sexta-feira, 25 de novembro de 2011


Génesis (ou, uma estória de afectos muitíssimo original)

Era uma vez uma estória que começava como todas as estórias, “era uma vez”... Era uma estória de um príncipe e de uma princesa que, um dia desencontrados, se vieram mais tarde a reencontrar, à imagem de todas as estórias do género. Ela era vendedora na loja das meias; ele trabalhava no turno da noite no metropolitano. Ela baixa que, ao sol do Rossio, não entrava na Rua da Betesga; ele debaixo de terra, não passava de estação, nem nunca foi apontado pelo Chiado. Encontraram-se entre estações, no começo da primavera. Casaram nas "noivas de santo António" e separaram-se numa festa de carnaval.
Com a euforia do festim, a confusão dos mascarados e a pouca convivência entre ambos, perderam-se um do outro: ele saíu por engano com uma suposta dama de copas; ela deitou-se com a máscara do rei de espadas. Deram conta disso alguns anos depois, quando por acaso se reencontraram entre estações, num dia de greve dos transportes. Ela perguntou-lhe se ele ainda vivia naquela casa. Ele, disse que sim. Ela, confirmou-lhe que também ainda estava a viver nessa mesma casa. Trocaram um carinho com as mãos e olharam-se cheios de saudades nos olhos. Prometeram voltar a ver-se mais vezes. Ela deixou o número de telefone dela; ele guardou-o na carteira, junto à fotografia da mulher de máscara.
Um dia, encontraram-se frontalmente num café a meio da noite. Ele, não suportava mais aquele trabalho, resolvera desertar. Ser polícia subterrâneo não era nada fácil. E depois ter de andar sempre com aquela máscara, dia e noite. Ela, fora despedida: o negócio das meias acabara praticamente desde que se começaram a usar aqueles fatos-máscara que cobriam o corpo todo. Estavam ambos ociosos, à procura de algo em que entreter o ócio, quando se reencontraram nessa tarde. Ela, teve dificuldade em reconhecê-lo sem máscara; ele, reconheceu-a – mesmo sem lhe conhecer a cara –, reconheceu aquele sinal nas costas da mão e as nódoas de batôm carmim na ponta dos cigarros. Foi bom dar-se conta de que conhecia as mãos dela, de que agora poderia ligar essas mãos a um rosto. As mãos sem rosto têm sempre alguma coisa a dizer, mas é a expressão do rosto que dá sentido às suas acções, seja crime ou carinho.
E assim termina esta estória, tal como terminam todas as estórias, por ter de terminar. No dia em que os amantes se viram cara a cara, se deram por fim a conhecer, deram para sempre as mãos que já conheciam. Beijaram-se, sim, provavelmente ter-se-ão beijado, sofregamente, como o fazem todos os amantes reencontrados. Assim poderiam ter ficado imortalizados – numa pintura, numa fotografia, ou até num texto – atados um ao outro para sempre, num abraço de vida que o mútuo afecto vai reinventando.


Joshua M.

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