quinta-feira, 26 de abril de 2012


SÓ O MAR VOLTA SEMPRE

Só o mar volta sempre, sempre, na manhã seguinte. O resto é uma incógnita. Aquilo que pensamos que somos hoje, amanhã pode parecer uma tolice. Ou até uma miragem. E assim, de que vale a preocupação permanente? As frustrações são uma necessidade. Fazem parte do processo e não podem derrubar-nos.
Encontrei-me pela primeira vez no aeroporto de Milão, Malpensa. Deixei Lisboa com destino ao Cairo com uma sensação de calma, embora sabendo que havia assuntos importantes por resolver. Percebi que, mais uma vez, o prazer de viajar se sobrepunha a todos os outros... ou quase... Talvez eu nunca me fizesse compreender na totalidade mas, ao mesmo tempo em que pensava na hipótese de ter um filho, pensava também que ele me prenderia para sempre à terra, logo eu que não imagino viver sem voar.
Portanto, havia que fazer escolhas e estabelecer prioridades. Não serei nunca plenamente feliz, sabia-o agora. Porém, haveria alguém que conseguisse alcançar plenamente esta estádio absoluto e permanente de bem-estar? Por isso, chegara a altura de viver o presente e não aspirar a coisas impossíveis. Uma gestão dos altos e baixos das minhas emoções já seria excelente. Finalmente, começara a aceitar a inevitabilidade do quotidiano, a rotina nem sempre quebrável de uma vida a dois, a sensação de vazio que por vezes surgia. E comecei a aceitar que, no amor como na bolsa, quanto mais se investe mais se perde.
Acordei cedo e subitamente. Não me apercebi de imediato onde estava mas aos poucos, o som dos minaretes recordou-me: estava no Cairo. Esse Cairo distante, de fascínios vários, que me atraía desde que me lembrava... As minhas companheiras de viagem dormiam ainda profundamente. Deixei-as no quarto número 34 do Windsor Hotel, o mesmo que no início do século serviu de guarida ao Clube de Oficiais Britânicos no Cairo. O Hotel mantém todo o seu traço característico de então, com o seu ar decadente, visível em todos os pormenores... Mas a magia continua lá, por entre mobiliário, tapetes e empregados de ar suspeito, todos com muitas, muitas histórias para contar.
Desci para o pequeno almoço. O primeiro naquela cidade. Uma sala habitada por dois empregados solícitos, alguns casais alemães de meia idade, alguns casais e um ou outro viajante solitário. O primeiro dia no Cairo foi para sentir a cidade, deambular pelas ruas, sentir a vibração da cidade. Explorar alguns locais como o Museu Egípcio, a Cidadela, a mesquita Assan e o internacionalmente famoso Khan Al-khalili.
A cidade parecia adormecida perante um sol escaldante e só após este se esconder por detrás dos minaretes, a cidade renasce e surgem multidões de todos os lados. Os carros repicam as buzinas e o dia começa no Cairo, ao final do dia... Tudo se vende e se compra. Tudo está em constante movimento. Mesmo o principal cemitério da cidade ganha vida com os muitos homens que o escolheram como habitação.
As Pirâmides, uma das sete maravilhas do mundo, remetem para tempos idos, reflectindo a imponência de um povo e de uma cultura. Sakkara e Gizé apontam o caminho do passado ao mesmo tempo que nos fazem sentir seres ínfimos no meio da imensidão das areias do deserto.
Do Cairo, segui para Alexandria, cidade virada ao mar, ao longo de vinte quilómetros de costa. Ali, o mundo quase parecia parar apesar das multidões em constante movimento. A magia da cidade sobrepõe-se a tudo o mais. A Biblioteca Alexandrina transporta-me para longe dali. As ruas, os cafés, com as suas esplanadas abertas ao mediterrâneo fazem lembrar a Europa e parecem encerrar histórias de aventuras, de mistérios, de paixões... Mas os cachimbos de água fumados ao sabor do mar fazem-me recordar que estou em África, a meio caminho para a Ásia.
Amanhã sigo para o Oásis de Siwa e depois para Daheb, na Costa do Sinai. Mas voltarei ao Cairo. Sempre. Tal como o mar. Que volta sempre na manhã seguinte.


Carmo Miranda Machado

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