quinta-feira, 8 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (V) - Palavras Versadas


vocação

se os pescadores escrevessem poemas
os poetas morriam à fome.

os poetas alimentam-se de tempestades e são
igualmente viciados no sal da morte prenunciada
a salgada vertigem que precede os pulsos
sanguineamente alongados pela rede pendida

também os poetas precisam de água pelos joelhos
na sua faina
precisam de deitar-se no fundo dos barcos
e baptizar os filhos com nomes de deus
acender-lhes fogaréus de orientação na bruma
e no desespero
nomes esperançados que afastem a tormenta
os nomes que se afastam quando atormenta,
também os poetas vêm tatuar esses nomes bem fundo
nos confins inexoráveis da água

no santuário divino dos peixes que caminham sobre a água
pensam eles poder levar consigo os filhos na morte
ou antes apaziguar diabólicos quereres que lhos morram
gravando a devoção
esculpindo a pureza
exaltando a estética de construção espinal dos deuses
fugindo ao xadrez das camisas: “as águas jogam e ganham”
peixe-mate!

os seus filhos brincam eternamente pela rua lavada
à espera de crescer
mas não — os poetas não envelhecem
nem os pesqueiros se esgotam:
os poetas lançam as suas redes
cuja malha deixa passar as palavras mais pequenas
esperando que se reproduzam e cresçam
para que o poema amadureça
enquanto no mundo se agrava a fome de metáforas

os pescadores têm alma de papel
a paixão impúdica das musas, e nos seus olhos
corre em marés inconstantes a tinta mágica
da translação planetária

e se um dia se lembrassem de escrever poemas
aos pescadores bastar-lhes-ia verter a pele
no silêncio da poesia
que todos os poetas morreriam à fome:
os pescadores escrevem-se tão melhor
e não haveria quem pescasse


Renato Filipe Cardoso

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