segunda-feira, 26 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (I)


À memória dos amantes

Perdi-me de amores por uma bela mulher. Os meus olhos tropeçaram nos dela e, nesses breves instantes, o meu mundo parou ali mesmo. Foi num baile de carnaval. Ela trajava um sumptuoso vestido negro e no rosto trazia uma máscara de gata. Só os olhos, os belos olhos verdes, os voluptuosos lábios carnudos, a ponta do nariz e parte inferior do maxilar, eram visíveis. Tive-a nos braços o tempo de um tango. Foi o tempo necessário para combinarmos um encontro para o dia seguinte. Levaríamos as máscaras que nos cobriam grande parte do rosto. Ela a de gata, eu a de zorro.
Na tarde seguinte, inventei uma desculpa e saí sem a minha mulher. Dirigi-me, nervoso, ao local combinado com a bela desconhecida, temendo que ela não aparecesse. Apareceu radiosa. E pareceu-me ainda mais bela. Sentámo-nos num sossegado banco de jardim, ambos usando as nossas máscaras. Isabela: nunca um nome me soou tão doce. Meia hora depois entrávamos no quarto de um pequeno hotel das redondezas, durante umas horas o mundo lá fora deixou de existir. Isabela não quis tirar a máscara, nem deixou que eu tirasse a minha. Eu ardia de curiosidade de ver o seu rosto desnudado mas ela foi intransigente. Combinámos novo encontro no mesmo local, para a mesma data, no mês seguinte. Eu queria antes mas, também aqui, Isabela foi inflexível. Era casada, como eu, e não queria que o marido desconfiasse. Passámos a encontrar-nos sempre nas tardes da primeira Terça-feira de cada mês. Durante algum tempo acalentei a esperança de que as máscaras caíssem. Em vão. Nos trinta anos seguintes as máscaras foram sendo substituídas, mas nunca caíram. Nunca soube o seu sobrenome, nem praticamente nada da sua vida. Durante vinte anos ansiava por cada encontro com aquela mulher, a quem amei como nenhuma outra. Sempre que um de nós não podia comparecer no dia marcado, deixava um envelope endereçado ao outro no pequeno hotel que foi nosso refúgio desde o primeiro dia. O Sr. Camilo, recepcionista, habituou-se à singularidade de nos ver aparecer de máscaras, nunca nos questionou. Um dia, muitos anos depois, encontrei-o por acaso e fomos beber uns copos. Nesse dia contei-lhe a nossa estória. Eu vivia para viver aquelas tardes com Isabela, ela vivia para viver aquelas tardes comigo. Eram a nossa fuga do mundo, a nossa entrega um ao outro. Um dia, o pior dia da minha vida, telefonei transtornado para a recepção a pedir ajuda porque Isabela tinha desmaiado subitamente. O Sr. Camilo subiu logo e verificou que ela não desmaiara apenas. Estava morta. Enlouqueci de dor. Através de informações minhas, o Sr. Camilo ligou para a melhor amiga de Isabela, que sabia do nosso romance secreto. Ainda cogitei retirar a máscara de Isabela: ver, finalmente, todo o seu rosto. Mas, depressa desisti da ideia, por considerar que seria um desrespeito a sua expressa vontade. O seu corpo foi retirado discretamente do hotel e levado para casa da amiga. Fiquei o resto da tarde sentado na cama, chorando a partida do meu amor. No mês seguinte voltei, no outro e no outro. E voltei por mais dez anos. Teria continuado outros tantos, não fosse terem-me prendido neste sítio. A culpa foi do Sr. Camilo.
 - Mas porque continuou a ir, mesmo depois da sua amante ter morrido?
 - Aí é que está. Ela não morreu. Eu sei que, na altura, me disseram que ela tinha morrido; eu, quase morri também, de desgosto. Mas voltei ao hotel no mês seguinte e, para meu espanto, ela apareceu. Pensei que estava a ter alucinações. Mas não, era real, era ela que estava ali. A felicidade voltou a possuir-me a alma. Continuámos a encontrar-nos com a mesma regularidade até ao mês passado.
Nesse último encontro, quando saía, detive-me um pouco à conversa com o Sr. Camilo, a quem já considerava quase um amigo, lembro-me de lhe ter dito que era incrível como ao fim de tanto tempo, eu e ele estávamos notoriamente mais velhos, enquanto Isabela se mantinha tão jovem. Até acrescentei que as mulheres eram conhecedoras de muitos ardis com o fim único de enganarem o tempo. Lembro-me do olhar surpreendido dele perante as minhas palavras e de me ter respondido que Isabela tinha morrido há mais de dez anos. Ri-me dele. Seria tonto o homem. Não a veria ele entrar no hotel, mês após mês, para ir ao meu encontro?


Missanga

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