sexta-feira, 20 de maio de 2011


Como palavras atiradas contra o silêncio

Há sempre palavras que soam malditas ao ganhar sentido, no contexto em que se inserem: “afecto” é uma dessas palavras. Pois, tal como a realidade nem sempre desmente existências, também os fantasmas se esforçam por continuar a não existir. Mas, nos cantos da boca, fica sempre o gosto da incerteza, um lapso entre a realidade e as nossas fantasias, uma busca que se anuncia eterna e pouco compensadora. Somos nós, enquanto meros vultos convertidos à vida terrena, que repousamos num fauteil com jeitos burgueses e compramos a educação e o respeito com empregos precários. E no fim de compras, apenas e a final, ganhamos o merecido descanso perpétuo, um enorme saldo nas contas à vida que não vivemos, um vento que sopra do norte o frio de uma vida-vazia - onde sempre paira a presença da figura viva da morte.
Para satisfazer a realidade, digo: devemos construir o mundo com palavras novas para todas as sensações novas, reinventar a língua a cada beijo, a cada dentada, a cada união dos corpos nossos colados de desejo. E depois, inventar novas formas de sentir, reinventar o prazer como uma língua nova que aprendemos, cingindo a gramática ao nosso sentir. E assim, viajar pelo corpo até chegar ao fundo, correr como sangue por todos os nossos nervos, até culminar no centro da mente, onde os nossos corpos nus vivem fiéis ao objectivo para que nasceram. E, nesse ponto, reiterar as nossas bodas sempre repetidas, a nossa lua impregnada de mel que nos queima os lábios e os sara no mesmo beijo. Devemos construir a realidade tão real quanto possível, vivê-la de forma a que nos faça viver, de forma a que os nossos fantasmas vivam à dimensão da matéria, como figuras humanas desatadas no cúmulo da lucidez. Provar o saber e o sabor do prazer, engolir a existência até aonde nos levar o crer, até ao limite do impossível, onde cada gota será bálsamo e aroma, odor que se cola aos panos e não se descola do corpo, mora na pele que nunca despimos como um suave ferrete.
Para sermos dignos das nossas próprias fantasias, digo: devemos despir os panos que envergamos andrajo, desbesuntar o espirito de todas as nódoas sociais e vestir o capote negro de cetim com que se cobrem os fantasmas. Só assim viveremos, só assim veremos, na humidade diurna, para espanto nos nossos olhos abertos, etéreas imagens de monstros que se desenham no nosso espírito e que nunca ousámos ver: uma mulher casta empalada na lança de um centurião efeminado, canta louvores à sodomia em latim; um monge pederasta, em busca do paraíso, desfere golpes com o punho cerrado na porta de um nenúfar, sabendo que essa porta não o leva ao céu. A mulher casta vive e dorme, sob a capa das suas peles e das suas fantasias e, no auge do sonho, pede a um centurião que não pare o suplício, que se mantenha firme, que chame a força militar inteira, que venha mais uma lança e outra e outra, que uma força bruta lhe invada as entranhas e sejam acesos toríbolos de círios em honra do seu sacrificio, em cujo fogo se ateará o prazer mais sublime. Ao velar o altar das ninfas, o monge masturba-se e vomita uma oração sem nexo nem vergonha, sempre de olhos postos num deus que lhe aplaca os medos e as sombras – consulta o oráculo e o futuro nada lhe diz acerca do que está para lá do presente ponto final.


Joshua M.

Sem comentários: