quinta-feira, 29 de março de 2012
SETE CONTOS DE VIDAS (IV)
Uma saúde débil numa alma em ferro
Eu já tinha ouvido falar de bruxas, já sabia que existiam demónios, já me tinha dado conta do poder dos demónios e dos deuses, e de quem os representa, mas isto nunca me tinha sucedido, nem poderia imaginar que me viesse a acontecer. Alguém me sussurrara em tempos que existiam organizações secretas e ultra-secretas, e outras tão, tão secretas, que nem os próprios organizados sabiam da sua existência. Ainda continuo convencido que algumas destas seitas ou organizações, teve algo a ver com o que sucedeu comigo. Ou talvez o sindicato dos músicos, se calhar a minha vizinha, ou, quem sabe, o padre da igreja, ou mesmo o próprio Estado.
Em tempos, ouvira falar de um homem que, ao despertar, se viu transformado numa barata; de um outro homem que alegava e jurava ter ouvido dois cães a falar, assim como se fossem humanos; e de um outro ainda, um desses fidalgos russos, que jurava ter-lhe fugido o nariz, fazendo-se depois o nariz passar pelo pobre “desnarizado”. Tudo isto me pareceu normal, tratava-se apenas de uma questão de identidade (ou de alteração dela), ou apenas da mudança de uma qualquer característica dessa identidade. Tomara que a minha situação fosse alguma destas, mas não. Um dia, até sonhei ser um sapo, claro que contando sempre que seria um daqueles batráquios que com um simples beijo ficaria prometido a uma princesa e me aboletaria com um trono qualquer. Agora, com esta desgraça que me aconteceu, é que nunca vou lá chegar. Nunca passarei de um vulgar sapo envenenador.
Imaginai vós que me transmutei em parte: que, como os cães falantes do Cervantes, mudei a forma da minha expressão oral e passei a ladrar; que me transformei num insecto repelente, numa barata com asas e tudo, como o insecto de Kafka; ou que, perdi em parte da minha identidade, como o herói de Gogol perdeu o seu nariz. Pior do que isso: não só me aconteceram as três situações referidas, como não se trata de uma mera substituição kafkiana por um outro animal, ou mesmo da falta ou de acrescento de parte dele. Di-lo-ia já, se não temesse uma risada sarcástica por parte do leitor, caçoando desta minha tão desesperada quanto inesperada forma. É verdade, tudo verdade, até as letras com que o vou relatar são verdadeiras. Creiam que tudo isto é possível. Eu vivi-o, na minha própria vida.
O leitor já terá, com certeza, ouvido falar (pelo menos, vagamente) de biónica, de seres biónicos. Eu também já tinha lido qualquer coisa sobre o assunto, num livro de ficção científica, ou em qualquer peça literária do género. Ora bem, quando na semana passada me apercebi deste meu estado, deste meu estado musical, digamos, decidi ir consultar um técnico de saúde. O problema já não era só a minha transformação parcial, para além disso sentia algumas dores localizadas nesse novo componente que incorporara. Recorri a um amigo, o único a quem tive coragem de revelar o meu caso, por ser o meu maior amigo e por nunca ter duvidado de mim. Contudo, até este, quando se deparou com a minha infeliz situação, sorriu por segundos, disse-me que era uma “dor d'alma” ver-me assim, quis mesmo tocar-me uma sonata ou um requiem. Depois mostrou um ar preocupado, aconselhou-me a consultar, sem demora, um especialista em medicina molecular, a um desses médicos bem implantados no comércio das curas – a coisa estava feia, não devia negligenciar o concurso de um bom profissional e dos melhores cuidados e remédios.
Assim fiz: cobri o corpo com um capote e quando caiu a escuridão da noite dirigi-me ao consultório do tal experto em moléculas. E a ele me queixei então: – Sabe, o meu problema é na alma, suspeito que tenho uma pequena racha na alma. Eu vou explicar... O médico já nem quis ouvir mais, dispensou o relato dos meus restantes problemas e, sem me dirigir uma palavra, chamou a “ramona” do Hospital psiquiátrico. Chegado ao hospício deram-me ordem de internamento e um pijama novo. Foi lá que tive acesso a um verdadeiro “médico-afinador”, a quem contei o meu infortúnio, inclusivamente a minha falta de saúde. Não me olhava como o outro médico, este ouvia atentamente o meu relato. Lá lhe fui dizendo: – Saiba o senhor doutor que, apesar de tudo, não me queixo do instrumento que me encastraram, tem uma boa alma, uma alma em ferro. Só me queixo de algumas dores numa pequena racha que sinto na alma. Quando exposta à humidade (da chuva, ou do banho), faz-me dilatar as madeiras, ou quando exagero no esforço de percussão e as cordas puxam demasiado pela estrutura, sinto algumas dores.
Depois de um longo e pormenorizado exame, o especialista fez o seu diagnóstico: duas cordas um pouco sobrecarregadas, podem partir a qualquer momento se esforçadas; as madeiras um pouco ressequidas, o que provoca um deslizamento das cordas e uma consequente perda da afinação; e a dita racha, não passa de uma brecha mínima na alma. Chaga que só poderia vir a incomodar se houvesse necessidade de substituir algumas madeiras, ou reforçar a estrutura que sustenta o cordame, segundo ele. Até me foi feito uma espécie de “electro-audiograma”, que revelou valores de escala muito próximos aos de um “cravo bem temperado”, o sumo padrão europeu. Já não aguentaria o esforço de um concerto inteiro, é certo, mas podia bem acompanhar uma noite de tertúlia. Podia tentar uma cirurgia, porém, o douto curandeiro recusou a ideia de me soldar a alma, era uma operação radical e minuciosa demais, implicava algumas horas de entranhas abertas e um esforço hercúleo para mim, por força da fraqueza inerente à minha provecta idade. Em suma: a máquina tinha alguns anos, tinha bastante uso mas era uma boa máquina, estava num estado aceitável – poder-se-ia dizer que gozava de uma saúde débil, mas tinha no imo uma alma em ferro.
Não era um Steinway de cauda, ou um Bechstein, nem sequer um Fritz Dobbert, ou mesmo um Kaway… Era um Pleyell, um vertical piano de estudo orgulhoso da sua origem gaulesa, com cerca de 75 anos, o qual – segundo o afinador –, se fosse estimado, podia durar outros tantos ou mais anos ainda. Afinal, dei-me por contente, resignei-me a ser um “homem-piano”, ou um “piano-humanizado”, um homem biónico que, em vez de incorporar desses dentes de fibra óptica, ou um membro em liga de carbono, ou uma articulação em aço cirúrgico – tinha uma pianola septuagenária acoplada ao tronco. Entretanto, por mor da idade, já meti os papéis para a reforma. Enquanto não ma concederem, vou ganhando umas coroas como “pianola-de-rua”, a animar os transeuntes em troca de algumas moedas. Na verdade, ando a tentar amealhar algum: quando puder faço uma cirurgia de remoção deste piano velho; e um transplante – vou mandar implantar um jovem piano eléctrico.
Joshua Magellan
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