sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
À musa que tanto me dá
As musas nunca morrem porque nunca nascem, por isso são eternas – nunca existiram, ou melhor, não existiram, nem existem, no plano de existência autónoma em que as imaginamos. As musas vivem dentro de nós, mesmo que não queiramos, mesmo que não as queiramos. Vivem escondidas no íntimo das pessoas, e nalguns casos nunca se revelam ao hospedeiro. Podemos ilusoriamente ver o reflexo delas nesta ou naquela pessoa, porém, mesmo que as pintemos desta ou daquela cor ou daqueloutra que julgamos serem as musas, não passam ipso facto a ser musas. Se são moinhos, são apenas moinhos, não são inimigos encrespados contra quem invistamos de lança e armadura; da mesma forma, as pessoas são apenas objectos do nosso afecto, não são verdadeiras entidades inspiradoras, ainda que em certos casos se cubram com a nudez das musas. As musas são uma espécie de extensão do que somos, o ideal que queríamos ser em abstracto, mas nem sempre nos agradaria ser na realidade.
Quando nos sentimos menos queridos temos o costume de dizer que perdemos a nossa musa, porque o sentimento de perda nos traz uma tristeza inactiva, não nos traz sangue à cabeça, não nos faz ferver as ideias. Ao contrário disso, as pessoas que investimos de musas ( ou musas reflexas) até nos podem fazer viver, fazer-nos corar, desmaiar, privar-nos do sangue, ou fazê-lo afluir a todas as cavernas do nosso corpo, numa eterna concorrência com as musas reais que albergamos. Mas nunca serão as nossas legítimas musas. Pois, também não é qualidade das musas, perderem-se para além de nós. As musas vivem em nós, perdem-se connosco, nós perdemo-nos com elas, vivemos geminados entre elas, e elas entre nós, habitamos solidários os picos da imaginação e descemos juntos ao abismo do sono. Adormecemos tão conchegados um ao outro. Até nas quedas impostas pela gravidade no auge de uma bebedeira as musas perdem o equilibrio e se estatelam connosco. Ficam de ressaca no dia seguinte. Porém, somos só nós que vemos as estrelas na manhã seguinte; enquanto elas descansam para depois nos agitar as ideias ao despertar. As musas alucinam, como Alice; nós também, quando comemos cogumelos mágicos, minguamos e aumentamos como as musas. Não somos nós que vemos as luzes no céu como diamantes; são as nossas musas que vêem os cristais iluminar-se quando se põem a olhar por nós, de dentro nós, como se fossemos nós a olhar pelo olhar delas.
Há uma musa que vive em mim há muitos anos, tantos que ainda sei contar como foi. Sei que se instalou em formato de livro na minha cabeça, que me dizia tudo o que eu queria saber na linguagem universal das crianças e das musas. Lembro-me de a ter visto de relance pela primeira vez, ao espelho, quando tinha quatro anos, num jogo de ilusões ela escondia-se detrás das minhas caretas para reaparecer alguns segundos depois no esgar de um sorriso traquina. Nessa altura caçoava de mim: acicatava-me a responder com falácias aos adultos, dizia-me que desmascarasse os cínicos, que denunciasse os hipócritas, que me desavergonhasse e fosse à praça clamar ao povo que o rei ia em pelota, e que o ouro nem na alma se lho via. Desde então está comigo, em mim. Por isso, quando quero falar com a minha musa, desço ao sótão da minha infância e lá está ela, sempre a brincar com as personagens das histórias. A minha musa é uma musa presunçosa e impertinente, uma musa letrada que atravessou tormentas de palavras, cruzou mares de caracteres ortográficos para chegar a um destino já antes escrito. Vive para cumprir o fado de um dia vir a morrer por morrer de parto ao entrar no prelo.
Joshua Magellan
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