sexta-feira, 15 de abril de 2011


A Doença do Lápis Azul

Era um homem qualquer, como outro homem qualquer, um único detalhe o desigualava: possuía uma colecção de mais de um milhar de lápis-de-cor – de cores impossíveis e inimagináveis –, quando lhe foi precocemente diagnosticada uma enfermidade, à mercê da qual ficaria gradualmente limitado a ver tudo azul. Um dia, conformado por ver o céu, arranjou emprego de funcionário e passou a usar somente um mero lápis azul com o qual, em vez de escrever ou desenhar, apenas lograva riscar os textos e imagens que um inquisidor, seu patrão, achava que o povo não deveria gostar. E se, em certos dias, o homem riscava praticamente tudo o que via com os maus olhos de outrem; noutros, quase se enfadava e se enchia de spleen, amolecia na tarefa e chegava mesmo a ler e a admirar certas obras.

Mas, um dia, o inquisidor, que o ajudara desde os riscos iniciais, caiu de uma cadeira carunchosa e finou-se. Triste dia para o pobre riscador que, sem empregador nem emprego, foi entediando e definhando até que enlouqueceu. Vagueou alheio, esconjurou artistas que sabia de cor, balbuciou pragas contra todas as escritas (literárias e musicais), contra todas as imagens (negras ou coloridas), até que, pouco tempo depois, foi encontrado inerte e seco: varavam-lhe a cabeça dois lápis azuis, de pontas unidas no centro do seu mínimo e deformado cérebro. Segundo peritos, as chagas haviam sido auto-infligidas, quando este quis riscar uma ideia contestatária em que andava centrado havia já algum tempo – dar várias tonalidades ao azul.

O herdeiro da colecção de lápis do funcionário, sem saber o que lhe fazer, doou-a ao herdeiro do inquisidor, que clericalmente a acareou. Porém, o afortunado donatário da colorida colecção logo se encantou pelo lápis azul, o qual só o usava em privado. Era homem de poucos riscos públicos, preferia a palavra atirada ao vento para reprovar os criadores desalinhados. Por isso, quando não gostava de determinada criação, mandava emissários persuadir o artista a ocultar a sua arte, oferecia-lhe lápis e folhas completamente cinzentos, para ele registar as suas futuras criações.


Joshua M.

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