quinta-feira, 30 de setembro de 2010

BLOGONOVELA "O GUARDADOR DE VARAS" - Episódio V


O GUARDADOR DE VARAS(V)

Para acalmar os nervos, o conceituado doutor dormiu uma sesta ronceira até ser acordado pela sua carismática esposa. “O teu convidado já chegou há um pedaço. Tinha um ar muito emporcalhado”, anunciou ela, que para o reconfortar e recobrar daquele falhanço inusitado preparara uns rojões de grunhir aos céus e uma cabidelinha com sangue fresco. Por trás de um grande homem há sempre — é bem verdade — uma grande mulher.
Desde então, porcos e aldeões não voltaram a ver Tó, nem tão-pouco ouviram algo mais a respeito dele. Desapareceu insuspeitamente, estranhamente e sem deixar rasto. Os porquinhos todos emagreceram de saudades assaz gigantescas. E, assim, a pocilga comunitária foi forçada ao término, porquanto todos os porquinhos regressaram à respectiva tutela.
O doutor Costa Leta — dirá o povo que por ter de ler a própria letra, assevera a mulher que foi de desgosto profissional — padeceu num processo de miopia gradual e acabou, ao fim de um punhado de meses, por ficar totalmente cego. O diagnóstico do seu colega oftalmologista apontava para excessos de alimentação perpetrados na forma continuada, que terão feito disparar o ácido úrico de forma bombástica. Entre outras coisas, mas principalmente, o médico foi proibido de ingerir carne de porco.

De resto, e por mais tempo que passe, Tó não será jamais esquecido pelos habitantes locais que com ele se cruzaram. Aliás, ainda hoje muito se muge na aldeia acerca disso. Mmmuuuuu de honra!


Bill enGates

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Palavras Versadas


contraditório do pan-amorismo

nunca conseguiremos
amar todas as coisas
nem por todas as manhãs
que da primavera ao inverno passarão
passando pelo outono e pelo verão

porém com tudo amaremos
mesmo que as rosas não desabrochem
para significar o que damos
ou o perfume das orquídeas se evole
ar pelo ar inconstante
ou o luar obnubilado se apague
por entre nuvens errante

nós saberemos amar as coisas simples
porque elas são a virtude
nós não somos eternos complexos
mas uma multitude de afectos
feita de breves amplexos


Joshua M.

domingo, 26 de setembro de 2010

Provocatio


FALTAR À DESCOMPENSAÇÃO

{à memória de um poeta: ademar santos}

talvez
um poeta
não transmita emoções.
talvez a sua emoção
intransmissível
seja a de colocar um isco
para
emoções alheias.


Sylvia Beirute

sábado, 25 de setembro de 2010

Crónica Benzodiazepina


Post de alta tensão

Hoje sonhei contigo. Foi profundo e aconteceu pouco antes de acordar, como que para garantir que me lembraria de tudo. Nem me apetecia tomar banho só para guardar o cheiro dos lençóis e as vozes dos risos que me ofereci no sonho. Deste-me a mão durante tanto tempo, apesar da multidão que nos rodeava, sorriste-me e eu, para variar, dei-te um beijo, daqueles de que supostamente ninguém devia desconfiar. Mas, acabei por roçar-te o lábio húmido. Gosto desses, são um prenúncio... E tu riste, da maneira que eu gosto, com o coração e com os olhos. Havia muitas crianças que chamavam por mim, uma delas fazia anos e era dia de festa. Corri para elas, mas sempre na tua mira. Abracei-as, beijei-as e depois disse-lhes adeus e fui ter contigo. Uma porta abriu-se e nós entrámos. E eu acordei. A Maria G. diz que, quando se sonha com alguém desta maneira, é sinal de que noutra vida as respectivas almas estiveram algures lá em cima a conversar...


Ana Santiago

sexta-feira, 24 de setembro de 2010


O Desaire dos Porcos

Era mesmo contigo que queria falar. Sim, contigo, senta-te aí e tenta entender o que te quero dizer. Se tivesses um grande porco e esse porco comesse a comida dos outros animais que tens, não deixando nenhum animal medrar em seu redor, que farias? Dizia Samuel para David, vizinhos e amigos desde a celebração do Bar Mitzvah de ambos na sinagoga de Hébron. Não sei, acho que o matava, se assim fosse... Responde-lhe David. Pois, é esse o meu problema: tenho um porco enorme e mau. O que era apenas um leitãozinho inofensivo e comilão transformou-se num monstro que agora aterroriza os outros animais. Pensei bem no assunto e já decidi, vou matar aquele porco enorme e fazer uma festa ainda maior que a do ano passado. Era um porco com cerca de duzentos quilos, daria carne de sobra para toda a gente do Kibutz. Não faltaria comida para todos os convivas e poderia ainda conservar em sal e especiarias uma ou duas patas do porco, para consumir durante o inverno com a família. Assim fez Samuel, passado o Sabath, chamou toda a vizinhança e a folia durou uma noitada ao som dos cânticos animados pelo álcool e pelo estômago reconfortado. No dia seguinte tudo voltou à normalidade na parcela rural a cargo de Samuel, os outros porcos, as ovelhas, as cabras e as galinhas medravam a cada grão, a cada réstia de verde que despontava do chão. Já não viviam no desespero de ver o grande porco comer tudo, ou sofrer os seus ataques quando tentavam colher algum quinhão do que ele achava só a ele pertencer. De tudo o que era comestível o porco se apropriava, sem pensar senão na sua pópria barriga. Mas, alguns meses depois, um outro porco, que antes até parecia o mais pacífico, sendo o mais sacrificado pelo antigo déspota, tornara-se agora o maior porco da exploração e começava a atormentar e a impedir os outros animais de comer. À medida que a sua estatura e força aumentavam à custa da comida que roubava aos outros, este porco tornava-se cada vez mais violento e voraz. Passado algum tempo, o pobre Samuel chegara à mesma situação, já nem o seu sustento e da família estava seguro, pois o voraz porco deglutia tudo o que encontrava. Até pão ázimo deixara de haver na mesa, porque o suíno devorara todo o trigo. Descontente com a atitude do animal que tão bem tratara, Samuel resolve fazer mais uma festa e sacrificar este novel bácoro déspota que o estava a arruinar. Ainda lhe restavam três porcos que, haveriam de sobreviver, apesar de esqueléticos por se terem alimentado apenas dos restos do seu congénere dominante.
Contudo, de cada vez que Samuel matava um dos despóticos cevados, porque ele se queria apoderar de todas as provisões, surgia outro no seu lugar, com idêntica voracidade e a mesma tenacidade em guardar o melhor para si. Por outro lado, as festas de Samuel eram já badaladas e o seu assado de porco um dos mais afamados de Haifa e arredores, mas o último dos grandes machos, que tentava dominar e açambarcar para si todo o alimento, já se consumira como os anteriores. Restava agora tão só uma porca e estava prenha. Era ela que dominava agora os outros animais e impunha a sua austera lei da fome aos demais. Porém, nenhum criador ousaria matar uma fêmea em fase de gestação, e Samuel também não o faria. Teria mesmo de comunicar aos esperados convivas que nesse ano não haveria porco nem festa. No entanto, quis o acaso que, a ora dominadora porca morresse de indigestão, de tanto trigo que comeu. Porém, esta não se finou sem antes parir um rechonchudo leitão, um belo exemplar para manter a espécie, o último daquela casta.
Samuel chorou de alegria ao ver o pequeno e trigueiro cevado, que renascia das cinzas da morte como uma dádiva divina. Quando tudo parecia estar perdido, eis que do mundo dos mortos ressucita o último dos suínos da casta dos mandadores, um macho varão atarracado e moreno, que com certeza asseguraria uma bela descendência. Haleluiah, deveriam começar imediatamente os preparativos, não havia tempo a perder, era véspera do Bar Mitzvah do seu filho Benjamim e Samuel queria ter tudo pronto a tempo para os festejos. Agarrou no pequeno porco ao colo e rezou, mas ao pegar-lhe reparou que ele tinha, como que tatuada, uma marca no peito – uma estranha cruz de pontas quebradas. Samuel tomou imediatamente aquilo como um sinal de deus, era ele que lhe enviava aquele animal para o compensar de todas as perdas. Agarrou então nas patas dianteiras do animal com uma das mãos e, pondo os pés de cima das patas traseiras contra o chão, espetou-lhe suavemente uma faca no pescoço até que o sangue começou a jorrar. Enquanto isto, pensava: afinal é apenas um leitão; apenas mais um porco, ainda que pequenino. A partir de então, não mais voltou a haver cevados no kibutz; e, por ali, ficou feita a justiça que os homens fazem pela mão dos deuses.


Joshua M.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

BLOGONOVELA "O GUARDADOR DE VARAS" - Episódio IV


O GUARDADOR DE VARAS (IV)

Como já antes andavam deveras apreensivos com a sanidade mental dos animais, a que alguns habitantes de aldeias mais próximas atribuíam práticas homossexuais e de bruxaria, desta feita os populares ficaram extremamente preocupados. Tó era, sem dúvida, um bom negócio para eles, mas o tratamento dos porcos estava cada vez menos convencional. Assim, aproveitaram as futuras visitas para se reaproximarem do moçoilo e tentar convencê-lo de que aquilo não era normal, que ele não era um porco e sim um ser humano (fosse lá o que isso fosse), e etc. e tal, blá blá blá blá blá.
Depois de tanto baterem no ceguinho — um tal de Orwell que nunca estava de acordo com nada do que se dizia —, lá acabaram por fazer com que Tó fosse consultar um médico. Aliás, para pagar a dita ao senhor doutor, toda a aldeia se juntou para fazer uma porquinha.
Numa tarde chuvosa de Fevereiro, chegou à povoação vizinha do Forno e, embora contrafeito e renitente, lá acabou por fazer soar a estridente campainha do doutor Costa Leta, reputado veterinário da região. O médico deu voltas e voltas, consultou compêndios, manuais e simpósios, mas no final lamentou muito, pois na verdade nada havia que estivesse ao seu alcance fazer por Tó. Por isso, pendurou o estetoscópio, lavou daí as mãos e, por mera cortesia comiserada, convidou o doente para jantar em sua casa, para a qual se retirou de imediato, profissionalmente frustrado. Afinal, em 40 anos de medicina nunca antes falhara em ajudar um paciente. “A vida é uma porca”, ruminava de si para si.


Bill enGates

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


Uma casa na árvore

A minha casa da árvore não é esta. É parecida na altura, no porte da árvore e no décor estrelado. Mas tem janelas largas com flores penduradas no regaço, é de madeira lisa e uniforme. A minha casa na árvore é de há muito tempo atrás. Não é muito grande, apenas suficiente para uma criança dar o passo que precisa para crescer. E depois descer. Sim, cá para baixo. Fazer aquela janela dar para um terraço, com vistas largas. Nem precisa ser muito grande, apenas suficiente para dar um abraço. Quando eu fizer a minha casa da árvore no chão serei crescida.


Ana Santiago

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Palavras Versadas


NARCISO

Atiram pedras aos outros
por verem espelhos em tudo
para não ser como eles
fecho os olhos e fico mudo

Mas ainda assim e sempre
é sempre comigo que eu ando
amando-me continuamente
em tudo o que vou amando

Narciso afinal não foi
o que não seja algum
e a eternidade o que é
senão a vida de cada um?

É impossível que o mundo
por mais que nos minta a voz
não seja antes de tudo
absolutamente nós

Cada um é como o outro
ofuscante torre de marfim
de si para si murmurando
não consigo viver sem mim


João Belo

domingo, 19 de setembro de 2010

Provocatio


Escudos super-protectores

Sabes, Sílvia...!

O mundo está a mudar; e está a mudar muito rápido.
A esta hora, naves espaciais estacionam no céu ao largo do Cairo, à espera do timing certo para descer.
Cientistas procuram modelos matemáticos para poderem prever o próximo terramoto, a próxima tempestade, a próxima tragédia inventada.
Espíritas, religiosos, gentes da nova era, trepam como gatos caídos num tanque, à procura de salvação.

Eles não sabem...
Mas nada disto seria necessário se me desses um beijo.
 
 
DuArte

sábado, 18 de setembro de 2010

Crónica Benzodiazepina


O Castelo

A vida pode ser mais rica do que a ficção. Pode ser tão, tão rica que quem a vive em pleno e deseja representá-la na escrita, na pintura, ou até mesmo sintetizá-la em meras palavras, poderá sentir-se como um gato que acumula no estômago uma enorme bola de pêlo que não consegue expelir. Pelo menos, não sem ajuda de um veterinário.
Às vezes gostava de escrever a sério, sobre a vida, coisa séria. Ficcionando a partir de experiências pessoais e do conhecimento das experiências de terceiros, entrelaçando histórias como quem urde fios até constituir um tecido próprio. Mas a sensação é que há demasiada história para contar. Por vezes, a vida está para o conto como o concentrado de tomate está para um cozido.
Os tempos que se avizinham anunciam que este “enriquecimento” não atingiu o apogeu.
As mudanças radicais de vida prometem ser um recurso forçado para muita gente.
São sempre difíceis as mudanças radicais. São fruto de um confronto entre uma escolha e a negação da mesma, ou o fim de um caminho que se revelou inadequado. É um confronto não só para com as limitações que o próprio mundo coloca mas também, e principalmente, para com as nossas próprias. Se não houver um mínimo de auto-estima, um mínimo de coragem, essas circunstâncias tornam-se arrasadoras.
É uma arte olhar para a vida e, em vez de ficarmos a “lamber feridas”, ou a arrastarmos situações que não são promissoras, há que enfrentá-la como a possibilidade de se reinventar uma nova forma de estar.
Todos temos uma história de vida. Um percurso feito de escolhas, pensamentos, ilações…. Às vezes, estamos cansados. Outras vezes, gostaríamos de apenas parar um pouco, viver das ilações apreendidas pelas experiências do passado, atingir a “base” de onde se pode começar a construir solidamente. Mas a vida nem sempre se organiza dessa maneira. Se calhar, quando construimos um castelo, temos que escavar mais fundo, pois os alicerces necessários são grandes - têm que suportar um enorme empreendimento espiritual.


Lucinda Gray

sexta-feira, 17 de setembro de 2010


A nossa pequena galáxia

Acho que deus existe na cabeça de todos nós, tal como as ideias existem na cabeça de todos nós. O meu vizinho acredita em deus e no entanto é meu vizinho sem qualquer transcendência. É um homem real sem qualquer metafísica. “Como é que duas realidades tão diferentes se podem conciliar?” - perguntará o caro leitor. Não sei. O que sei é que é bem possível que um deus esteja por aqui como está em todo o lado, porque não está em lado nenhum. O dualismo é importante, muito importante. Deus não preenche lugar algum. O tempo da paixão é o tempo de acreditar, é a inocência com que acreditamos. Tenho a certeza de que vou andar de um lado para o outro à procura de viver, cadáver em bolandas. Um dia, para lá de hoje, não me confesso mais às folhas brancas e fico a falar comigo lá num sítio qualquer a que chamam céu para não lhe chamar o lado de lá da travessia. A inexistência divina agradece a sua existência à imbecilidade e ao génio humanos. Uns são os crédulos crentes desacreditados e os outros os próprios criadores da ideia em que não acreditam. Já vos tinha dito que acho que todos os seres humanos são extra-terrestres vindos de um dos dezasseis milhões de planetas, com condições iguais às da terra, que existem na nossa galáxia?


Joshua M.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

BLOGONOVELA "O GUARDADOR DE VARAS" - Episódio III


O GUARDADOR DE VARAS(III)

Duas ou três vezes por semana, por alturas do final da tarde, os aldeões iam lá levar-lhe víveres diversos e ração para os porcos. Nessas alturas costumava esconder-se, à espreita, até que os homens terminassem de descarregar a mercadoria. Depois, nessas noites de despensa cheia acontecia invariavelmente lugar uma verdadeira orgia, cujo desfecho era não raramente ensombrado por tremendas lutas na lama. Grunhidos e roncos para todos os gostos. Os porcos! A verdade é que todos eram extremamente brincalhões, contudo também muito irascíveis e com os nervos à flor da pele — qualquer faiscazita e trepava-lhes logo a mostarda ao nariz.
Tó era feliz e não sabia o que mais pedir da vida; a não ser uma pocilga com quartos separados, para poder fazer outras porcarias sem ninguém ver. Para ele, aquele era o paraíso na terra, qual toucinho-do-céu, que nem nos seus sonhos mais pele de porco (cor-de-rosa, no caso) alguma vez esperara encontrar.
Mas um dia tudo isto teve um fim. Numa das costumeiras entregas semanais, os aldeões ouviram um ronco deveras diferente dos demais e, resolvendo investigar a proveniência do mesmo, descobriram a careca ao Tó (estava na mudança do pêlo), que foi apanhado com a boca no presunto.


Bill enGates

quarta-feira, 15 de setembro de 2010


A Chegada de Sofia

Sofia chegou nesse dia desfeita de braços e de alma com o peso das malas e com o desgosto que a abatera nos últimos meses. Largou tudo no meio da sua sala que não via fazia muito e cheirou o bafio cinzento abandonado que dominava a casa toda. Acabara de chegar de Atenas, cidade onde leccionara durante os dois últimos anos. Trazia, porém, consigo ainda o olhar castanho de candura inexplicável combinada com um sorriso que surgia muitas vezes de forma imprevisível e deixava qualquer pessoa sortudamente desarmada.
Rapidamente deu uma volta esvoaçante por toda a casa para verificar se estava tudo como tinha deixado antes de partir. Bastava agora abrir as persianas e as janelas e trazer a casa de novo à vida. A luz do sol entrou sem pedir licença, coada pelo pó que pairava, e depressa Sofia se apercebeu que tinha muito que limpar e arrumar. Não demorou a levantar todos os lençóis e trapos enormes que protegiam os móveis e pechisbeques. A lassidão da casa deu lugar a uma lascívia irrequieta e inquieta que havia de querer revigorar a alma de Sofia para uma nova vida.
Mal viu o seu largo sofá cor de avelã, atirou sem misericórdia o seu corpo castigado e estendeu-o lá, esquecido por umas horas.
Na manhã seguinte, apareceu de surpresa à mãe. Assomou à porta da loja com os seus cabelos sempre soltos e rebeldes, mais escuros pelo tempo, e a mãe desatou num pranto como se ela tivesse acabado de regressar de uma longa expedição à savana africana ou de uma participação na guerra do Iraque. A loja era uma pequena retrosaria na Rua das Flores que Sofia vira mingar à medida que ela crescia. Desde pequena passava os seus momentos lá, os seus esconderijos ainda estavam no mesmo sítio para quando fossem precisos. A mãe enviuvara há muitos anos. Era uma mulher extremamente emotiva que não podia deixar de ver na filha o último reduto de esperança no prolongamento da espécie. Transmitira-lhe o ritmo da gargalhada e as cores dos sonhos, sempre fantasiosos e fugazes. A filha teria que ser o que ela não conseguira ser em nova, o que constituía, muitas vezes, para Sofia um problema.


Berenice Greco

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Palavras Versadas


A UNIDADE

Dizem que inventaram o dinheiro
para unidade de troca
Mas para quê se não pode haver
troca nenhuma?
A única troca possível
determinaram que não é possível
Porque trocar uma nota
por dois bilhetes de cinema
não é trocar a solidão
pelo homem de duas cabeças
Nem trocar uma moeda
por uma caixa de fósforos
é trocar um cigarro fumado no casino
por esses cigarros que não se acendem
e por esse jogo que nunca se ganha nem perde


João Belo

domingo, 12 de setembro de 2010

Provocatio


PIRUETA

Não é novidade para ninguém
e ninguém o saberá
Ganha coragem se a não
tens
Pega no batom e no lápis
e avança
Pega num martelo ou mesmo
num prego afiado
Empunha inclusive a perna de uma
mesa ou despedaça em tábuas
uma cadeira favorita
E dá à tua consciência submersa
uma oportunidade sagrada


João Belo

sábado, 11 de setembro de 2010

Crónica Benzodiazepina


A Amiga Que Tenho

Tenho uma amiga.
Todos têm, mas tenho eu mais do que uma amiga, porque dela é que saem os sorrisos, a malícia, a conspiração.
Para quê escrever versos? Coisa chata, fogo... Escrevo logo prosa raivosa, amorosa chata e instável como eu.
Pensei um dia que nunca teria amigas bonitas, pensei que sempre teria que contentar-me com a ugliness e tratar disso como o velho ditado: what matters is what is in the inside.
Mentira, uma vez na vida queremos estar com pessoas bonitas, que brilham no nosso dia, que suspendem a respiração de outrem.
Hoje estou feliz, tenho uma amiga assim e o mais bonito de tudo é que ninguém a cobiça, ninguém quer tirá-la de mim, melhor ainda, têm uma inveja saudável, têm um querer pertencer a nós.
Não aceitamos, não porque somos egoístas, mas porque não têm o mesmo pensamento, não têm poderes especiais, mas, pior ainda, têm o olhar maldoso de criaturas etéreas prestes a enlouquecer as flores.
Estão a ver chá com biscoitos? Quem é o chá e que é o biscoito? Não sei, mas, sim, sei que a combinação é super-ego e o respirar de cada dentada é reconfortante.
Aceito compartilhá-la, mas pouco, senão sugam sua energia e ai terei que invocar meus poderes para recuperá-la, mas claro a maneira dela, com aquele “sinto muito” irritante e aquele “não posso fazer nada” frustrante, limitando qualquer tentativa de pressão de pertencer a este mundo ou querendo penetrá-lo.
Por isso, tentem roubar-me a amiga, tentem, porque: even if there was one truth, you still could make a thousand paintings of it.


Anja Rakas (Moçambique)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010


A Caçadora

A mulher pegou na espingarda com maus instintos. Carregou-a com os últimos dois cartuchos que tinha na cartucheira. Olhou primeiro para a marido, depois para os filhos, um por um, todos de seguida, depois virou os olhos ao alto, apontou a arma e disparou. O silêncio. Caíu o primeiro pássaro, o que seguia à frente do bando, caíu aos pés do filho mais novo. Este chorou, pegou no pássaro com as duas mãos em concha, e fugiu a esconder-se no seu quarto. O pai chorou também, partiu a espingarda, abraçou os filhos e recolheram todos a casa. Nessa noite, cozinharam um arroz com o pássaro, a comida não era muita...


Joshua M.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

BLOGONOVELA "O GUARDADOR DE VARAS" - Episódio II


O GUARDADOR DE VARAS(II)

O tempo, como sucede sempre que uma estória acontece, passou. Ali permanecia ele, portanto, sempre nas imediações do seu barraco no meio do monte, já lá iam alguns anitos. Era ele, Tó, que tratava dos porcos, pois outra coisa não fazia além disso. De sol a sol, óinc após óinc, dava-lhes de comer, de beber, limpava-lhes o focinho no fim das refeições, lavava-lhes os dentes, limava-lhes as unhas (manicure e pedicure), preparava-lhes banhos de lama, fazia-lhes limpezas à pele e escovava cada centímetro daqueles couros emporcalhados até se apresentarem luzidios e sem sujidade — o que comprovava com o teste do algodão.
Tratava os porcos melhor que a si próprio. Dedicava-se-lhes em absoluto. Falava com eles e, assim, acabou por emudecer progressivamente, subtraindo-se, gradualmente, a conversar com os aldeões; dava nome a cada um dos porcos mas esqueceu o próprio; passou a caminhar sobre os quatro membros e arrastava um outro; partilhava as rações e mamava nas tetas das porcas; chafurdava na lama e deixou de tomar banho; passava o tempo a discutir filosofia e a jogar à roleta russa com os suínos... uma verdadeira porcaria! Estava isolado do mundo humano, por isso elegera o seu próprio mundo, chiqueiro. Ou vice-versa.


Bill enGates

quarta-feira, 8 de setembro de 2010


Triângulo Escaleno

Cada momento entre Roberto e Francisca era um ciclone de emoções intensas perdidas num cruzamento de culpa e desejo. Eram ambos incapazes de resistir ao vendaval que os arrastava àquele motel de dois em dois meses. Sentiam um magnetismo, uma força de Coriolis a uni-los fatalmente na cama de todas as vezes, onde uma pujança temperada de sândalo deixava uma nuvem de voluptuosidade salpicada de suor e prazer. Amavam-se o mais carnalmente possível.

Maria chamou por Roberto do outro canto da sala para lhe apresentar a irmã. Quando aos olhos de Roberto se desenhara uma feição perfeita de mulher, ninguém naquela sala se apercebeu do que de facto se passara. Roberto sentiu-se uma ilha fustigada pelo mar irado, tal fora a violência do impacto e o âmago amordaçado, ao reconhecer naqueles traços a mulher com quem flirtava de dois em dois meses no “Motel Hiva-oa”. Deixou-se então, num coup de grâce, enlevar indolorosamente para um deserto de sentimentos confusos, opacos e com cheiro a sândalo.


Berenice Greco

Ontem vi

Ontem vi nitidamente o infinito. O céu nocturno, límpido, a três dimensões. Há muito que ele não se revelava assim. Sensação fantástica essa, a da nossa pequenez face à imensidão e beleza do desconhecido. Consegui partir de mim, partir do mundo, só e apenas observando o espaço imenso que nos envolve. Lembrei-me das nossas vidas mundanas, aflições e afectos, dores e preocupações, que nos afligem tanto que parece que nada mais existe senão esta passagem pelo mundo. Ah! Como é deliciosa, simples essa sensação de pequenez que nasce do contraste entre o escuro da noite e a luz das estrelas. Perfeita harmonia, perfeito equilíbrio dos corpos celestes. Quis dormir ao relento, à beira da lagoa. Longe da azáfama da cidade, longe da azáfama de pensar e de estar, longe dos humanos. Só. Tomando banho de corpos celestes.


Lucinda Gray

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Palavras Versadas


SAUDADE

se bem que o conjunto de vocábulos {quarto de hotel}
ou a referência a um qualquer
nome próprio e apelido conhecidos,
{como fernando pessoa, por exemplo}
ou ainda a algum lugar exótico, ficassem bem nes-
te poema, como é, sem negação possível, a tendência
actual, não o farei.

porque nos poemas, assim creio, o sujeito só deve representar
o que sente
e, precisamente e enquanto tal, neste poema
só tenho a dizer o que sinto: e o que sinto é que
esta saudade sem distância
é tão simplesmente
um enorme inalador de silêncio.


Sylvia Beirute

domingo, 5 de setembro de 2010

Provocatio


Tipo USB

tipo termos uma usb na cabeça
e trocar identidades
sim, vestir a pele...
mudar de sexo
experimentar ser cão

vou dedicar-me a este tema da falta de individualidade

A cena é:
'tás com uma dor e vais ao médico...

Será que sou castrado pelo meu cérebro?


K. Tan

sábado, 4 de setembro de 2010

Crónica Benzodiazepina




Desde muito cedo estar só foi um estado estruturante da minha existência. Foi só que me encantei por quase todas as cores, sabores e texturas que povoam os meus sonhos, as minhas conquistas, as minhas listas de afazeres e de metas. A solo construi um ideal de homem, de vida, de profissão, de lar. Sozinha desmontei todas as doutrinas que me impingiram. Sem dizer nada a ninguém inventei tanta coisa e tantas imagens no espelho que fiquei presa na minha rede de conexões internas, sem abertura a operadores externos, mesmo estando rodeada de gente a toda a hora. Sou tão eu cada vez mais que até me assusto. Perguntam-me se não tenho medo da solidão, de estar sozinha...? Mas haverá outra forma de estar? Não há nada pior que estar fora de mim. Acreditem. Quando estou na minha presença, têm-me mais do que nunca.


Ana Santiago

sexta-feira, 3 de setembro de 2010



Nós Por Desatar

Depois de termos tragado os dias amargos do passado, cruzámo-nos algures na vida – caminhos ínvios do destino – e remoçámos os sentidos. Hoje acordamos para o presente, com os olhos moídos, pensando ter vencido a vida, mas, no íntimo do nosso deserto íntimo, sentimo-nos derrotados e secos. Estamos maiores e vivemos pequenos, estamos pútridos de sentir e não sentimos, queremos amar com ânimo e apenas nos doem as penas do coração.
Quando nos encostámos ao sentir, os nossos corpos caídos em estado de letargia aguda, estremeceram ao despertar, ergueram-se tumultuosos e temíveis (qual mítico Adamastor) e mareámos por todos os prazeres assombrados por cabos tormentosos. Um dia sim, outro não, sempre talvez. Num dia vinho, amor e rosas; num outro, a ressaca, espinhos e ressentidas prosas. Dias de talvez-amar, dias de criar, dias de quase-dar, dias de Eros e Psiké mascarados, dias amargurados por uma felicidade impossivelmente nossa. Noites de velar por todos os sentidos.
Por vezes, as horas a dar o tempo de um dia passado, horas empatadas, horas e horas a adiar o futuro, sempre tão distante quanto o horizonte. E tu, minha triste companheira do caminho, a assobiares as horas perdidas da tua breve e tardia partida, deixando na memória apenas um adeus soprado por entre os gritos abafados, por entre a voz das nossas parcas e enormes diferenças.
Antagonizamos e morremos um pouco. Reconsideramos e renascemos, quando na manhã de um outro dia retorna a esperança do nosso tão recente encontro e de novo a doçura dos beijos perdidos e reencontrados, estamos sinceros e prementes. E penso: quem me dera poder protelar no tempo, este que é tão o nosso tempo, e revivê-lo até à eterna idade de me perder da razão. Mas, não posso ficar aqui ao pé de ti, não existimos nem existe em Nós. A minha vida é incessante e não posso ficar, sem ter a sensação de estar sempre a partir para onde nunca ficarei.
Quem me dera fugir contigo para nenhures e lá reencontrar-me comigo. Todavia, o único golpe de fuga que sinto é o da minha própria existência, que se escapa com o tempo para o lugar de onde fujo. Em ti, pressinto vagamente uma vida de outro viver e volta-me a vontade de consumir o resto de mim, o que já não tenho para dar: um minuto apenas, o que ainda não desperdicei, a teu lado…
E depois, lado-a-lado viveremos a sós, porque já não cremos, desatadamente - no prazer que temos para desatar - em Nós!


Joshua M.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

BLOGONOVELA "O GUARDADOR DE VARAS" - Episódio I


O GUARDADOR DE VARAS(I)

Chegou à aldeia escapulido da mãe, ninfomaníaca sado-masoquista rural, de quem saíra havia então mais ou menos 17 anos. Tanto as suas características fisionómicas como os seus hábitos, sobretudo o modo de satisfazer as necessidades básicas, viriam a determinar o papel que lhe caberia naquela minúscula comunidade sem dor nem pecado.
Mal tinha pousado a sua modesta mala, Tó foi abordado por um grupo de aldeãos avesso à ideia de o ter por vizinho, sendo ele um rapaz tão mal formado, pior apessoado e pouco higiénico. Confrontados com os seus indefectíveis intentos de permanência, e após um breve período de reflexão em plenário, decidiram oferecer-lhe emprego como guardador-mor de todos os porcos da aldeia. E se depressa o pensaram melhor o fizeram, pondo em prática um sonho antigo dos suinicultores locais que apenas aguardava um executante.
No dia seguinte, pela manhã, Tó foi, a bem dizer, escoltado até um barraco abandonado, a uns bons quilómetros de distância da povoação, onde as beatas da aldeia trataram de lhe providenciar um mínimo de acomodação e condições de habitabilidade, sem deixarem de ter em conta a peculiaridade do hóspede. Depois, os homens construíram a pocilga comunitária onde, no final da tarde, as camionetas despejaram dezenas e dezenas de quadrúpedes suínos anafados, suculentos, roncantes.


Bill enGates

quarta-feira, 1 de setembro de 2010


já vou

e como se o vácuo fosse imenso, como se infinito o tempo fosse à nossa frente, e não parasse, deitas-te só mais um pouco, porque está frio, porque tens sono, porque te dói o corpo e não dormiste nada, porque não te queres levantar, porque te dói a alma, nada te espera lá fora, nada te espera cá dentro. e como se criança fosses, agitas os braços e franzes o sobrolho quando te abano levemente e te digo para te ires vestir, porque tens de ir trabalhar, porque tens de reagir, porque assim nunca te curas, porque assim nunca queres ficar bem (porque assim ainda tenho de fingir que me quero levantar, porque assim ainda tenho de acordar para o frio que lá fora me gela mais que aqui onde sozinha fico em mim sem me ver). e como se não me ouvisses, porque me ouves alto demais, viras-te para o outro lado e tentas dormir, para ver se a dor passa: a da cabeça, e a da ausência que há em ti. fazes-te falta, porque te foges. e és ainda a criança que chora no escuro, ao fundo da escada, com os gritos que vêm lá da sala ecoando à tua volta como um grito de guerra, nessa guerra que, invadindo-te, os gritos lançaram em ti: porque nunca mais foram embora, nunca mais abriram espaço para que te visses ou para que visses que talvez exista hoje algo melhor. e matas o que é fraco nos jogos que te sufocam a raiva, porque os choras. e chorando-os mata-los sempre. afinal, não é essa a lei da selecção natural? fracos e fortes, fortes sobre fracos, fortes contra fracos, fracos em fortes...afinal, não foi isso que aprendeste? não é isso que choras, agora que criança ainda tens medo do escuro? agora que como criança te escondes entre as mantas para não ter de viver?
e como se tudo estivesse bem, acabas mesmo por dormir, entre os gritos cansados que te explodem na mente, entre os tumultos que lentamente se afastam com a consciência, e vem a calma, vem a calma, a calma... até o dia há-de novamente surgir. para te comer. porque o dia volta sempre, tal como não queres, e nunca vai parar. mas, como se isso não te importasse, dormes... só mais um bocadinho.


Virginia Machado