quinta-feira, 21 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (III)


Um mundo cão 

Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me servem os barbitúricos.

Herberto Hélder 

Sempre tentei correr pelo lado corrente da vida, mesmo que na contracorrente do que sou – eu, em
mansa mente – sem objecções de monta, sempre atento para fora, sempre contrariado por dentro. Obstinado em objectar interiormente, por vezes; outras, feito homem feito, a teimar em seguir o meu caminho, alargando o passo direito a nenhures.
Corri por todo o lado, cheguei a ouvir uma conversa de dois cães de guarda, fugidos da decrépita constelação do "Cão Maior", cuja função era prever a última hora de luz na terra. 
 – O senhor vem do fim do mundo? Inquiriu-me um deles. Eu não deixava de o observar, receoso de que me fizesse uma pergunta ainda mais difícil, do tipo “Sabes ladrar?” Nunca dominei bem o idioma dos cães, apesar de ser verticalmente um cinófilo. Não obstante essa minha incapacidade, até consigo falar com pessoas, estrangeiros e outros que não se calam só para se poderem ouvir.
No entanto, digo-vos: aquele canídeo era um animal complicado, sem termos de identidade ou residência, um cão livre, improvável. Provavelmente um cão anarquista inscrito na "carbonária", que, sem porquês, me pergunta de novo: 
 – Sabes se por aqui é proibido proibir o permitido? Logo a mim, que não me queria envolver em questões políticas. 
 – Não sei, não, não sou de cá. Só cheguei há uma hora e tal e estou de passagem… Por enquanto, não me proibiram nada. E fiquei-me por ali, sem mais nem porque não, sem abrir a boca. 
Por azar, sou topado por um polícia, um dos da secreta, que estendendo a orelha até ao pé de nós, acabou por confundir pergunta e resposta. O que foi o suficiente para perceber que tinha dito (ou calado) algo errado, notei-o imediatamente na expressão do agente policial. Ainda assim, exerci o meu livre arbítrio até ao cúmulo de perder o controlo de mim, ao dar ouvidos a certos latidos.Também nunca percebi muito bem se estava numa via de passagem, ou aonde ia nessa minha viagem. Mas, o polícia, (o tal, o grande orelhudo), que nem era bicho nem homem, teimou em ensinar-me o caminho da liberdade de ser preso. A liberdade de ter comida a horas e camarata certa.  A partir de então, nunca mais quis ser livre. Pelo menos, livre em todos os sentidos que não me permitem. Vivo ainda hoje abatido sob o pesado jugo das palavras-incompletas, das palavras-meias-verdades, das palavras-que-ficam-por-dizertudo pode ser ouvido, mesmo que não seja dito com palavras significantes.  São como que falsas palavras, palavras insignificantes com mau significado: sugestões que nos arrastam para a lama da censura, murmúrios que rugem com a raiva de marés vivas, silêncios que trazem a nortada nas entranhas para nos silvar castigos.


Joshua Magellan

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