sexta-feira, 23 de novembro de 2012

PALAVRA EXPERIMENTAL (V)


euromilhões

precisamente às vinte horas e trinta e um minutos de sexta feira o planeta inteiro assiste placidamente à formidável extracção do euromilhões enquanto é invadido por maçãs adúlteras assadas no corno e por tangerinas que se declaram doces, muito mais doces... do que aquilo que as más-línguas apregoam por pura maldade adstringente sensivelmente a essa hora uma horda de pirralhos clinicamente obesos e estereotipadamente ranhosos renuncia ao direito fundamental de comer fruta extraterrestre após o jantar abandonando a mesa sem negociações para se dedicar convulsivamente à extracção de macacos não-hidráulicos do nariz metido onde não foi chamado também a essa hora fatídica a parelha de amigos de infância e do alheio carlinhos «flecha» e alípio «dedos leves» dedica fervorosa e carinhosa a mente ao aperfeiçoamento da extracção de identidade aos transeuntes incautos de ruas escuras recorrendo ao método artesanal de esticão que viram aplicar na tv por uma certa classe média-baixa e baixa de políticos a essa mesma hora um dentista efectua a extracção do último dente do dia mas que felizmente não é o último da paciente uma polaca bacteriana e fúngica que afirma que gosta muito de cá estar enquanto na maternidade está praticamente no fim a extracção com fórceps de uma criança antes do tempo ao útero esgotado da mãe depois do tempo que já antes incorreu noutra extracção ainda nessa mesmíssima hora piadas e risos a circulam no afã esterilizado dos corredores da urgência do hospital provocados pelo gás saboroso e tóxico de uma vítrea garrafa de coca-cola marca afamada e conspícua que insolitamente quis deixar a sua marca no ânus de mais um cliente satisfeito e cuja extracção já não tarda nessa altura numa velha mina do chile um humilde mineiro do chile há 11 meses submerso na extracção do minério do chile e desde há um mês soterrado pela terra do chile acaba de ser salvo alvo de extracção da mina reencontra a mulher que traz nos braços um fruto de extracção inexplicável ou mais improvável que a chave do euromilhões olha para o céu sobranceiro e agradece a deus por já nem saber de que terra é ao mesmo tempo termina noutro canal de tv o apreciado episódio diário da série do costumeiro jogo de sorte e azar só ao alcance de testas de ferro peles de galinha e nervos de aço em que um adivinho aparvalhado de fato e gravata e pó-de-arroz na desgraça se dedica à extracção de bolas de um saco incolor onde estão inscritas notícias que canta e que quer sejam quer não sejam nos retiram prémios à mesma hora tomo café mexo com a colher e tomo consciência de que nunca acertei em nada, verdadeiramente, que fosse digno de extracção nem alguma vez me favoreceram os jogos e que do lado de fora da sorte a minha verdade é sobretudo dedos a quererem tocar dentro desde que a minha mãe me disse agarra no coração pelas asas e vai à tua vida


Renato Filipe Cardoso

Sem comentários: