sábado, 14 de janeiro de 2012

Crónica Benzodiazepina


Crónica feminina

Um dia, reparei numa mulher que vendia peixe, havia qualquer coisa de peculiar nela. Desde esse dia, quando por acaso passava pela porta do mercado, detinha-me sempre por alguns instantes a admirar aquela rara criatura . Certa vez, adiei-me num olhar, num olhar de mirada certeira e clínica. Observando a marchante das delícias de Poseidon extasiado: a forma breve como amanhava e embrulhava o peixe; a convicção com que dizia cada caralhada; a suavidade ríspida com que escamava, tanto a corvina como a pescada. Estava, sem dúvida, perante uma mulher de pêlo na venta e desenvoltura na língua. Cheguei a temer que reparasse no meu silêncio investigador, não queria ser notado, não queria interferir no objecto da minha observação, limitava-me a examinar discretamente. Lá estava ela, de mangas arregaçadas, lenço à cabeça, ora a limpar as mãos a um farrapo, ora deitando mão da sacola de estopa onde guardava o pecúlio das vendas. Olhava em redor, desconfiada, de todos, de tudo, a cada vez que deitava mão à sacola do dinheiro. Depois cuspia no lenço, que voltava a enrodilhar no bolso – onde guardava também as chaves, alguns trocos, toda a sorte de escória. Finalizava a higiene nasal com a parte exterior do antebraço, erguia a cabeça, e descansava a mão na anca armada em pose de varina. Olh'ó cabrão... Q'antos são eles? Ólh'ó tenrinho! Tens picha p'ra mim, ó quê? Soltava graciosamente, quando à boca pequena lhe pediam descontos, ou em surdina suspiravam pelo favor dos seus encantos. Era ela, a mulher comum, a Mulher em toda a sua plenitude e genuinidade, em toda a sua feminilidade de Eva original. Era ela, ainda, mãe de três filhos e avó de dois netos.
Guardo nostalgicamente a sua imagem na memória: a cuspir no lenço, a apregoar, aos pontapés às cabeças de pargo e de goraz, perdidas pelo chão vermelho da velha praça. Era ela, esplendorosamente ela, em toda a sua graça e delicadeza. Uma vez, dizem, agarrou pelos colarinhos a um mau pagador, encostou-lhe a faca aos ditos e jurou deixá-lo istérilico... se o carcanhol não morasse em casa dela no dia seguinte. E morou, afirmam algumas testemunhas, vendedeiras das bancas vizinhas. Contam outros que, antes de tudo, pegou num farrapo encardido e limpou a faca tanto quanto a bodeguice do pano a deixou. E tudo por bem, porque se não assustasse verdadeiramente o relapso devedor ainda teria de o riscar do "rol dos caloteiros" à faca, o que resultaria num triplo prejuízo – sujidade, tempo e dinheiro.
De salientar que, naquele momento de emoção violenta, onde qualquer homem perderia a cabeça, esta mulher manteve a frieza, a presença de espírito, distinguindo-se dos demais nos meros detalhes de puro asseio e respeito pela vida humana. Comovem qualquer um: a sensibilidade, o espírito compreensivo, o amor (quase fraternal), a magnanimidade com que adoçou o pagante. Porque esta mulher representa todas as peixeiras, esta mulher representa todas as mulheres, esta mulher representa todos os homens, os que pescam o peixe e os outros.
Subjugado pelo seu magnetismo, comentava comigo mesmo, como era bom que... Momento em que fui atingido por um polvo com odor a três dias de banca (em degelo acelerado), alvo da sua ira. Ao recuperar da pancada, apercebi-me que a mulher, em alvoroço, vociferava contra mim: Aquel cabrão, estavá'li prantado a olhar p'ra mim há mai d'um quarto d'hora! Sem outra saída, que não a da fuga, precipitei-me numa correria em direcção à porta da praça e segui o trilho do amarelo do “eléctrico”. Estava atrasado para a reunião, tresandava a peixe, tinha de me apressar. “ – Táxi, táaaaxi!!!” Já tinham visto alguma varina de calças? Nem em Alcântara, a Rosa Agulhas...! Ah, quase me esquecia, quando fui atingido pelo pescado sentia uma estranha tranquilidade, animado pela certeza de que "a mulher de sonho" em nada se assemelhava à minha varonil heroína. Para bem delas, para nosso bem, para bem da humanidade. Parabém, a ela! Parabéns, a todas elas!


Joshua M.

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