sexta-feira, 6 de abril de 2012


Afectuosamente ateu

Descobri há pouco que é mais penosa a perda de um amigo que o desatar de um laço amoroso. Na amizade, há uma sinceridade crua. No amor, há ilusão. E enquanto estamos iludidos amamos a imagem que temos da pessoa e não a pessoa em si, tal qual ela é. Tendemos a idealizar o objecto do nosso amor com os seus defeitos apagados e as suas qualidades aumentadas, a brilhar no embuste que armamos aos nossos olhos cegos. Até que a desilusão cai sobre nós docemente com uma palavra de conforto, como quem nos diz do topo do pessimismo: “vês, eu não te dizia que não valia a pena...!?”
Na amizade há uma expectativa desinteressada, um dar de receber sem nada querer em troca do que somos. Um afecto que é, como deve ser, dado por dar, só porque nos dispomos a dar, porque temos para dar, sem nos perguntarmos a nós mesmos se o que estamos a dar é consequência do que nos dão. Não existe um merecimento, nem uma sinalagmática, ou qualquer tipo de reciprocidade. Apenas o mal e o bem em vasos comunicantes, subindo e descendo, dando conta de que existe um circuito fechado em que tudo o que é vertido de um lado se repercute no outro.
Tenho algum pejo, digo, medo, ou talvez deva dizer, receio, em descrever afectos, escrever sobre eles, porque nunca me dei conta deles no momento em que realmente os vivia. Por não os saber, não os posso escrever ou descrever sem me mentir a mim mesmo, tal como o faço quando julgo sentir esses mesmos afectos, quando julgo dar-me conta de que eles estão – vivem – em mim. Essa é a certeza mais segura de que nada posso saber do que vivo, porque vivo fechado dentro de mim, à roda de mim.
Não creio no tanto que cri. Tornei-me ateu emocional depois de ter crido com fervor há muitas desilusões atrás. Desde o passado há tanto tempo que o tempo me atenuou a cor das feridas e me alisou a memória patente das cicatrizes. Fui descrendo a cada golpe, a cada desamor, a cada facada direita ao fundo do ânimo. Houve um tempo em que morri, para renascer depois no contar do tempo que me faltava viver.
Se conseguir não morrer antes de me cumprir etérea alma no vácuo de um sonho mais além, viverei somente por viver sem me dar conta do que sinto. A dimensão onírica dos nossos passos é a razão que dá razão aos afectos: sonhamo-los e, no entanto, não os vivemos fora desse sonho que não é mais do que a realidade de que não nos damos conta. Nunca somos os nossos passos, mas tão só a medida deles para lá do sonho.


Joshua Magellan

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