VARANASI: O RITUAL DA MORTE
Varanasi, na margem do Ganges, o rio sagrado da Índia para onde são atirados os restos mortais dos muitos hindus que ali vão morrer. A poluição do rio atinge, assim, proporções incalculáveis e difíceis de aceitar racionalmente. No entanto, o rio pela manhã apresenta uma paisagem fascinante. Aventurei-me. Um passeio de barco pelo rio, de madrugada, às cinco horas da manhã, para ver o sol nascer. O rio enche-se de hindus que ali vão banhar-se, deitar flores e rezar. Deitei também a minha vela no Ganges pelos mortos. Pelos amigos. Pelos amores. Não se descreve o que se sente ali. O remador Balu (obrigatoriamente hindu para ser remador no Ganges), foi tentando explicar-me alguns daqueles rituais mas eu só ouvia o barulho do sol a bater nos Ghats e a iluminar, aos poucos, o casario. Encontrei viajantes solitários, mulheres aos pares, casais, grupos de meia idade.
O Rio Ganges está para os hindus como Meca para os muçulmanos. Eu queria conhecer de perto aquele ritual de cremação. Visitei o principal local de cremação - Manikarmika - onde os fogos ardem consecutivamente. São precisas cerca de 4 mil rupias para comprar toda a lenha necessária à cremação de um corpo. A cremação eléctrica é muito mais barata e custa apenas 151 rupias. Pois, até na morte...
O filho mais velho do morto rapa o cabelo e ateia o fogo dando quatro voltas em redor do morto, ritual que simboliza os quatro elementos: terra, água, ar e fogo. As crianças com menos de doze anos, as mulheres grávidas, os leprosos e os sacerdotes não são cremados. Estes corpos são directamente atirados ao rio, atados a uma pedra.
Vi de perto os corpos a arder. Senti no corpo o calor dos fogos e os meus cabelos e corpo encheram-se de cinzas. Chorei. Chorei muito. Chorei tudo. Funcionou como uma catarse da minha dor. Não conseguia controlar as lágrimas e recordei o meu pai, morto há poucos meses. De repente, seguiu-se uma calma imensa, súbita, inexplicável.
Nunca mais esquecerei Varanasi, As flores laranja por todo o lado. Os muitos paus de incenso a queimar. Os mantras repetidos ao som dos muitos sinos. O sabor intenso do "malai kofta" .Ficarão para sempre comigo. Como ficará a visita ao "guruji" de 87 anos, um astrólogo hindu que me garantiu já ter vivido no sul da Índia numa vida passada.
Das muitas viagens feitas, nunca tinha sentido este clima, esta atmosfera exótica e mística. Em Varanasi, cheira a sândalo, a jasmim pelas ruas. O incenso apodera-se dos sentidos. Na mesma rua era possível desviar-me de um elefante para ir contra uma vaca ou quase ser atropelada por um riquexó ou estatelar-me sobre excrementos. Em Varanasi, recuei séculos no tempo e quase esqueci quem sou, o que faço, e as preocupações do Ocidente pareceram-me totalmente mesquinhas.
Carmo Miranda Machado
Varanasi, na margem do Ganges, o rio sagrado da Índia para onde são atirados os restos mortais dos muitos hindus que ali vão morrer. A poluição do rio atinge, assim, proporções incalculáveis e difíceis de aceitar racionalmente. No entanto, o rio pela manhã apresenta uma paisagem fascinante. Aventurei-me. Um passeio de barco pelo rio, de madrugada, às cinco horas da manhã, para ver o sol nascer. O rio enche-se de hindus que ali vão banhar-se, deitar flores e rezar. Deitei também a minha vela no Ganges pelos mortos. Pelos amigos. Pelos amores. Não se descreve o que se sente ali. O remador Balu (obrigatoriamente hindu para ser remador no Ganges), foi tentando explicar-me alguns daqueles rituais mas eu só ouvia o barulho do sol a bater nos Ghats e a iluminar, aos poucos, o casario. Encontrei viajantes solitários, mulheres aos pares, casais, grupos de meia idade.
O Rio Ganges está para os hindus como Meca para os muçulmanos. Eu queria conhecer de perto aquele ritual de cremação. Visitei o principal local de cremação - Manikarmika - onde os fogos ardem consecutivamente. São precisas cerca de 4 mil rupias para comprar toda a lenha necessária à cremação de um corpo. A cremação eléctrica é muito mais barata e custa apenas 151 rupias. Pois, até na morte...
O filho mais velho do morto rapa o cabelo e ateia o fogo dando quatro voltas em redor do morto, ritual que simboliza os quatro elementos: terra, água, ar e fogo. As crianças com menos de doze anos, as mulheres grávidas, os leprosos e os sacerdotes não são cremados. Estes corpos são directamente atirados ao rio, atados a uma pedra.
Vi de perto os corpos a arder. Senti no corpo o calor dos fogos e os meus cabelos e corpo encheram-se de cinzas. Chorei. Chorei muito. Chorei tudo. Funcionou como uma catarse da minha dor. Não conseguia controlar as lágrimas e recordei o meu pai, morto há poucos meses. De repente, seguiu-se uma calma imensa, súbita, inexplicável.
Nunca mais esquecerei Varanasi, As flores laranja por todo o lado. Os muitos paus de incenso a queimar. Os mantras repetidos ao som dos muitos sinos. O sabor intenso do "malai kofta" .Ficarão para sempre comigo. Como ficará a visita ao "guruji" de 87 anos, um astrólogo hindu que me garantiu já ter vivido no sul da Índia numa vida passada.
Das muitas viagens feitas, nunca tinha sentido este clima, esta atmosfera exótica e mística. Em Varanasi, cheira a sândalo, a jasmim pelas ruas. O incenso apodera-se dos sentidos. Na mesma rua era possível desviar-me de um elefante para ir contra uma vaca ou quase ser atropelada por um riquexó ou estatelar-me sobre excrementos. Em Varanasi, recuei séculos no tempo e quase esqueci quem sou, o que faço, e as preocupações do Ocidente pareceram-me totalmente mesquinhas.
Carmo Miranda Machado
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