A lâmina pontiaguda do amor
Vejo-te bela, estátua da loucura!
Erguendo no ar a mão nervosa e fina,
Tinta de sangue, que um punhal segura.
Olavo Bilac
Rasgou o corpo como uma folha de papel em branco. As páginas haviam sido apagadas pela dor da existência. Dizem que o amor tem muitas formas, mas foi a primeira vez que testemunhei tal maneira de arrancar o sentimento do peito, ainda que se saiba que ele ocupa todas as partes do corpo, cada detalhe. O amor não é morte, mas pode ser parente próximo desta. Ao passo que a morte distancia possibilidades, conteúdos infindos, adormece a memória, inquieta o coração e mostra a impotência da vida. O amor possui os mesmos sintomas, o que diferencia é sua capacidade de potencializar a vida, ou seja, ambos ativam o medo, consequentemente, revivificam o distanciamento.
Violeta encontrou a resposta que lhe era mais íntima, ao mesmo tempo, mais indecifrável. Comprou um punhal de prata ornamentado, com uma rubi a enfeitar-lhe o cabo. Vestida de branco para que as cores tomassem mais forma, talharia partes do corpo e sentiria cada gota derramada como partes de si mesma apunhaladas pelos desencontros amorosos. Entretanto, ainda antes, destruiria todas as cartas de amor que tivera escrito ou recebido, todas as fotos guardadas no baú ao qual denominara “amores que se foram ou poderiam ter sido”, cada objeto de afeto, cada flor despetalada e seca, algumas mofadas ainda que sempre quistas. Com o punhal, rasgou tudo, quebrou o baú, dilacerou flores, folhas, despedaçou anéis e colares, esmigalhou restos de perfumes, descrente dos provérbios populares.
Permaneceu o último objeto, a última lembrança, para Violeta, o último soluço, não mais amaria. Viver é um infortúnio quando o amor habita espaços recônditos, pensou no corpo como o único resquício a ser mortificado. O corpo objeto de amor, ele mesmo todo amor; e fez o trabalho de autópsia para que jamais permitisse que um novo amante o fizesse. Iniciou pelas mãos, as mesmas que sempre deram carinhos e aconchegos, toques suaves, leves, pétalas caídas sobre mãos alheias a sentir o outro; passou o punhal pela carne viva, quente, pulsante, pela raiz em que ficaram todos os seus amores até que dela brotasse sangue. O punhal percorria pelos braços, tão fortes em abraços convulsos de paixão, talhava-os como quem parte galhos firmes, fortes, que sustentam uma planta nas ocasiões mais inesperadas ou desesperantes. Chegou até o pescoço, o qual deixaria por último, e escorreu o punhal agora rubro sobre o peito, passou pela barriga até encontrar as pernas, outro ato de entrega, de abraço quente e estremecido, de sussurros e gemidos. Tocou a boca com a mão ensanguentada como se estivesse a se deliciar em beijos, machucada e frágil, intensa e verdadeira. Encostou o punhal no peito com força e sua última frase foi: "- Eu te amo, amor!"
Na manchete do jornal havia os seguintes dizeres: “O preço do amor. Mulher se dilacera com um punhal de rubi e prata”. Violeta era apenas uma flor machucada, como tantas que enfeitam as sacadas de muitas casas, com suas cores variadas.
Manuela Barreto (Salvador, Brasil)
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