutos a rodar.
Os olhos abertos e desfocados, a ver apenas um blur. A estranheza vai tomando conta da mente, a estranheza e o cansaço. É a inércia que faz o corpo mover-se. A mente quer divagar mas não tem como... Bate e rebate continuamente, nas paredes do tornado humano. Um vortex de energia.
De repente, já não rodo. Os braços estão estáticos, a pairar. É o universo que roda à minha volta. A consciência, cada vez mais centrada em mim, perdeu-se do mundo.
De olhos fechados deixei o peso fazer o resto. Caí exausto, umbigo em contacto com o chão, abraçado à terra. Foi um mergulho no fundo do poço sem fundo. Imaginem: sentir o corpo como se a consciência fosse a própria matéria. Tudo a fazer surf no sangue, os músculos doridos, a relva contra o rosto. Nunca me senti tão presente. Nunca senti os limites tão difusos. Em poucos minutos creio ter perdido a consciência.
Quando acordei... levantei-me e fui para casa.

 Duarte

terça-feira, 23 de março de 2010



Múltiplos

Não me parece que venhas mais. Portas batidas a mais atrás de mim. Portas que já não se abrem. E não são as fechaduras enferrujadas, não são as chaves perdidas, não são os trincos, são os olhos que não mais vêem de que portas abertas se fala. Escancaradas. Luz ao fundo, talvez, mas tanta sombra à nossa volta. E tu és tanta gente ao mesmo tempo. E tanta gente forma tudo o que não és. Vejo-te quando olho ao espelho mas sei que não te conheço. Às vezes ainda te lembro, mas não sei se te quero lá. Se partir o vidro num murro é a ti que desfaço ou a mim mesma? Pedaços de carne ou de nada saltando dispersos num grito e tanto sangue à volta... Resta alguma coisa de nós? Ainda somos? No espelho não há fusão, há distância. Tu e eu não somos um só. Nunca seremos um só.


Virginia Machado

domingo, 21 de março de 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010



UMA CARTA DE DESAMOR

Meu Muito Desejado Marido,

Há sombras reais que se erguem monstros ao nosso sonhado futuro. Esperei dolente e confiante anos a fio, só porque tinha de te esperar, por isso te esperei à esquina de todas as casas que incognitamente cruzavas e nunca te via senão vulto fugaz, porventura imaginado. Esperei, esperava sempre: que saísses do trabalho; que chegasses daquela viagem ao estrangeiro; que voltasses são e salvo da guerra; que regressasses para dar corpo e nome aos nossos filhos. Só para poder usar aquele vestido de chita novo e garrido; para soltar o cabelo e vestir aquela lingerie ousada e pôr aquele rouge a lèvre que me trarias de França. Só para te sentir, para te amar...

Fica-me a vaga sensação de que a minha vida foi esperar, por ti e sem ti, como sempre quis e concordei afinal, porque também nada fiz para o mudar. Limitei-me a esperar, sabendo que virias, que um dia chegarias, que um dia ficarias. Mas, os anos foram passando e tu estavas sempre a partir, nunca chegavas ao meu coração entreaberto e fechado ao mundo. Eras o único consolo na hostilidade das ruas e das casas onde pairava na tua espera. Nos momentos de desânimo era ela, a espera esperança, que me acalentava a vontade de ser, sempre, no sonho de ti.
Sinto hoje (o que me custa dizer-te), que esta espera me gastou o tempo de ser eu, quando vivia egoísta o meu sonho de sermos nós, sem nunca procurar o teu, o nosso sonho. Trocando o tempo de te conhecer pelo tempo de te sonhar, troquei a realidade pela minha felicidade possível, contudo não esqueci o simples viver que redescubro agora.
Decidida a esquecer-te, corri até ao campo e abracei a primeira árvore que encontrei, e o abraço teve o sabor de uma traição, a primeira que consenti, e senti o pudor esvair-se do meu corpo e o corpo a dar-se ao sentir, ao encostar-se: encheu-me o tamanho do mundo inteiro, o meu peito palpitava forte de desejo esmagado contra a casca rugosa e seca da árvore viva – e foram estas as sensações mais reais que até hoje pude provar. As mesmas que tanto esperei de ti… Mesmo assim foi tudo tão perfeito, que dificilmente a realidade caberia naquele momento, que, porém, de tão real e firme, tornou definitiva, a partir de então, a decisão de romper de vez contigo.
Faço hoje sessenta e três anos e já me custa viver de sonhos que nunca se tornam reais. Errei ao imaginar-te e imaginei-te tanto que te tornei irreal. Lamento meu marido que nunca vi: não vou esperar mais por ti…. E de resto, a dúvida: se algum dia te chegasse a conhecer será que te reconheceria?

Vale, a um Desconhecido.

Celeste Bucólica


Joshua M.

quinta-feira, 18 de março de 2010


Icarus

Icarus trepava como uma flecha cega pelos céus em direcção à luz doirada do sol. Inquieta, ela observava-o, muda, calada. Aninhava-se conformada numa mágoa que não a deixava tomar conta de si, a que não dava voz. Não faz mal – dizia-se a si própria – todos temos o direito a ser felizes.
Icarus fixava extasiado aquela fonte interminável de energia, de riqueza doirada. Trabalhara tanto naquelas asas. Tomara como modelo uma ave avermelhada, sua companheira até então. Estudara-a, ouvira seus conselhos, suas directrizes, aprendera. A hora da recompensa chegara. Voar, voar, voar. Não para um lado qualquer, não para um novo país, ou para outro planeta, mas rumo ao sol. Direito ao centro da galáxia, cujo reflexo lhe prometia a recompensa que julgava legítima. Foi com genuína surpresa, antes mesmo do terror se instalar, que viu as suas asas a derreter. Não compreendia. Quando a queda começou, percebeu atabalhoadamente a possibilidade do erro. Mas, o tempo de pensar havia acabado. Durante a vertigem, por um breve instante, animou-se. Uma luz brilhante jorrava doirada em sua direcção. Um truque da mente - pensou – afinal não estou a cair, apenas perdi a noção da direcção.
Exausta e de olhos postos no céu, Fénix lamentou a falta de sorte de Icarus. O
timing fora desastroso. Já não o podia salvar. A sua auto-combustão iniciara-se e, tal como o sol se põe e se eleva, brevemente renasceria para outra milenar empreitada.

Lucinda Gray

quarta-feira, 17 de março de 2010

O meu amor é tão fraco perto do vosso. Fraco, fraco...

O meu corpo é fraco, a resistência é fraca, como fraca é a cabeça. Mais fraco, só eu quando estou fraco, porque levo mais um estalo. Olhos pequenos, pernas pequenas, pénis ainda mais pequeno. Até o escroto fica pequeno, tudo apertado lá dentro cheio de medo. Fraquejo tanto que dou pena. Hoje percebi mais uma das minha fraquezas - Gosto de mulheres com ar de doença, anémicas, jovens acamadas. Gosto de imaginar o que vai por baixo daquelas cobertas de tanto tempo. Imaginar que artefactos se escondem debaixo dos lençóis de flanela. Casas húmidas da serra, tristes de tanta pedra que se descobre das paredes. Teias de aranha fumadas pelo pão de milho que comemos com um sorriso falso nos lábios. Os pés quentes por estarem perto da fogueira: - Não mexas no lume que fazes chichi na cama! Já agora, nada como queimar um saco de plástico na lareira da nossa avó. Que saudades da estúpida ignorância. Como vêem, eu confesso tudo. Confesso ter gostado de uma serrana que os pais aprisionaram à cama na esperança de que isso os tirasse a todos da miséria. As romarias que se faziam ao fim-de-semana, as idas àquele sítio perdido no monte. Acesso por caminhos de lama. A soleira de pedra polida pelos passos. O quarto coberto de objectos de desejo: crucifixos à cabeceira. Fotografias de anjos a quem cedo cortaram as asas. A estátua da Nossa Senhora de Fátima, tão branca... em cima da cómoda, rodeada de notas de conto. Pagamos porque temos fé, de tão clara jovem ser santa. Não morre, não sabemos porquê. Não sabemos nada.
Fui pela mão da minha mãe perder-me naquele olhar branco e triste.
- Mãe... Podemos levá-la para casa?
Quis arrancar aquela menina da cama. Trazê-la comigo. Dar-lhe carinho. Mostrar-lhe que ser santa é mais belo do que ser pedinte, ainda que na ignorância tudo se compreenda. É tão triste a falta de esperança.
Ela não veio, mas ficou-me no sangue o desejo pela pele alva. Agora até as góticas me caem no goto. Pelo menos as que não usam botas de coxo nos dois pés. Detesto gente com a mania que é baixa; adoro a fraqueza da doença. Tanto, que me infiltro no Santo António para poder espreitar os quartos onde as mulheres convalescem, fracas, vulneráveis, de olheiras carregadas. Só lhes falta um batom vermelho. Uma cor garrida que lhes atire a pele para o tom de uma pálida Infanta.
Gosto da fragilidade. Se me aproveito dela? Aproveito. Elas também sabem que sou fraco. Fraco, fraco...


Duarte

terça-feira, 16 de março de 2010

...hoje eu e não o outro que aqui me invento

Passando palavras com os olhos. Os olhos, como o scroll do teclado, passando rápida, rapidamente, passando caracteres que não lê, passando-os o mais depressa que consegue, empatar tempo, fugir às lágrimas que insistem em escorrer rosto fora, que insistem em quase se tornar frenéticas. O som do piano. Não está aqui, mas entoa cá dentro, entoa de dentro, entoa só para mim. As lágrimas caem ao som do piano, porque é um piano, porque são os meus dedos, porque não está aqui, não há aqui. Tantos anos deixamos passar...tantos anos que levamos a construir a forma de nos desgastar, de nos perder. Tantos anos escavando o desfecho de que fugimos, sem que o saibamos, sem que o queiramos. Tantos anos que já não sabemos mudar nas suas réplicas futuras. Tantos anos, tantas vidas, tantas lágrimas e pianos e noites em que nem um copo nos encontra para trazer de volta o afago de um abraço. Tantos anos, e no entanto sempre o mesmo sítio. Procurar sair e não saber mais como. Chegar ao momento da mudança e perceber que o caminho se esgueirou.

Virginia Machado

sexta-feira, 12 de março de 2010


Reescrever O Prazer das Manhãs

É de manhã, quando fetalmente repouso entre lençois, hesitação entre a preguiça que a alma deve ao corpo e o dever que o corpo tem para com a missão que o reclama, quando sonho a vida que a dormir vivo e não vivo. É nesse momento que me redescubro:

ao sentir o cheiro a cafés e croissants que nunca beberei nem comerei, porque me alimento de sonhos e prefiro dormir;

ao ler o jornal do dia U que sairá sempre na manhã seguinte ao dia que não aconteceu e nunca me interrompe o sono, porque não é seguro que o leia ou que durma;

ao sorver aqueles odores que o sol liberta da fruta e das flores, limitando-me a aspirar o ar contaminado pelos plásticos que invadem todos os espaços que habito;

ao abrir os olhos para ver o sol nascer toda a manhã pelas frestas da janela, projectando-se contra a parede poente depois de atravessar todo o espaço do meu sonho.

Por isso, sei que o futuro é sempre o sonho do que queremos ser ou fazer (se acaso o sonhamos), ou sempre a realidade com que nunca sonhámos (se acaso o planeamos);

por isso, sei o sabor das coisas mesmo sem as provar, pois, basta-me sonhar o prazer que proporcionam para que me cresça água na boca;

por isso, sonho e assim experimento reiteradas delícias;

por isso, odeio as manhãs, de pequenos-almoços em sociedade, e apenas frequento soireés libertárias, onde encontro prazeres inusitados numa qualquer atitude déjà vu.

E por isso mesmo, fico acocorado ao lar durante o resto do dia, à espera de sonhar....

Joshua M.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Palavras Versadas


Choro à hora marcada

Dispo a camisa.
Com prazer guloso,
Ofereço as costas ao estalar do chicote
E choro à hora marcada.

Nas lágrimas, rendidas à gravidade,
A possibilidade do absoluto.
Nas chagas, do sangue coalhado,
A profundidade do amor.
Choro à hora marcada,

Convite feito à tristeza,
Entrego-me aos desígnios sublimes
E forço as saídas da alma.
Em esquiços pouco convictos,
Procuro a fonte de onde jorram,
Num cantar profundo,

Os altares mesquinhos do egoísmo.
Sucumbo a forças mornas,
Despedaço-me nos atalhos para lado nenhum
E choro à hora marcada.

Diniz

quarta-feira, 10 de março de 2010

Berlim, 28 de Fevereiro de 1923

Era uma das cidades europeias mais modernas e movimentadas, considerado um dos centros culturais de referência na Europa da época. A receber-nos estava um dia nublado, entrecortado por ténues raios de sol que teimavam em espreitar, conferindo alguma luminosidade aos lugares. O Inverno estava no auge e os passeios estavam ainda atapetados pelo nevão caído nos últimos dias, com cristais a luzir debaixo dos nossos passos. Albert viera em negócios, trazia uma agenda bem preenchida e o plano para estabelecer na cidade de uma filial da empresa que dirigia. Normalmente ele viajava só, mas desta vez tinha insistido em que eu o acompanhasse. Já havia alguns anos que estávamos casados e, esta viagem, seria para nós como uma segunda lua-de-mel. Ficámos hospedados num luxuoso hotel, bem perto do centro da cidade, o que me permitiria, sem grandes caminhadas, visitar os mais emblemáticos monumentos do centro e as lojas mais chiques da Alexanderplatz. Estava extremamente curiosa acerca das gentes, queria conhecer a sua agitada vivência e a fauna noctívaga dos kabarett, cuja fama ecoava por essa Europa cosmopolita. Esperava ouvir cantar uma tal Marie Magdalene Dietrich que brilhava nos palcos estrelados da noite e nas telas do cinema incendiava as plateias com Tragödi der Liebe.

Nessa noite, Albert vestiu um smoking e umas calças pretas, camisa branca impecavelmente engomada, com um laço preto e uns sapatos de verniz; por cima um sobretudo de cachemira côr de camelo. Eu optei por um vestido à altura do joelho, cor-de-rosa velho, meias semi-opacas, sapatos de meio salto de camurça pretos; no cabelo de cor preta, curto e muito liso, pus uma casquete; nos lábios apliquei, em forma de coração, o meu batom carmim; por fim, adornei-me com uns brincos e um longo colar de pérolas; e cobri-me com um forte casaco de lã preto para enfrentar as temperaturas negativas que se sentiam ao cair da noite. Após um requintado jantar e um digestivo no foyer do hotel, viera um groom avisar-nos que chegara o nosso táxi. Tomámos assento no banco traseiro e dirigimo-nos directamente à zona de diversão . Impressionou-me o movimento das pessoas na praça e nas ruas adjacentes, magotes de homens e mulheres surgiam daqui e dali elegantemente vestidos, máscaras de felicidade colada nos rostos. O jazz, o foxtrot e o charleston ecoavam por vezes em simultâneo, causando um turbilhão cacafónico.

Assim que chegámos, os porteiros do Kabarett vieram abrir-nos a porta do carro, entrámos numa antecâmara onde deixámos os aconchegos, antes de passar à primeira saleta, onde o ambiente estava ao rubro. Homens e mulheres em trajes elegantes conversavam e riam, os homens fumavam charutos, as mulheres cigarros com boquilha, bebiam Champagne em taças de cristal da Bohemia e brindavam a cada pausa das palavras, com um sonoro prosit. Numa outra sala ao lado, de ambiente mais reservado, para onde resolvi espreitar, notei algumas mesas com bandejas de prata polvilhadas por pequenas linhas brancas e algumas palhinhas em volta. Os homens e as mulheres que entravam, saíam alguns minutos depois em êxtase colectivo. Na sala de baile ao fundo, os casais dançavam freneticamente ao som de Lili Marlene, olhavam-se com uma tentadora sedução, tocavam-se ousadamente e beijavam-se sem qualquer pudor. Absorvidos pelo torpor do álccol e da cocaína, agiam como se apenas eles existissem, sem se parecerem importar com quem ou como desfrutavam do momento. Envolvemo-nos naquela ardente atmosfera de loucura e desejo, entusiasmados seguimos ao sabor dos ritmos, como que atraídos por aquele poderoso íman da música e dos corpos. Finda a noite, resolvemos seguir a pé caminhando pelas ruas até ao hotel, a sentir aquela lufada do ar fresco da noite na cara de ambos. Afinal, ainda sentíamos desejo.

Herta Baüer

Post Scriptum: Avó, quando resolvi preencher com as minhas palavras este diário que encontrei no teu baú, ele parecia-me intacto, mas, ao abri-lo, vi com surpresa que alguèm já tinha escrito nesta última página. Reconheci a tua letra e lá está o teu nome, desculpa, mas li sem querer esta extraordinária passagem da tua vida. Afinal a revolução social já começou há algum tempo. Amanhã voltarei para te contar tudo, como será mais esta noite de greve no campus universitário e de como vamos mudar o mundo. Agora vou para mais uma manifestação...

Melissa Baüer, Paris, 23 de Maio de 1968


M. Jota


terça-feira, 9 de março de 2010


O Meu Primeiro Beijo

Não imaginas o que me aconteceu. Hoje decidi ir comprar um tecido que fizesse um bom pano de fundo para uma galeria nova e uns filmes caseiros de conteúdo erótico. A minha mãe que é modista disse-me para ir á feira dos tecidos em Cedofeita. Se não são do norte, ficam a saber que é uma rua na parte alta da baixa portuense. Digam lá que não soa fixe...!? Parte da rua é em calçada, a outra parte em alcatrão transitável de carro. Tem lojas. Muitas lojas. Alfarrabistas, livrarias, antiquários, supermercados de marca estrangeira. Lojas indianas, chinesas e de mercado justo. A bem dizer, é uma rua boa para nos deleitarmos a ver as mulheres a passear de sacos na mão. Era precisamente isso que eu estava a fazer quando a três passos reparei que uma jovem se aproximava de mim. Ainda tentei desviar-me com medo que ela viesse distraída. Não vinha. Só parou nos meus lábios, o meu rosto entre as suas mãos. O coração aos pulos. Uns segundos mais e eu tinha ficado ali para sempre. Percebi como era bela quando me fez uma carícia no rosto e sorriu ao afastar-se. Nem uma palavra. Virou as costas e andou. Vi a Praça Carlos Alberto ao fundo quando ela desapareceu. Não imaginam a vontade de correr atrás... Mas para quê? Que mais haveria a acrescentar. Nunca mais estaria tão perto. Nunca mais um beijo seria tão meu. Tão verdadeiro. Tão perdido do tempo e do espaço. Eu conheci aquela jovem. Mas não tenho nenhum conhecimento de quem é. É vermelho. O tecido é vermelho. Parece veludo mas não é. O veludo já não se arranja fácil por estes dias. É como o verdadeiro amor. Está fora de moda.

Duarte

sexta-feira, 5 de março de 2010


CONTO CANTO

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Mário de Cesariny, Wellcome to Elsinore

Não sei como começar, ou como dizer, ou acabar por dizer o que tenho em mente dizer, atiçado apenas pela vontade de uma qualquer expressão, não sei, até talvez pudesse cantar uma canção, pois a minha falta de apuro de ouvido daria outro relevo às palavras, cantadas dissonantes da melopeia de fundo. Seriam palavras sobre melodia, palavras isentas de sentido musical, por isso paralelas, nunca se uniriam, em qualquer ponto, à música de que nunca se dissociariam – sempre a eterna imagem dos carris pesados e infinitos a assaltar-nos o espírito.

Podia até inventar comboios que percorressem esses carris, que, mesmo assim, as palavras nunca se uniriam à música; tal como a música, solene e majestosa, nunca desceria ao cavernáculo das palavras – ainda que estas, mal cantadas e a tender para o distanciamento, empobrecessem a divina matemática.

Lembro-me sempre de música e de palavras paralelas quando vou ao médico: disse-me hoje o senhor doutor que devia voltar aos tratamentos, e eu gritei três vezes para mim com os dedos sobrepostos – figas para dar fuga aos meus parasitas mentais – palavras, palavras e mais palavras… Gritei três vezes, como Hamlet, precisamente, até que apareceu uma vizinha, vestida de branco como uma noiva, e me admoestou:

" - Deixe dormir os outros doentes da enfermaria, hoje já não há comboios para o futuro, tem de esperar por amanhã para se querer ir embora!"


Joshua M.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Palavras Versadas


O Gato

Eis o gato
debaixo da chuva torrencial
observado pelo quinto copo de vinho
e pelo primeiro de leite
Com os olhos vazios e a boca
num pedaço de peixe como em teoria
abrigando-se de nuvem menos húmida
em nuvem menos húmida
Em cima duma caixa nos seus trinta anos
o mais velho do mundo




João Belo

quarta-feira, 3 de março de 2010



Nasceu a nossa primeira abóbora!!!

Soube mesmo agora. Ligaram-me de casa. Na verdade é apenas a planta que vai sustentar a coisa redonda, cor de laranja.
Os meus filhos já se estão a dizer donos da casca. Vão fazer uma abóbora das bruxas.
A minha sogra promete fazer um doce para comer com requeijão e canela.
Não é bonito?

É uma abóbora menina...

Duarte

terça-feira, 2 de março de 2010



Memória da Pele

Poro a poro os fluidos exalados envenenam o sangue. Raios! Só penso em frutos sumarentos e polposos. Goiaba perfumada, araçás, manga... Intercalam-se memórias de sabores com o gosto do teu corpo. Memórias unidas para me infernizar.
A minha mão arde, de tanto revisitar o teu peito. Memória de pele. Não é justo. Não deveria ser assim. A pele não tem nada que reclamar direitos sobre o que já possuiu. Gulosa e irracional, não me deixa dormir, descansar, pensar. Estúpida e insensata. Expõe-me, faz-me baixar a minha tão engenhosa e eficaz guarda. Não gosto de ti, memória rebelde que se impõe como se fosse legitima. Não és! Viro-te as costas, ignoro-te. Olho-me no espelho e digo... Aqui quem manda sou eu!
 
Lucinda Gray

segunda-feira, 1 de março de 2010


Editorial

O Filósofo e o Fanfarrão é um blogue alienígena, escrito por seres vindos de outro mundo. Este alerta ao leitor é para que não estranhe aquilo que pareceriam incoerências, se de seres humanos se tratassem. Não temos forma humana e éramos cérebros vivendo em laboratórios, em tubos de ensaio completamente estéreis. Aconteceu, contudo, que alguém deixou cair uma migalha de pão num dos ensaios desses tubos onde vivemos e deu vida ao cérebro que nele estava inanimado e instalado. A actividade deste cérebro contagiou os outros cérebros entubados e todos começaram a produzir ideias. No início, foi dificil recolher todas estas ideias, algumas eram desconexas e inacabadas, mas, a pouco e pouco, as ideias foram brotando cada vez mais ordenadas, algumas delas contavam mesmo histórias fantásticas e inimagináveis. Foi nesse momento que, alguém, o cientista que dirige a pesquisa, resolveu fazer uma ligação directa dos cérebros à rede de internet, mais precisamente ao F&F – “O Filósofo e o Fanfarrão”. Ele passou a ser a expressão final de todos os pensamentos destes cérebros em análise. O que o leitor vir neste blogue são textos e imagens produzidos em laboratório por cérebros vindos de longe, activados com pão centeio cozido em forno de lenha. Não é uma mistificação, como tantas que se montaram na humanidade, com o objectivo de iludir o povo. O F&F é cerebral, é racional, é a própria destruição de todos os mitos e crenças; é o homem desligado do corpo e apenas espírito, sem necessidades, a acreditar em si mesmo. Deus nunca existiu e o homem já há séculos que está em decadência – chegou a vez deles, dos seres despojados de corpo, ensinarem ao mundo, a humildade do riso e do escárnio, a sageza da filosofia e do saber empírico. Contem, para isso, com as nossas palavras-actos...


O Editor