sábado, 31 de dezembro de 2011

O ÚLTIMO DE 2011 - Crónica Benzodiazepina


A ARTE DE PASSAR O ANO SEM PASSAS

Pois é. Ando a tentar passar a noite de fim de ano sem que me obriguem a comer aquelas estúpidas doze passas e, ainda por cima, a ter de inventar apressadamente doze desejos que nunca se concretizam. Não sei porquê, mas as festas de passagem de ano deprimem-me. Não suporto ver a histeria que antecede o bater das doze badaladas e muito menos o ar decadente que se apodera de todos após a meia noite. Os fatos desfeitos, os pisos escorregadios do champanhe entornado, os olhos borrados das lágrimas que resultam das bebedeiras ou das ganzas ou da constatação de que aquilo é tudo, tudo, uma grande fantochada... Enfim, um rol interminável de coisas que prefiro não ver.

Cá por mim, há muito que me deixei disso. Ou viajo. Ou então, se fico em casa, adormeço, o que à partida é muito bom. Ou, em alternativa, estendo-me no sofá a ler qualquer coisa e adormeço também...

Confesso no entanto que imagino algumas situações em que gostaria de me encontrar quando um ano passa a outro. Mas não vou partilhá-las agora com ninguém! ah ah ah


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011


Por mais anos que viva...

Os tempos eram outros. Nós éramos outros. A vida era outra. Vivíamos o tempo da nossa infância, estávamos isolados do mundo dos adultos mas sabíamos de cor o nosso mundo interior. Éramos – tentávamos ser – felizes na frieza e nos medos do espaço vital que nos deixavam. A felicidade passava por sermos nós genuinamente, por derrubar as fronteiras mentais que nos queriam impor. A sociedade crescia, nós crescíamos com ela.
Os tempos eram outros. Havia guerra, tinha havido guerras, havia medo, havia fome. Faltavam os proventos, o trabalho, a saúde, a sanidade, a educação. Os nossos pais calavam, mandavam-nos calar: cruzavam os lábios com o dedo a aconselhar silêncio. Os homens não tinham paz nem pão, não tinham liberdade. Alguns lutavam, trilhavam um caminho desconhecido que levava a um destino imprevisto. Um caminho em construção, onde as pedras se talhavam a cada passo.
Nós éramos outros. Sentíamos, na pele arreganhada, o frio da invernia; no corpo franzino, a fome; nos pés gelados, os buracos das botas; nas mãos e nas orelhas, a palmatória ou a vara de bambú eram o mestre-escola. Cada punição pelos nossos erros devia ser tomada como um castigo divino, uma benção correctiva. Sentíamos dor, a dor que se agravava com a injustiça, com o abuso da autoridade. Sentíamos revolta, sentíamos que haveria de chegar a nossa hora. Percorríamos a vida sem destino, sem planos, na miragem de um ideal que não era aquele que nos queriam impingir.
A vida era outra. Corríamos durante horas pelo campo, roubávamos para comer, para não ter de interromper a “reinação”. Dávamos pontapés nas pedras e divertíamo-nos. Usávamos camisolas e meias tricotadas pelas mulheres da casa, calças e camisas costuradas pelo alfaiate, botas de sola de pneumático feitas à mão pelos sapateiros. Conversávamos à lareira, conversávamos muitas horas, todos os invernos. Contavam-nos estórias antigas. Aprendíamos os mitos de um mundo velho; sonhávamos com um mundo novo a despontar na razão de cada amanhã.


Joshua M.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


Insomne

A minha cabeça não está mais aqui. Estará, porventura, em parte incerta. O tempo tem-se-me revelado escasso e cansaço é tudo o que resta em mim. O meu corpo cambaleia por aí porque é suposto. Percorro caminhos sem lhes atribuir destino final. Penso porque me é obrigatório e o sentir recusa-se-me por pensar demais. Já nem fascinar-me deveras, posso! E à noite o sono não vem e o tempo passa e o relógio toca e depois, já exausta de tanta exaustão, as pálpebras descaem aos poucos, não por ser natural, mas por ser suposto.


Joana Santos

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011


A cor do álcool

O álcool não tem cor. É apenas um filtro. Por isso o bebemos. Ontem perguntavam-me como consigo divertir-me à noite e aguentar até tarde sem beber álcool... É simples: divirto-me com ou sem, mas de maneira diferente. Se bebo, relaxo e vejo as pessoas como são. Se não bebo, desperto e vejo as pessoas como elas gostariam de ser; o que revela muito mais sobre a sua identidade...
O álcool é um filtro que nos protege na noite. Mas muito mais eficaz do que aqueles inventados há uns anos para os computadores e que não serviam para nada. O álcool ajuda as pessoas a saberem o que fazer com as mãos, a dizerem o que querem e a ouvirem o que de outra maneira não quereriam. O álcool dá uma coragem falsa, mas fiel ao nosso lado mais selvagem. Para muitos é uma forma de aguentar a bebedeira dos outros. Para todos é a maneira mais fácil de descer a um nível de inconsciência primitiva, quando as batidas dos tambores tribais e os gritos da natureza bastavam para sermos felizes. A noite é hoje o caminho que encontrámos para regressarmos ao início dos tempos. Quando não bebo, o que é a maior parte das vezes, é uma forma de persistir na civilização. Consciente.
 
 
Ana Santiago

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Palavras Versadas


E AGORA EU

e agora eu quero
eu quero para depois não querer
seguir o telefone por uma cidade
a língua de fora morre na ligação mas é sempre
a língua de fora
porque o corpo é objecto do tempo
e eu agora quero
mas não quero para depois querer
existir no corpo inabitado
nada mais me absolve
senão o silêncio em pleno voo
este corredor antigo que atravessa o escrito
o passado que lido é uma volta
a fracção de segundo
e agora eu sou alheia à imobilização do desejo
sobre cada sorriso
sobre cada noite
sobre cada pequena morte
que se liquidifica na insónia e na lembrança envolta
numa espécie de melancolia interna
que parece furar a nuvem de fumo
a vontade de ser um aqueduto
uma ponte
uma raiz vertiginosa
um pousar de cabeça
depois de um raciocínio complexo
e agora eu quero
eu quero partilhar um segredo
com as palavras que o suportam
escrever no inferno
enlouquecer bela e feliz.


Sylvia Beirute

domingo, 25 de dezembro de 2011

2011º Aniversário do J.C. - Provocatio


O pai natal existe

Este ano, o Pai Natal deixou-se de tretas e trouxe-me um par de sapatos Harlot, bem aconchegados nesta linda caixinha, feita a pensar nas donas de casa de comportamento exemplar.
O Pai Natal existe, é generoso, e sabe muito bem o que faz.


Iolanda Bárria

2011º Aniversário do J.C. - Crónica Benzodiazepina


Thank God, it's Christmas!

Se nem num dia conseguimos fazer de conta que somos todos irmãos, imagine-se o ridículo que é apregoar que o poderemos vir a ser todos os dias. E não importa se Jesus nasceu ou não, se o Natal é uma versão da Igreja para preencher o vazio que fica quando não há futebol, ou se os presentes são uma maneira de compensar as crianças e os adultos por já não nos lembrarmos o que é o Amor. A questão é sempre a mesma, é sempre a mesma e é sempre uma escolha. Queremos encontrar razões para nos aproximarmos ou queremos arranjar todas as justificações e mais alguma para o facto de não querermos ninguém por perto. Da minha parte, tudo serve de justificação para a união, a paz e a concórdia. Tudo serve de justificação para o Amor, principalmente quando não gosto, o que nem é o caso do Natal. Indo ao extremo: é tão mais importante encontrar o Amor no ódio. Onde já existe Amor, ele não precisa de ser encontrado. Mas, onde parece existir ódio, há um manancial de Amor por encontrar. Se a Igreja é um saco de misérias, eu não sou. Isso talvez me permita ver naquilo que a Igreja fez, aquilo que ela nunca percebeu ou pensou existir - Amor. Está frio, o Natal aquece. Os dias estão demasiado curtos, a festa e a companhia alonga-o em alegria até mais tarde. Come-se numa mesa repleta. Bebe-se, mas também se brinda ao amor incondicional. Se a família não se fala, aproveitemos esta noite para mudar isso. O Natal também passou a ser uma forma de perdão. Perdoo a Igreja por se ter esquecido que o Amor não exclui ninguém e faço-o dando-lhe o meu exemplo, não a excluindo do meu amor. Perdoe-se pelo menos por um dia a obscenidade que fizemos da Vida e talvez nos lembremos num desses Natais que nunca é tarde para nos perdoarmos. Jesus nunca chegou a nascer, mas a sua mensagem só desaparecerá quando não mais for necessária.

Bom Natal, a todos!


DuArte

sábado, 24 de dezembro de 2011

2011º Aniversário do J.C. - Provocatio


PRESENTE DE NATAL

Ela pediu-lhe algo brilhante. Ele ofereceu-lhe um candeeiro.

O que é que falhou?


Carmo Miranda Machado

2011º Aniversário do J.C. - Crónica Benzodiazepina


NATAL À MINHA MANEIRA

Que me perdoem as crianças. E os fanáticos do Natal. Pela minha parte, enchi. As luzinhas que se acendem por todo o lado começaram a irritar-me de uma forma inexplicável. Sei que este sentimento já tinha a nascer nos últimos anos mas alcançou agora proporções insustentáveis. De que vale este espalhafato todo... a electricidade que se gasta, a mão de obra, o muito papel desperdiçado em presentes inúteis... Enfim, não aguento mais. E avisei os que me rodeiam de que a partir deste ano o Natal será à minha maneira e quando eu quiser. Vou oferecer o que me apetecer quando me apetecer a quem me apetecer. E, sobretudo, não entrarei em palhaçadas. Falava há dias com uma amiga sobre esta minha opção e observei o seu ar estupefacto. Afinal, o Natal, dizia-me ela, é a altura em que a família se reúne. Pois, poderá ser... Mas não haverá outras formas, outros tempos e outros espaços para a família se reunir sem ser no dia 24 de Dezembro em redor de um perú recheado e uma árvore iluminada (graças a deus que surgiram as árvores sintéticas)?
O Natal é uma festa. Eu até gosto de festas. Mas é uma festa instaurada pela Igreja Cristã. Acontece que eu não morro de amores pela igreja cristã. Os cristãos criaram o Natal para substituir as tradicionais festas pagãs que celebravam o solstício de Inverno. Ora, não tenho ìdeia de existir nenhuma prova testemunhal na Bíblia (ou em qualquer outro lugar) de que Jesus de Nazaré tenha nascido no Inverno. Assim, o que se celebrava (e celebra) é a mudança de estação. Quanto à árvore, as minhas leituras apontam para esta tradição como oriunda dos hábitos saxónicos e nórdicos de dançar em redor de um abeto em noites de lua cheia, aquando da mudança da lua que antecedia o solstício de Inverno.
Eis uma ideia que me agrada. Passar o Natal em família ou com amigos (que muitas vezes são a nossa verdadeira família), numa reunião em que cada pessoa traga consigo um poema, uma canção, uma adivinha, um livro, um outro amigo..., dando largas à sua imaginação de certeza fértil mas adormecida por esta sociedade consumista e ofuscada por tantas luzes e luzinhas que teimam em se acender cidade fora.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011


A fobia do Tártaro

Proferiu um curto discurso, despediu-se sem uma lágrima , pediu que lhe passassem o copo. Bebeu e recostou-se comodamente na eternidade da poltrona. Diante uns dos outros: olhos em alvo, cabeça erguida, olhar perdido no infinito de um nada. Ali, estávamos todos sem dizer, olhávamos parados uns nos outros, olhávamos em frente sem distância focada. Era a única maneira de não vermos, de não nos contagiarmos de emoções. Olhávamos para dentro de nós de lá do fundo do tal infinito que imaginávamos, víamo-nos longe pequenos pontos a acenar às vidas que passavam. Ali, todos os seis com ele, estávamos os sete juntos de novo. Depois de termos conseguido anular o olhar de forma a não tocarmos uns nos outros, quedámos como que em estado cataléptico, nenhum de nós se mexia, ninguém dizia uma palavra, o silêncio não continha mais que um embirrante zumbido de uma mosca que atravessava a sala a espaços. Dei um passo atrás, quebrando a imobilidade de estátua e fazendo menção de me retirar. Senti sobre mim a atenção da sala toda, toda a humidade dos olhares fixos. Girei a cabeça, passando olhos pelos olhos dos meus companheiros perfilados, como que para os avisar da minha manobra. E retirei-me da sala abafado pelos tapetes em busca da solidão, em busca de mim, caminhei pausadamente até que me detive numa zona escura do corredor. Acendi um cigarro, com as mãos em concha: no espelho diante de mim reflecte-se uma luz num rosto que se aproxima. Viro-me automaticamente e aceno-lhe com o maço de tabaco mais a caixa dos fósforos. Ela aceita, acende um cigarro, e, sem dizermos nada um ao outro, caminhamos para junto de uma janela que filtrava a claridade da rua. Uma névoa de fumo marca a nossa posição, o soalho sustenta o peso da gravidade dos nossos passos sob o silêncio do corredor frio. Sem o sabermos, a luz vinda do mundo era o nosso destino: parámos os dois junto à janela virados para a rua a ver passar as vidas da gente que vivia renascendo do lixo. Num dos contentores estava um pequeno boneco de peluche que uma mulher acareou: aconchegou-o ao peito, cobriu-o com o xaile (como se tivesse reencontrado o afecto perdido) e seguiu pelo trilho da sua loucura rumo à escuridão. Como se a mulher tivesse sido ela também aventada à rua, com os trapos e os plásticos e todos os restos de existência que completam o nosso ciclo vital. Ficámos a ver o filme que passava na janela como se não fosse real, como se o mundo verdadeiro estivesse contido todo inteiro naquela casa e para lá dela se estendesse outro planeta desconhecido cujo acesso nos era vedado como realidade. A mulher caminhou vaga embalando os farrapos até desaparecer no fundo do breu da rua, até nos fazer perder a razão de observar o mundo. Num gesto simultâneo apagámos ambos o cigarro, fixámo-nos no rosto um do outro, abraçámo-nos. Perdido no conforto do abraço escutei a sua voz muito serena: “ – se um dia me vires assim alheia a tudo, vagueando pelas ruas, ajuda-me...!” Quando retornámos à sala um dos presentes, médico de profissão, acabara de declarar o óbito.


Joshua M.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011


Fake Empire

A minha vontade é largar tudo...

Olho em redor: não vejo ordem, nem harmonia, nem o que costuma valer aos desesperados. Não estou desesperado. Apenas vejo a amálgama, mais claramente, na vida dos outros; mas também a sinto, cá dentro, a corroer, lenta e eficazmente. O trabalho, as pessoas que teimam em ditar o meu destino. A casa de sonho que se faz pesadelo. Os filhos que não se educam senão por quem não tem jeito, mas tem tempo. Tempo que pareço não ter, apesar de saber que está ali, pronto para ser vivido, desfrutado, segundo a segundo.

Como se caminha para a porta que vejo ao fundo?

Eu sei como se caminha e apesar de tudo não me movo. Há uma consciência, ela separa-me de quem ainda não se apercebeu do dano. Como passamos a ser marionetas no mundo do faz de conta que somos felizes e o futuro é risonho. Pergunto: vale de alguma coisa ter a visão clara do erro em que nos metemos e fizemos vida? Creio que sim. Mas, se não der o segundo passo, acabarei por ceder ao mesmo, ou então, pior, enlouqueço neste meio caminho.
O primeiro salto foi penoso, doloroso, quase mortal. O segundo parece-me tão maior. Parece-me longe demais para quem convive com o que se quer para trás. A família, os hobbies, as paixões, a saudade e nostalgia, os sonhos que ainda não se realizaram e para os quais trabalho todos os dias. A sofreguidão por dar corpo ao mundo que nasceu dos nossos pesadelos.

A minha vontade é largar tudo; e sei que só assim conseguirei ir. A minha vontade é apenas e só, vontade. Não difiro do adepto sentado, à espera que o avançado chute e marque um golo, para poder levantar-me da cadeira. Assim não vou lá. Por estes dias não tenho escrito. Ouço música, ando de BMX, pinto bonecos em miniatura, jogo Nintendo, tenho orgasmos às mãos cheias. Adormeço a ver filmes da televisão, tombado no sofá, encostado à lareira.

Não tarda esqueço-me de tudo. E adormeço outra vez...


DuArte

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

EM DIA DE SOLSTÍCIO...


Três meses de Outono

Sempre soube a duração do Outono. São três meses. Três míseros meses de Outono. De vinte e um de Setembro, passo a passo, gota a gota, de arrepio em arrepio, de tremor em tremor, entre certezas e dúvidas, até chegar o primeiro dia de Inverno. A vinte e um de Dezembro. Foram, uma vez mais, como sempre aliás, três meses de Outono. Com uma precisão atroz. Tão atroz que até assusta. Que até comove. Mas este Outono... Este Outono fica-me marcado debaixo da pele. Não há chuva de Inverno que o leve. Que o lave.


Bruno Vilão

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Palavras Versadas


o silêncio de improviso

as possibilidades são
apagar a tua vida no meu corpo
como um cigarro
para depois continuar placidamente a fumar
tentando esquecer a tortura;
ou resistir
com um milhar de corações tatuados
de amor, contra
as muralhas negras que conheci nos teus olhos.
é tudo simples de mais,
é tudo cruel de mais.
talvez um dia a luz incida sobre os exércitos de palavras
que nos ensurdeceram secretamente
e saibamos o que ficou por dizer.
recordo-me dos teus rios ossudos como ombros
perto da boca, e
quem ama uma vez
pode nunca mais reaver o silêncio de improviso


Bill enGates

domingo, 18 de dezembro de 2011

Provocatio


Pré-sentidos

As palavras são voláteis cores de especiarias que se tocam em adágio. Espantam-se perante a indiferença dos dias na tela macia do papel em sinfonia cantábile. Adormecem depois, acariciadas por Orfeu, e aguardam por olhos melífluos para que lhes sintam o aroma a mar que trazem consigo numa oferenda aos deuses. Vão pintadas com sons agridoces da floresta mágica em que vivemos.


Berenice Greco

sábado, 17 de dezembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


CARTA A UMA AMIGA

Querida amiga

Retomo o que me escreveste exactamente há um ano atrás. Se já naquela altura tinha uma vontade exagerada de desaparecer nesta época, este ano esta sensação agudizou-se ainda mais.
Não suporto mais as luzinhas piscantes espalhadas pela cidade, os papéis de embrulho e as fitas reluzentes de cores impensáveis, os pais natais a trepar pelas paredes dos prédios, sim, esses mesmos, de perninha levantada a querer saltar para as varandas, o plástico das árvores de Natal e desta sociedade toda à minha volta. É verdade, querida amiga. Por mim, adormecia hoje e acordava aí para dia 2 ou 3 de Janeiro, quando a estupidez tivesse já passado. Parece, porém, que não vou conseguir dormir por tanto tempo, ainda mais quando sofro insónias gritantes que me fazem sentir um perfeito zombie durante o dia inteiro.
Se me perguntares o porquê desta angústia, respondo-te que me sinto deslocada, desintegrada, desinserida... como um extraterrestre que chega à terra e se confonta com seres estranhos numa azáfama furiosa e consumista rumo ao nada... sim, que de nada é feito o Natal. Família? Que família? A que me ignora o ano inteiro? Natais da minha infância? Qual infância? Aquela de que mal me lembro porque demasiado marcante? Amor e outras mentiras?
Sei que te vou parecer demasiado amarga hoje à noite quando me leres. Mas não te preocupes comigo, minha amiga. Limito-me a expressar-te a perplexidade com que observo o mundo à minha volta e, mais ainda, a constatação do que observo dentro de mim. E apesar de tudo isto, vou estar, mais uma vez, a pactuar com esta merda toda quando, dia 24 à noite, for obrigada a fazer teatro e a mostrar-me feliz porque rodeada da família, a mesma que me tem atormentado sempre.

Sei que me compreendes.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


Num pequeno mundo

Quim abeirava-se rapidamente dos trinta anos sem nunca ter, no sentido bíblico, conhecido uma mulher. Nunca sentira o toque suave da pele feminina, o calor de um abraço, o ardor de beijos apaixonados. Nunca vira desejo nos olhos de nenhuma mulher. Vira, durante toda a sua sofrida existência, piedade e nojo. Quim nascera com um sinal enorme no rosto. Cobria-lhe praticamente todo o lado direito da face. Inoperável, segundo os médicos. Todos se retraíam à primeira visão da grotesca mancha castanha. Depois habituavam-se. Ironicamente, a metade saudável do seu rosto era belíssima, pormenor que passava despercebido a toda a gente. Durante muito tempo os amigos até tentaram, sem sucesso, arranjar-lhe uma namorada. Depois levaram-no às putas para ser inaugurado mas nem o dinheiro valeu. Vive numa pacata aldeia da província e sente-se conformado com a sua condição.

Eurídice das Estrelas, filha de pais alienados, é desde muito nova defensora dos fracos e oprimidos e é também uma mulher linda que não tem a menor consciência da sua beleza. Em pequena, Eurídice era uma menina feia e desajeitada com quem quase todos os miúdos gozavam. Era perfeitamente alheia a essa maldade e crueldade para consigo e somente parecia notá-la quando era dirigida a outros mais fracos. Nessa altura abespinhava-se e se fosse necessário batia naqueles que ousavam meter-se com os mais frágeis. Na adolescência, Eurídice, o patinho feio transformou-se num cisne sem se aperceber. O seu grupo de amigos tinha todo o tipo de pessoas esquecidas pela vida. Um grupo estranho mas que fazia tudo por ela, como ela sempre fez tudo por quem precisava. Hoje em dia é professora primária e está de partida para uma pequena aldeia na província...


Missanga

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011


O meu papel é decidir

A confiança ou a falta dela são sempre uma decisão nossa. Podes decidir de uma ou de outra forma. Podes decidir olhar para um amasso na confiança e vê-lo como irrevogável, mas também podes ouvir um pedido silencioso sempre que alguém parece trair-te, um convite ao amor incondicional. Alguém que trai e ainda assim se sente amado, já não tem mais o que temer nem porque fugir ao amor.

Quem trai, trai-se sempre a si mesmo. Quem se sente traído, é sempre traído pelas suas expectativas em relação ao outro. Quem ama, tem tudo.


DuArte

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011


Quando somos...

Quando somos, somos grandes. Quando somos, podemos decidir deixar de fumar ou retomar por estupidez. Podemos mandar tudo ao ar ou decidir ficar. Entrar num bar, beber, dançar ou desatinar. Amar ou odiar. Comer ou fechar a boca. Dormir ou arregalarmo-nos sem medo da noite. Nadar ou afogarmo-nos na areia. Gastar bem, poupar mal ou crescer e conviver generosamente com o dinheiro. Quando somos, podemos abandonar casas, retornar a elas, escolher outras, imaginar algumas ou viver a céu aberto. Ouvimos a música que queremos. Dizemos ou guardamos as palavras que queremos. Podemos nada fazer por mal ou decidir fazer algo por bem. E se quisermos despir-nos? Também. E ainda podemos vestir caro ou piroso. Até podemos, quando somos, andar trajados de amianto com um isqueiro no bolso. Quando somos, somos grandes, e o que somos seremos até que nos doa ou alguém nos puxe para um lado ou para o outro.

Quando somos, somos infernalmente felizes ou infelizes.


Ana Santiago

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Palavras Versadas


POEMA PARA RENAN NUERNBERGER

dislike it. o corpo está numa cidade inexacta
espalhado por trinta e dois poemas. cada poema
está equidistante do corpo.
a impossibilidade adquire a graça do segredo
e a música prolifera na água.
dislike it. e diz agora diz simplicidade
nas afirmações que se tornam
experiência. que o futuro é um compêndio de estilo,
o meu estilo é um compêndio de futuro,
o meu compêndio é um futuro de estilo
próximo da cidade incisiva e com sede.
e tu dizes dislike
de toda a página que encobre
os poemas que são mesmo poemas,
a velhice que se encerra na beleza dos dedos,
enquanto as palavras dão lucro
e fazem um homem rico quando em silêncio,
quando flutuando às claras sobre as cabeças pensando
a mais inconfundível devolução.


Sylvia Beirute

domingo, 11 de dezembro de 2011

Provocatio


Para além do pronome

Não possuímos nunca ninguém. Nem o corpo e muito menos a alma. Por vezes podemos pensar que sim por instantes fugazes, breves momentos de entrega total, do mais completo abandono, num abraço apertado onde o tempo fica suspenso, nos silêncios repartidos em que as almas se encontram e entrelaçam. Mas são momentos, simplesmente momentos…


Missanga

sábado, 10 de dezembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


MONOGAMIA OUTRA VEZ

O mundo não deve ser reduzido para caber na compreensão... mas a compreensão deve ser aumentada até conseguir conter o mundo. (Sir Francis Bacon, 1561-1626)

Já a minha muito querida antropóloga Margaret Mead repetia que a monogamia é a mais complicada e também a mais rara de todas as combinações maritais humanas. Há provas fortíssimas de que os seres humanos não são naturalmente monogâmicos embora possam ser. A verdade é que estudos feitos nesta área mostram que a monogamia não só é rara como difícil e quase anti-natura. E basta darmos uma voltazinha pela História, pela Literatura, pela vida... para o constatar. Já na primeira grande obra da literatura ocidental, Homero fala das consequências do adultério. Na Ilíada, para quem não se recorda ou mesmo para quem não leu, Helena, que era uma rainha grega, casadíssima, manteve uma ligação com Páris, filho do rei Príamo, de Tróia, chegando mesmo a abandonar o seu marido, Menelau, facto que precipitou a Guerra de Tróia. E era uma gaja...
Mas basta ficarmo-nos pela natureza para percebermos que biologicamente a própria monogamia é rara. Entre quase todos os mamíferos, incluindo a maioria dos primatas, a monogamia simplesmente não existe. É mesmo uma raridade. Das quatro mil espécies de mamíferos existentes, não mais do que algumas dúzias constituem pares estáveis. Parece que os morcegos (coitados, só vêem à noite), as raposas (estúpidas), os saguis (com um instrumento sexual minúsculo, pudera...), mais meia-dúzia de ratos e ratazanas... E se tivermos em conta questões biológicas como o fenómeno da competição dos espermatozóides, esta é ou não uma maneira de dizer "não à monogamia"?
Bem, voltando ao termo monogamia: este designa exclusividade de acasalamento. Mas esta exclusividade não passa de um mito, não é? Ainda que as mulheres sejam mais cuidadosas e prudentes na escolha do parceiro, e os homens significativamente menos selectivos, eles só poderão levar a sua avante se houver um número também significativo de mulheres disponíveis para tal. Certo? Por outro lado, por qualquer razão que desconheço, os homens tendem a exagerar o número de encontros sexuais e as mulheres tendem a diminuir o seu. No fundo, tudo isto se trata de uma grande e perfeita hipocrisia. A espécie humana é propensa a ela, dizendo uma coisa a respeito da monogamia e fazendo outra.
Por tudo isto, penso que a solução será aceitarmos todos, homens e mulheres, o facto de que a monogamia é um mito e pararmos com hipocrisias desnecessárias. Recordo-me de uma cena do filme "Heartburn" em que a heroína, interpretada por Meryl Streep, conta ao pai, em grande sofrimento, as infidelidades do marido e este limita-se a responder-lhe: "Queres monogamia? Casa com um cisne."
Porém, continuo a acreditar ser possível estar com um parceiro e ser-lhe fiel enquanto a relação existir e for satisfatória a todos os níveis. Mas cada vez mais assisto a situações de infidelidade quer masculina quer feminina embora, ou porque elas não contam ou porque é mesmo assim, eles ainda levem avanço... Como diz um provérbio britânico muito conhecido: "Infants have their infancy. And adults? Adultery."
 
 
Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011


Partidas e chegadas

É preciso partir, caminhar, chegar onde chegamos e voltar a partir. Fazer tudo de novo. Tudo outra vez, como se o caminho fosse a primeira vez. Tudo para aprender que assim é o nosso viver: ficar a ver-nos passar diante dos olhos, perdidos e repetidos no espelho, como se fôssemos a duplicata dos nossos erros. Viver é cometer erros, muitos, perdoarmo-nos depois de nos sancionarmos com penitências de precaução, com arrependimento bastante. Tentar entranhar a não repetição do indevido, jurar uma ética do amor sobre os actos ditosos de amanhã. Viver premente em busca da civilização perdida. Ir em busca do afecto perdido nessa civilização e ressuscitá-lo como princípio activo.
Começar para ganhar, perder e recomeçar. Recomeçar sempre: fazer tudo de novo, uma e outra e outra vez. É sempre hora de reinventar o que já se viveu num acto falhado precocemente, numa ejaculatória extemporânea. Reviver, reeditar continuamente a vida revista e actualizada, como as "páginas amarelas" ou os códigos das leis amoralizadas. Falhar de novo, por vezes; falhar de novo, tantas vezes quantas forem precisas para aprender onde não falhar.
Repetir o repetido, o irrepetível, o inexequível, até à exaustão do sucesso. E no dia em que tudo atinja o zénite da perfeição, voltar ao nádir, percorrer o mesmo trajecto pelos trilhos que levam ao tempo da mudança. Por vezes há que mudar de rumo para manter o mesmo sentido. É preciso saber o caminho de ontem, é ele que nos indica onde estamos hoje e qual a direcção a seguir amanhã. É preciso percorrer o caminho de amanhã, porque ele é a nossa razão de ser de hoje, é o futuro que sonhamos agora vir a ser.
Calcorrear assim, como um Sisífo esforçado, todo o caminho da vida com os pés movidos pela certeza dos nossos ideais, porfiar mesmo nos passos mais lentos e titubeantes. Deixar marcas no caminho, pedaços de vida presos aos arbustos que nos arrepanham a pele com espinhos, coleccionar cicatrizes como quem guarda memórias. Esquecer a dor, suportar o castigo de procriar com pecado originado, até gerar uma nova espécie sem pecado originante. Emprenhar a vida de toda a sorte de filhos, marcá-la com o efêmero ferrete da nossa passagem, até conseguir viver nela o prazer de existir depois dela já não estar connosco.
Não, nunca viver por viver um não viver encostado à esquina de uma espera, nunca correr para ser atropelado por um amor em excesso de voracidade e vir a cair ferido de dúvidas numa zona de conforto aparente. Nunca seguir uma via de sentido único para acabar estacionado à porta de uma urgência num serviço de ambulâncias cardio-afectivas. Algumas afeições sofrem ferimentos de morte, acabam na morgue dos sentimentos; outras, menos frágeis, suportam rudes golpes e seguem sobreviventes a todas as investidas do ódio.


Joshua M.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011


"Não te admires que eu diga..."

Leio o Pe. Felicidade Alves, que cita alguém, que lhe escreve: "Aprendemos a ter um respeito religioso pelos padres, vendo neles o próprio Cristo. Não nos é possível vê-los distribuir o pão dos anjos, depois de sairem do leito conjugal".
Isto vem transcrito, em: " Não te admires que eu diga: É preciso nascer de novo", um 'pequeno' livro onde o Pe. Felicidade Alves relata e questiona os longos e penosos dias da sua vida (1968), em que foi suspenso do exercício das funções de sacerdote. O motivo é conhecido: amar uma mulher e querer casar com ela.

É uma simples, modesta e corajosa edição (de autor, pudera)!
É também um título muitíssimo bem escolhido. Tem força. Fica no ouvido!
Gosto de títulos que nos falam em particular. E gosto particularmente do "Não te admires que eu diga..."
À época, talvez o Padre Felicidade Alves considerasse um tremendo motivo de espanto dizer "É Preciso Nascer de Novo" (quanto às mudanças na Igreja Católica, em matéria de celibato). E por isso, avisa-nos previamente: "não te admires que eu diga...", como se  nos fossemos admirar!


Iolanda Bárria

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011


Make me feel safe...

Haverá pedido mais abusivo que este? Está muito para lá do nível do desejo do Cesariny quando escreveu que “queria de ti um país de bondade e de bruma”. Um país, assim inteirinho, ainda que dos mais pequenos, de bondade, já roça o atrevimento. Mas "de bondade… e de bruma"!? Ao menos teve o decoro de não o exigir. Soltou um mero esgar evasivo e livre de compromissos tácitos. Apenas “queria”. Assim. De forma solta no átrio das ideias vagas. Bem, mas se é apenas para soltar a ânsia reprimida, também queria um Continente de intimidade neurótica e de compreensão para com todos os recantos oblíquos da minha personalidade. Agora, “Make me feel safe”? Isso já não é repto que se lance a quem quer que seja…


Bruno Vilão

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Palavras Versadas


astronómico

quieto. eu estava quieto
de mãos inquietas enterradas no húmus
plantando pontos de interrogação como se mente
como quem mente ao destino
dentro do covacho transparente da vida

eu estava quieto, como uma empa desconforme
lembrando à pequena mimosa o seu lugar na terra
por vezes passeava um gato turvo nas folhas em volta
adivinhava nele uma nuvem, e isso transformava-me
numa orelha imaginária, melhor, num nariz à escuta
à espera que um alvoroço súbito pingasse

estar quieto, quase inânime, o meu ofício
quando projéctil te desferiste na minha direcção
e chegando vieste gravitar em redor, a exalar
partículas cósmicas do beijoim, lúnulas perfeitas
da sua goma centrífuga, arqueando-se até mercúrio
a tua raiz tocou-me com a frieza da inevitabilidade
perguntei: aonde vais perfume?

lembra-me vagamente um foguetão nas tuas pernas
antes de partirmos para o espaço, lembra-me
a finita incerteza no rastilho estelar da pele
a certeza infinita que dissolve o hímen de todas as galáxias
perguntei: já chegámos?
assim plantámos uma órbita — não tínhamos terra, apenas
o solo possível dos astros, o seu luzimento inséctil
— desde a ápside, até nos bastarmos sem mais planetas


Bill enGates

domingo, 4 de dezembro de 2011

Provocatio


POLIANDRIA

A poliandria é uma situação em que uma fêmea possui vários machos, sendo detentora de um harém. Popularmente designada "puta", esta será contudo a única mulher verdadeiramente emancipada do séx. XXI. Porque não se prende afectivamente/emocionalmente de forma bizarra e castradora a nenhum deles. Porque assume a sua sexualidade plena. Porque não cobra afectos, limitando-se a usufrui-los. Porque, e antagonizando-me com o autor de célebre livro que anda por aí nos escaparates, afinal as mulheres gostam de foder.


Carmo Miranda Machado

sábado, 3 de dezembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


A dita-dura lei dos super-mercados

Há dias em que olho para o mundo e não consigo evitar a sensação de que está tudo louco.
As agências financeiras e os mercados passaram a ditar o modo como cada país deve gerir as suas finanças e, consequentemente a sua política social. Os ditadores, que antigamente eram de carne e osso, tornaram-se entidades abstractas que impõem ditaduras às sociedades ditas democráticas.
O racismo e a intolerância para com a diferença crescem desmesuradamente. Surgem loucos de extrema direita que querem limpar a Europa, que almejam a uma Europa livre de muçulmanos, de negros, de homossexuais e de todos os cidadãos que não sejam da mais pura casta do conservadorismo europeu.
O que eu realmente queria era ver a Europa livre de gente louca, gente capaz de assassinar a sangue frio dezenas de pessoas, gente que se acha superior porque tem a pele clara e porque professa uma qualquer religião cristã e em nome dela mata, sem remorsos.
A pluralidade cultural sempre me fascinou. Não gostaria de viver numa Europa fechada a outras culturas. Gosto de passear por Lisboa, de a ver cheia de cores e de ritmos de países longínquos. Não acho, como muitos, que os imigrantes roubem o trabalho a ninguém. Acho, isso sim, que eles fazem o trabalho que os outros não querem fazer. Há bandidos entre os imigrantes? Há muitos, certamente. Do mesmo modo que há bandidos entre os naturais de qualquer país europeu.
Ah, e se não for pedir muito, mandem à merda os mercados e as agências financeiras!


Missanga

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011


Adeus

Chegou a altura de nos despedirmos, fiel amiga. Nos teus braços adormeci por noites a fio. Inspiraste-me nos mais profundos poemas e acompanhaste-me em todos os soluços , em todas as quedas, em todas as despedidas. Mas não sentiriei a tua falta. Ironicamente pode ser assim ingrata a natureza humana. Lembrar-me-ei de ti, primeiro com carinho e depois como quem se lembra de um rosto que perdeu a nitidez por entre as brumas do esquecimento. Mas não sentirei a tua falta, garanto-te! Não chorarei aquela tepidez com que me embalaste, nem as tuas carícias no meu rosto vazio. Não esperarei pela tua companhia, essa que em tantos momentos foi a única que tive. Mesmo sabendo-o, não me lembrarei de ti. E dito isto, resta-me dizer-te adeus: Adeus, tristeza!


Lucinda Gray

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


No teatro da vida

A vida é de tal forma ensaiada, leia-se, formatada, que a dificuldade maior não é exercer o papel. A vida é como aqueles desenhos do Escher, fechada numa redoma, às voltas, sempre às voltas, numa escadaria sem princípio nem fim.
Nunca é por acaso que a surpresa existe, nos possíveis aplausos no final de um acto. Os cenários estão igualmente montados, o papel de fundo, a iluminação artificial. Estranha-se é que os actores não se apercebam quando por lapso vem abaixo um projector, quando na mesma cena se vêem a representar em simultâneo o papel de filho e o papel de pai.
A dificuldade só surge quando a meio do espectáculo decides mudar o teu papel.
Não estranhes se, perante o teu desejo de abandonar o palco, o encenador se virar contra ti.


DuArte

quarta-feira, 30 de novembro de 2011


Os outros

Livros, filmes, terapias, toda a sensibilidade e bom senso deste mundo, ou mesmo uma espiritualidade acima da média, não são capazes de nos permitir fazer aquilo que podia construir a verdadeira paz entre nós: colocarmo-nos a cem por cento no lugar do outro. Exactamente no lugar do outro.
Podemos imaginar, compreender, munirmo-nos de toda a abnegação possível, desprezar a pena e elevar-nos à excelência da raça humana com compaixão. Podemos "sofrer com". Não poderemos jamais "ser como". Eis a verdadeira solidão. A incapacidade de ajudarmos alguém que não seja apenas por empatia e um abraço apertado. A probabilidade de nos perdermos uns dos outros, por não conseguirmos estar todos no mesmo lugar. Às vezes penso que essa incapacidade nossa é o maior trunfo de Deus para precisarmos dele.
Resta-nos estar cada um no seu lugar, mas ao lado do(s) outro(s). Sem o perder de vista.


Ana Santiago

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Palavras Versadas


a gaivota que trazia no bico um pedaço de mar

desfez o ninho para voar e voou sem se erguer até crescer
para além das asas desertas sobrevoou o mar no fundo – a ave
era um peixe azul marinho – nadando pelo ar inerte
certa da certeza das ondas e do peso das nuvens

indo e vindo e revoltando
a salmoura urdida pelas marés reiteradas

cruzando o ramerrão lunar das vagas vai
colhendo pérolas de maresia
pedaços de brancura fugaz na espuma do céu
lutando contra a corrente de ar incondicional
ferida de morte súbita
cai pesada a gaivota – que mal sabia voar
e nadava pelo ar inconsistente – no triste pranto da chuva 

sobrevive à queda abrupta da viagem
trazendo consigo uma nuvem breve na água do bico

: um pedaço de mar


Joshua M

domingo, 27 de novembro de 2011

Provocatio


e o paraíso no teu olhar...

Lauro:

" - Só hoje de manhã reparei que a Maria de Deus é estrábica!
Estrábica!
Tinha-a perfeita.
Que aborrecimento! que chatice, quero dizer!
Sinto um mal estar...
Já não é a mesma coisa olhar para ela, ah isso nunca...
Como é possível, ainda ontem a vi tão de perto, olhos nos olhos (até a beijá-la)! um olhar lindo, doce... e hoje dou com este desencontro: um olho para cada lado!

Estrábica, quem diria!"


Iolanda Bárria

sábado, 26 de novembro de 2011

Mário de Cesariny (9 de Agosto de 1923 / 26 de Novembro de 2006)


Lago Mudo - (a)variação

Primeiro foi o Pessoa a dar o mote, ao contemplar o Lago Mudo. O Cesariny seguiu-lhe os passos em “O Virgem Negra” para explicar as palavras do poeta dos heterónimos às criancinhas naturais e estrangeiras. E eu, como uma criança invejosa que do canto do pátio do recreio observa os dois a jogarem às palavras, ávido por entrar no labirinto lúdico das letras, sinto-me impelido a perguntar-lhes, quase em surdina: “Também posso brincar?”.

O oblíquo olhar que me lançam é revelador de uma cúmplice desconfiança, como quem pensa: “Mas quem és tu, que ousa poder dar continuidade à tradução da explicação do Lago Mudo?”. A verdade é que acharam piada ao arrojo e os sinais que recebi deram-me alento para decifrar às criancinhas virtuais e matreiras, a explicação do Cesariny sobre o "Lago Mudo", do Pessoa. Então, e só então, atrevi-me a contemplá-lo, também:

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa revolve
Não sei se culpo tudo
Ou se tudo me absolve.

A brisa não me conforta
E o lago é uma visão distante
Não sei se leio em linha torta
Ou se me enleio no instante.

Trémulos vincos enfadonhos
Não sei se de vinda se de ida
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única saída?

Para quem não conhece ou quiser recordar o original do Pessoa, aqui está:

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

Assim como o “cover” do Cesariny:

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa sacode.
Não sei se fodo tudo
Ou se tudo me fode.

A brisa é o lago a ir
A uma ideia de mar.
Não sei se me ate a rir
Ou desate a chorar.

Trémulos vincos medonhos
Cercando a água toda,
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única nódoa?


Bruno Vilão

Mário de Cesariny (9 de Agosto de 1923 / 26 de Novembro de 2006)


Santas e marinheiros

Foi numa agradável tarde passada em conversa com o meu querido amigo António, em que falámos (também) de Mário Cesariny, que o recordei. E as memórias deslizaram. Vagas. Leves. Soltas. Relembrei-me das palavras trocadas, dos acenos, do sorriso (sempre) malicioso, das constantes provocações, dos elogios ardilosos, dos aplausos resgatados nas estreias de peças em que eu participava e, claro, das histórias. E, oh, se aquele homem tinha histórias para contar. Além do mais, sou um dos cinco mil rapazes que se pode orgulhar de ter no currículo um pedido de casamento do Mário Cesariny, em jeito de provocação. Revivi então um episódio, em que o Cesariny, em passo apressado ao lado de um qualquer marinheiro, passou na rua por um amigo em comum. Era Sexta-feira Santa, esse dia tão sagrado em que se deve honrar o caminho do Senhor, e solta-se a questão: “Ó Cesariny! Pelo amor de deus, hoje é Sexta-feira Santa”. A resposta, como sempre, estava à boca de cena, aguardando ordem de disparo: “Não há problema. Marinheiro não é carne, é peixe. Hoje pode comer-se à vontade”.


Bruno Vilão

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


Génesis (ou, uma estória de afectos muitíssimo original)

Era uma vez uma estória que começava como todas as estórias, “era uma vez”... Era uma estória de um príncipe e de uma princesa que, um dia desencontrados, se vieram mais tarde a reencontrar, à imagem de todas as estórias do género. Ela era vendedora na loja das meias; ele trabalhava no turno da noite no metropolitano. Ela baixa que, ao sol do Rossio, não entrava na Rua da Betesga; ele debaixo de terra, não passava de estação, nem nunca foi apontado pelo Chiado. Encontraram-se entre estações, no começo da primavera. Casaram nas "noivas de santo António" e separaram-se numa festa de carnaval.
Com a euforia do festim, a confusão dos mascarados e a pouca convivência entre ambos, perderam-se um do outro: ele saíu por engano com uma suposta dama de copas; ela deitou-se com a máscara do rei de espadas. Deram conta disso alguns anos depois, quando por acaso se reencontraram entre estações, num dia de greve dos transportes. Ela perguntou-lhe se ele ainda vivia naquela casa. Ele, disse que sim. Ela, confirmou-lhe que também ainda estava a viver nessa mesma casa. Trocaram um carinho com as mãos e olharam-se cheios de saudades nos olhos. Prometeram voltar a ver-se mais vezes. Ela deixou o número de telefone dela; ele guardou-o na carteira, junto à fotografia da mulher de máscara.
Um dia, encontraram-se frontalmente num café a meio da noite. Ele, não suportava mais aquele trabalho, resolvera desertar. Ser polícia subterrâneo não era nada fácil. E depois ter de andar sempre com aquela máscara, dia e noite. Ela, fora despedida: o negócio das meias acabara praticamente desde que se começaram a usar aqueles fatos-máscara que cobriam o corpo todo. Estavam ambos ociosos, à procura de algo em que entreter o ócio, quando se reencontraram nessa tarde. Ela, teve dificuldade em reconhecê-lo sem máscara; ele, reconheceu-a – mesmo sem lhe conhecer a cara –, reconheceu aquele sinal nas costas da mão e as nódoas de batôm carmim na ponta dos cigarros. Foi bom dar-se conta de que conhecia as mãos dela, de que agora poderia ligar essas mãos a um rosto. As mãos sem rosto têm sempre alguma coisa a dizer, mas é a expressão do rosto que dá sentido às suas acções, seja crime ou carinho.
E assim termina esta estória, tal como terminam todas as estórias, por ter de terminar. No dia em que os amantes se viram cara a cara, se deram por fim a conhecer, deram para sempre as mãos que já conheciam. Beijaram-se, sim, provavelmente ter-se-ão beijado, sofregamente, como o fazem todos os amantes reencontrados. Assim poderiam ter ficado imortalizados – numa pintura, numa fotografia, ou até num texto – atados um ao outro para sempre, num abraço de vida que o mútuo afecto vai reinventando.


Joshua M.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011


Naquele tempo...

No princípio de tudo, era o tempo dos sonhos... Aquele tempo em que, em vez de moelas recheadas de alfinetes, jantávamos salmão à sombra dos abismos e éramos felizes! Um tempo em que o grande segredo do amor era simplesmente não amar... Tempo em que passávamos noites juntos à luz do fogo que ardia nas nossas mentes sem nunca tocarem o coração.

Nessa altura, eu sabia já, como sei hoje, que tudo o que deixamos ir está perdido para sempre.


Carmo Miranda Machado