quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (II)


Praia

No carro começa a impacientar-se. As filas. O tipo esperto que anda aos saltos de faixa em faixa. O homem que quer avançar pela berma e entrar mais à frente empurrando um espaço invisível de intimidação. Ir à praia ao domingo começa por ser um tormento matinal feito de esperas encaixotadas na auto-estrada. E depois, os miúdos sempre agitados no banco de trás, nem os cintos lhes seguram as mãos, os beliscões e as ansiedades de se atormentarem mutuamente num desgaste de vitórias visualizadas nas lágrimas de cada um. Nem o "parem quietos!", gritado num desconsolo já derrotado, os ameniza. A mulher apercebe-se do seu enervamento. Sabe que ele vem contrariado. Os olhos escurecem atrás dos óculos, escurecem os dedos pendurados no volante, escurece a voz que se cala no rolar do alcatrão. Encontrar um lugar para estacionar é um desatino. Levam tempos infinitos esburacando o espaço, alongando o olhar, procurando pedaço de terra onde enfiar o automóvel sem que ele possa sofrer grandes agruras. "Ali” – grita ela – e ele já a fazer marcha-atrás, a engatar a primeira e a verificar irritado que alguém, mais lesto, já se antecipara. Depois, carregar a tralha. O chapéu de sol, a geladeira, o colchão, as toalhas... Os gritos aos miúdos. Carregar também o enervamento de duas horas no trânsito, meia hora a procurar lugar para colocar o carro e outra hora, no mínimo, para digerir o facto de o filho mais velho ao abrir a porta ter batido com ela no poste de pedra. Caminha com o peso. E quando avista a praia, não a vê de imediato. Não há areal, pensa. Só cores e riscas de chapéus de sol. Só corpos e fatos de banho. Só gente. A mulher sente o escuro alongar-se nele. Tenta entusiasmar. Puxa-o para uma zona. Ele vai despido de vontade. Pisa a areia quente que lhe aparece suja. Longe do mar. Tão longe. Dali, nem as ondas se ouvem, nem as ondas se cheiram, nem as ondas azulam a vida. Só gente. Uma repulsa sobe-lhe aos olhos. Pensa na pele morta de tantas peles caídas por ali. Nos bronzeadores espalhados, cinzas de cigarros e esperas. Só gente. Ele quer praia. Uma sensação de claustrofobia altera-lhe a respiração. Sufoca-o. Pede desculpa à mulher, dá-lhe um beijo em fuga. Promete que os vem buscar, mas não pode ficar. Precisa de espaço.
 
 
Laura Silva (Portugal)

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