quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

SETE DIAS VEZES POESIA (II)


O VENTO E AS PEDRAS

Era Céu, era serra.
Uma cruz, uma Rosa.
E eu vi, sob a terra,
Uma lapa, uma lousa.
Era Céu, era flava.
Pela cava, Zulmira.
E a aragem tocava
Uma corda, uma Lira.
Algo é verde, ela é vedra.
É do béu. Qual adobe?
É o Vento, que é pedra.
E é Alma que sobe.
Algo é vau, que ela é vela.
É o Espírito e roca......
Uma nave, uma bela,
Uma Rosa na boca.
 
 
Paulo Brito e Abreu

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

SETE DIAS VEZES POESIA (I)


infeliz anatomia

A felicidade altera o lugar dos substantivos no corpo:
o vinho branco crepuscular na esplanada do Marais
não encontra o caminho para o fígado;
um joelho entre a obscenidade azul de Mutriku ultrapassa
o golfo na capacidade de protagonizar ângulos agudos;
em Praga dois lábios inacreditavelmente carmins foram
classificados como património imaterial da humanidade,
o suficiente para que haja sempre fila;
sempre que chove em Buda um rim confessa saudade
do irmão gémeo transplantado para Peste;
nenhum oleiro ousa confessar a autoria dos pés de barro
largados pelo santo na Praça de S. Pedro;
o útero de pedra de Florença clama ainda por um
derradeiro Renascimento;
os olhos elevados de Santa Justa foram levados de urgência
ao hospital vítimas de cataratas do Niágara súbitas, foi
visto a sair apressadamente um emigrante;
um jardineiro bêbedo perdeu as mãos enquanto podava
o riso de uma fêmea no Jardim da Sereia, o seguro
recusa considerar o episódio como acidente de trabalho;
nos Clérigos existe um pescoço literário fora de moda.

Dirá o médico que o bisturi cirúrgico da literatura tudo
explica, tudo corrige, que a cada órgão é intrínseco
o caminho para casa.
Eu fecho o meu pensamento com postiça perfeição
sob as sobrancelhas de tantas vésperas e imagino
como é longe a felicidade.
Eu abro o mapa que a pode guiar ao longo das entranhas
labirínticas que amam em múltiplas direcções e imagino
como é longe a felicidade.
Eu procuro desenhar esquemas e poemas e croquis e
palavras que pedem indicações a cada músculo e imagino
como é longe a felicidade.
Eu troco vezes e vezes sem conta o coração viajante
por um bilhete sem carimbo sem destino e imagino
como é longe a felicidade.

Não sei como vim aqui parar. Talvez o sangue me
acontecesse assim, sem princípio
nem desejos de regresso.
Eventualmente
todas as coisas se desfarão dentro do próprio vento
e nas bagagens restarão apenas detectores de mentiras,
fotografias de ângulos mortos, naturezas mortas,
talvez uma estátua de mar que já não sabemos onde fica.
Apenas o corpo, adulterado, incaracterístico, esventrado,
conservará marcas de cada viagem por vocação
de pequena felicidade,
justificando aos demais o prazer infinito da autópsia. 


Renato Filipe Cardoso

domingo, 6 de janeiro de 2013

Provocatio


Como adiar a solução para um problema inexistente

O tempo não avança. É o constante saltitar, de ponto de vista em ponto de vista, que nos transmite a sensação de mudança. Pontos de vista não são lugares, mas formas diferentes de pensar o mesmo problema. 


DuArte

sábado, 5 de janeiro de 2013

Crónica Benzodiazepina


Um cobarde

O sentimento mais decepcionante que conheço é a cobardia.

A cobardia é um poderoso elemento que atrai todos os demais sentimentos negativos, tornando o homem mentiroso, dissimulado, esquivo, ambicioso. Idiota e pequeno, muito pequeno, de uma pequenez provavelmente só compatível a um rato.

O cobarde odeia em silêncio, vive em comodismo e mata em pensamento. O cobarde esconde-se por detrás de sentimentos e de pessoas que nada têm a ver com o que sente, isto é, a dura e penosa e profunda consciência dessa sua pequenez alucinante.

O cobarde é vil; o cobarde tem um sorriso amarelo; o cobarde tem olhos fugidios;
o cobarde não ama, acomoda-se ao que melhor lhe convém, pois amar é arriscado demais para alguém tão ínfimo como ele; o cobarde não resolve nada porque não tem coragem de assumir a responsabilidade pelos seus actos; o cobarde não desperta o sentimento das pessoas, porque entra e sai sem que ninguém se aperceba; o cobarde não gosta que os outros despertem sentimentos que ele não é capaz de despertar.

Em suma, um cobarde não é nada! Assim, como se pode odiar a própria personificação da inexpressividade? 


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

PALAVRA EXPERIMENTAL (XI)


O XADREZISTA 

De novo a Vida e a Vitória e a Glória e Tudo...

O jogador de xadrez gosta de ganhar partidas de xadrez. Gosta de jogar. De sentir a Alma do jogo. Adora ganhar. Mas o excesso e a euforia têm limites. Tudo é limitado. A vida. A Obra literária menos do que a vida por vezes. A partida de xadrez bem organizada e bem urdida como o poema. Mas o xadrezista também quer perder. E quer ganhe quer perca metade do xadrezista fica infeliz e pressiona a felicidade. Tudo se equivale: derrota ou vitória ou um bom ou mau empate. Ou um empate razoável. A vida é razoável misturada de altos e baixos. De baixos que se desejariam altos e vice-versa. E às vezes um grande Poeta para outro grande Poeta tem palavras que mais do que amigáveis são amorosas. Que tem isto a ver com xadrez? Nada. E eu adoro também as chuvas. O xadrezista sobrevive e tem de o fazer num mar de contradições e de jogadas e de resultados sempre desejados e ao mesmo tempo indesejados.


João Belo

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013


Ontem morri 

Ontem morri, soçobrado ao castigo de ofensas que me atingiram como gumes. Ontem ofendi: empunhei facas contra facas. Ontem morri, sufocado por um nó na garganta ao ver a raiva virar-se contra mim. Hoje escrevo com a alma ferida de morte, atravessada por terríveis memórias que só o tempo deixará atenuar. Ontem morri, por te perder. Por deixar de te sentir na distância tanta que nos separa. Ontem morri, por não te poder ver, não poder falar ao teu silêncio. Porque ontem te perdi. Ontem morri, na parte de ti que em mim vivia, na parte que era eu também ao ser contigo. Na parte do todo que éramos e deixámos de ser. Ontem morri, por te saber lonjura, por te achar horizonte perdido sempre a distanciar-se. Porque o amor se acaba um dia, sem nos darmos conta do quanto acaba. Ontem morri, ao perceber que amava sem amar, que dava sem saber a quem dar, sem saber o que dar. Porque amava sem ser amado e não dava o que devia ter dado, o que era justo dar. Ontem morri, porque morreu em mim um afecto, porque a dor me matou à traição. Porque o mundo é cru e se alimenta de vida e da morte do coração. Ontem morri, porque se me calaram todos os futuros. Toda a esperança de um amor de mãos dadas com a paz. Ontem morri, porque não soube gostar de ti, porque nunca soubeste gostar de mim. Ontem morri. Sobrevivi. Hoje já não vivo aqui o que fui outrora tão perto de ti.


Joshua Magellan

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013


Azul montanha 

Comecei mesmo agora a ver o outro lado da montanha. Não é azul, antes azulado como o resto das montanhas. Faz muito frio e faz-me falta um casaco quente. Os do meu armário não não suficientes para descer esta montanha. Falta-me um que se mostre capaz disto.
Era o que faltava ficar-me na descida. 



Iolanda Bárria

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Palavras Versadas


UM CORPO ENCONTRA A SUA PROFUNDIDADE FORA DELE

um corpo encontra a sua profundidade fora dele
como a palavra isolada ilude a linguagem.

mas é na palavra transitiva que nos amamos
no que passa e contradiz
no lugar onde o erro ainda subverte
a sua prova mais ténue.

respiro as nossas impossibilidades
como se o corpo fosse a libertação
de todas as coisas.


Sylvia Beirute

domingo, 30 de dezembro de 2012

Provocatio


Segundas-feiras

Às segundas vou mudar o mundo, ou dar cabo dele.
Tende paciência com as segundas, porque estão grávidas, têm os seus caprichos e enjoos. E estar todas as semanas a engravidar não é para quem quer! 


Iolanda Bárria


sábado, 29 de dezembro de 2012

Crónica Benzodiazepina

 

Rendição 

Aprendo diariamente o difícil processo de aceitação. As coisas negativas que têm acontecido ultimamente transportam consigo uma lição profunda que me tenho recusado a perceber. Mas já é hora de ler os sinais. E eles estão, todinhos, à minha frente, aguardam leitura. Idealizei, sonhei e foi esse o meu pior erro. De que valem os sonhos quando a realidade é que é?
Só posso avançar depois de uma catarse completa. E essa, passará pelo perdão e pela aceitação. E não vou oferecer resistência a mais nada na minha vida. Por baixo da tristeza, aprendi a aceitar com serenidade. Acabaram-se os dramas. Estou plenamente consciente e, por isso, deixei de estar em conflito.
Passei por um ciclo de insucessos, em que todas as coisas se esvaíram, se esfumaram, e as poucas que pareciam resistir, começaram aos poucos a desintegrar-se. Vou deixá-las ir. Sem resistências. Não posso recusar o fluir da vida. Tenho de aceitar a natureza impermanente de todas as coisas e de todas as condições.
Já viram alguma flor infeliz? Algum carvalho com stress? Algum golfinho deprimido? Alguma rã com problemas de auto-estima? Algum gato que não relaxe? Algum pássaro que transporte ódio e ressentimento?
Rendo-me. Rendi-me. E contrariamente ao que eu pensava, agora sei que é precisa muita força espiritual para nos rendermos.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

PALAVRA EXPERIMENTAL (X)


QUIRAL

street street street street street street street street
street street street street
street street street street street street street street
street secret street street
street street street street street street street street
street street street street
street street street street street street street street
street street street street
street street street street street street street street
street street street street
street secret street street
street street street street street street street street
street street street street

um segredo murmura do outro lado
do silêncio
como um pássaro que silencia o ar.


Sylvia Beirute

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012


De olhos no céu 

Está um céu lindo por cima de mim. Ontem, eram umas três da manhã, já os poucos postes que iluminam o caminho tinham sido desligados, vim ver este cenário. Estava esmagador. A Via Láctea, perfeitamente definida, atravessava o céu, parecendo nascer no horizonte recortado pelos ciprestes para, no seu caminho de infinitas estrelas, desaparecer por detrás dos montes que ladeiam o rio Minho. Lembrei-me de um dia ter lido, num livro sobre o espaço, que existiam tantas estrelas no universo conhecido como grãos de areia em todas as praias do planeta. Que dizer de um número destes? 
E tanto mais extraordinário é porque nada disto se compara ao efeito que os teus olhos provocaram em mim.


DuArte

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012


Postais

Lembro-me de receber postais de boas festas . Postais com brilhos, postais com renas e neves , postais com fogo de artificio e desejos . Eles vinham enfeitar as minhas mãos cansadas, fazer sorrisos no espaço onde os abria, colmatar falhas do ano, deixar no meu canto, riqueza de vida. Nem todos eram escritos com a meiguice da época ou a simpatia genuína de quem gosta de enviar. Mas todos eles se arrumavam em mim, como pedaços de quentura no frio de Dezembro. Pena que os postais estejam a morrer nas papelarias. Pena que as caixas de correio já não sintam o latejar das boas festas e aquelas frases simples, em escrita nem sempre linear , já não espalhem calor de gente dentro de nós. Porque não há como receber uma carta, receber um postal e sentir que, algures, aquele ser que nos enviou a mensagem esteve perto de nós , quando escolheu o postal, quando nele esboçou seu gesto em vocábulos, quando o enviou e quando, na demora da resposta, nos pensou. Às vezes basta um mero toque de palavras. E a ternura é nossa.


Laura Silva

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Palavras Versadas

 

minério

por entre feros espantalhos
paladinos da tenra idade
em corredores de gargantas tricotadas
muitas tias enal
teciam
porfiavam
“temos um menino de ouro”

desde esses dias torrados
de metal
cada vez mais precioso
se algo aprendi
foi a ocultar o pequeno brilho
e a insistir no ofício
de aprendiz de dourado

se um filão houver
enriqueçam na autópsia


Renato Filipe Cardoso

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Provocatio

 

ANGÚSTIA

Esta angústia surge sempre com as primeiras chuvas de Outono, agudiza-se perante a visão das luzinhas de Natal e só começa a diluir-se com os primeiros banhos de sol.


Carmo Miranda Machado

domingo, 23 de dezembro de 2012

Provocatio


É Natal, ninguém leva a mal

É muito injusto um doce tão bom chamar-se rabanada. A mim, ninguém me ouve pedir rabanadas, digo, antes, fatias douradas.
Mas pior do que rabansdas, só coscorões, ou filhós, ou trouxas de ovos.


Iolanda Bárria

sábado, 22 de dezembro de 2012

Crónica Benzodiazepina



PORTUGUESES

Não me sinto lá muito patriota ultimamente. Pelo contrário, ando enraivecida com a pobreza generalizada a que se assiste. E não falo apenas de níveis de endividamento exorbitantes, de andarmos todos a viver acima da média, de ver os nossos velhos a contar tostões, etc. etc. etc. Falo sobretudo da pobreza moral a que se assiste. Dos bebés encontrados em sacos de plástico aqui e ali, nos canos e nas sarjetas e à porta da Igreja... Falo da falta de carácter, da falta de sensatez, da falta de educação, da falta de valores, da falta de ver mais alto e mais longe.

NÃO AO VOTO

Questiono-me sobre a inoperância dos nossos políticos. Não só os do P.S. ou do P.S.D. ou do P.P... mas de todos eles. E não encontro melhor forma de mostrar a nossa generalizada insatisfação e desânimo do que, em peso, em massa, não votarmos nas próximas eleições.
Era ver os políticos do nosso país apavorados, ao verem uma atitude de força.
Falam-me do "voto" como um dever cívico. Eu falo do "não voto" como um direito cívico.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Profecias do Apocalipse - 21 de Dezembro de 2012


Nos dias do fim do mundo

Há uma dimensão para tudo o que possamos pensar. A ideia de fim do mundo não é uma excepção e também existe, algures, à espera de ser concretizada. Mas, ao contrário da ideia de morte individual ou em pequenos grupos, que é pensada e experimentada recorrentemente, qualquer experiência de morte colectiva em tão grande escala tem obrigações, do ponto de vista da execução, que ultrapassam, em muito, a vontade de meia dúzia de gatos-pingados a carpirem horrores em cima de um telhado. O fim do mundo é uma ideia tão massiva que, para ser expressa na forma, necessitaria de uma imensa maioria de crentes.
A insegurança, tão propagandeada nos dias que vivemos, é, de facto, propícia a que o pedido se generalize de maneira que santos e demónios congeminem o fim da tão aclamada tortura. Aparentemente, contra muitas expectativas, isso não está a acontecer. Apesar de serem observados alguns sinais do profundo desassossego que nos inferniza e enferma, porque muitas parcelas da mente que sonha toda esta embrulhada estão a aceitar a ideia do perdão e a abandonar o trauma de que existem razões para a manutenção do estado do medo, o mundo mantém-se imune à falta de juízo total.



DuArte

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

PALAVRA EXPERIMENTAL (IX)



Maria da Fonte 

Siena, - Arial 12 (por vezes 14), justificado, espaço duplo -,
poderá alguma vez entender Austin - Trebuchet 10, centrado, espaço simples -?

Austin - Trebuchet 10, centrado, espaço simples -
conseguirá algum dia ler Siena - Arial 12 (por vezes 14), justificado, espaço duplo? 


Iolanda Bárria

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Palavras Versadas


antes de mais o amor

antes de mais as coisas belas
o vazio faz tanto mal
antes a preguiça e o dormir de ficar
a corrente do rio não pára em te contemplar
antes ou depois o pequeno-almoço tardio
tomado na cama e em larga companhia
antes o nada em vez da força
porque nada justifica o dínamo da heroicidade
antes ser apenas por viver
ficar por fazer
antes abulia demente
corneta que o vento não assobia
antes promessas
vidas por cumprir em tons de sol
antes Março manhãs de Inverno
mais o frio todo o ano a escaldar
antes ser para apenas viver
ser o que vier para aprender
antes crer num buraco negro
e nele conceber deus sem um filho primigénio
antes poesia sem génio
rima sobre resma em simetria
antes pecado cansado
carne sobre carne em desvario
antes Eros redescoberto à luz de um pavio
todo o seu rosto iluminado em Psiké
antes e depois Hedoné
a fruição do espírito e do corpo inteiro
antes o prazer louco por pouco dinheiro
a vida atravessada por um fio
antes o castigo da folia
um fado vadio e sem abrigo
antes o frio em massa terna
quando nos vem arrefecer a carcaça carcomida
antes a morte que o andar
numa lida a porfiar por achar aquela sorte
antes dançar a rumba por dentro da urna
estender um pano negro e rubro sobre a tumba
antes o fim de ficar aquém
o amor em tal vez além de mim


Joshua Magellan

domingo, 16 de dezembro de 2012

Provocatio


Fim de citação

Rómulo e Remo (no sentido de Roma) encantam a declamar poesia a céu aberto, mas a sua maior especialidade é a citação, em quarto escuro.


Iolanda Bárria

sábado, 15 de dezembro de 2012

Crónica Benzodiazepina


Coisas que carrego comigo

Dizem que bolsa de mulher é um poço sem fundo, o objeto de desejo sempre escapa à mão, esta só alcança o inesperado. Na segunda-feira passada decidi fazer umas compras, pois minha bolsa estava muito rasa, até então posso elencar o que carregava: um chapéu desinibidor de pensamento; bengala rastreadora de perfumes; notas antigas, sem valor; casulos para borboletear voos; medidor de tensão para atravessar multidões; farpas de poemas concretos; pluma para pequenas delicadezas amorosas; miado de gato para aliviar solidão, e outras asneiras. Na volta para casa, enfrento um acontecimento constrangedor: o taxista para em frente à minha porta, abro a bolsa e borboletas começam a voar de dentro enquanto procuro a carteira com as notas de dez reais. Peço ao motorista que aguarde um momento, pois não conseguia encontrar as tais notas, ao passo que soa o miado do gato e leve e solta flutua a pluma. Disfarço a situação, admitindo que bolsa de mulher é assim mesmo, um poço sem fundo. Para minha surpresa ele, discretamente, pergunta: - A senhora é uma entomologista? Desconsertada respondo: - Não, sou uma louva-a-deus.


Manuela Barreto (Brasil)


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

PALAVRA EXPERIMENTAL (VIII)


Variação XXII

Navego, alego, relego, renego..........-me
Alerto, aperto, acerto, conserto...........-me
Colho, recolho, acolho, encolho..................-me
Desloco, reboco, retoco, desfoco.....................-me
Rumo, arrumo, assumo, sumo.............................-me
Acendo, ascendo, defendo, fendo...................-me
Repouso, removo, demovo, comovo..........-me
Cedo, acedo, sucedo, concedo...................-me
Remendo, emendo, desvendo, distendo.............-me
Imagino, refino, afino, mino..........................-me
Acorro, socorro, recorro, discorro.........................-me
Arranho, assanho, entranho, estranho.....................-me
Refreio, anseio, leio, enleio.......................................-me
Avanço, alcanço, descanso, amanso................-me
Caminho, sublinho, alinho, definho............-me
Convoco, sufoco, enfoco, desfoco..........-me
Combato, abato, rebato, desato.................-me
Descaio, desmaio, distraio, ensaio...................-me
Apelo, flagelo, revelo, atropelo..............................-me
Aviso, suavizo, deslizo, escravizo...............................-me
Esqueço, padeço, aqueço, enlouqueço..................-me
Resolvo, absolvo, devolvo, revolvo.................-me
 
 
Bruno Vilão

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012


Se...

Às vezes, pergunto a mim mesmo como seria a vida, como mudaria a nossa sociedade, se homens e mulheres se compreendessem. Isso implicaria um aumento drástico do desemprego. Os analistas promotores da terapia matrimonial e os autores de inúmeros manuais sobre o assunto teriam de mudar de ofício. Muitas amizades entre mulheres dariam miseravelmente o berro, por carência de assuntos de conversa interessantes. A companhia dos telefones teria de declarar falência. O consumo de álcool e cigarros reduzir-se-ia rapidamente. Floristas e joalheiros teriam um prejuízo de, pelo menos, cinquenta por cento. Deixaria de haver flores e penduricalhos para as reconciliações. Porque, normalmente, quem discute, também não se suporta. E, last but not the least, toda a indústria dietética, com as suas pílulas de emagrecimento, as beberagens proteicas, os livros, os grupos de auto-ajuda e os implantes queima-gorduras ruiria de repente porque as mulheres perceberiam que os homens olham para as magras, é verdade, mas é com as gordinhas que se casam...


Carmo Miranda Machado


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


Na essência de mim

Trago em mim a memória de paisagens longínquas, umas reais outras sonhadas. Trago em mim poentes em chamas, mares calmos e tranquilos, tempestades de assombro, o aroma das mangas mais doces, o veneno que ainda não aprendi a dosear. Trago em mim o vinho mais delicioso, as sombras mais negras, a menina assustada, a mulher voluptuosa, os mais terríveis abismos e os mais belos paraísos. Trago em mim o bem e o mal, a luz e a sombra, o medo e a ousadia, o riso e as lágrimas. Trago em mim música e silêncios, mágoas e alegrias, sonhos e pesadelos. Trago em mim um anjo e um demónio…


Missanga

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Palavras Versadas


bíblico

acostumara-se a desenhar frases bíblicas no torso em frente ao espelho
a agrafar as pálpebras ao som do crepitar dos membros que ia partindo
para pandorar melhor as imagens e assim construir os monocórdicos desejos

um dia escolheu uma grávida e com ela ainda viva mastigou o feto
recordou a fivela do cinto escondida por trás dos joelhos como um diapasão cru
e o sémen selvático de um macho a orquestrar nas cordas vocais


Miguel Barroso


domingo, 9 de dezembro de 2012

Provocatio



Acima de todas as nuvens 

Opiniões são como nuvens a atravessar o céu azul. É uma delícia quando, durante um breve passeio a pé, os meus filhos vão interpretando, cada um à sua maneira, as várias formas que as nuvens tomam.
 - É um elefante.
 - Não! É um dinossauro.
 - Não, maninha, é uma zebra, não vês que tem riscas pretas?

Não é fácil adivinhar-lhes as formas, porque elas estão sempre a mudar.


DuArte

sábado, 8 de dezembro de 2012

Crónica Benzodiazepina


Pedir

Um amigo pediu-me para escrever um texto para o seu blogue.
Não podia dizer que não!
Porque tenho muito orgulho não só no convite, mas, e principalmente, na pessoa de quem emanou!
Não sabia o que escrever! Mas fiquei como que agarrada à palavra pedir…
Acho que existem três coisas na vida que nunca, mas nunca, devemos pedir a ninguém:
Que nos ame; que nos considere, e que nos dê a sua própria vida!
Tudo o resto podemos pedir!
Não podemos pedir que nos amem, porque o amor não depende do nosso querer, nem do querer dos outros!
Ama-se por conjugação estelar, pela fragilidade, pelo riso, pelo cheiro, pelo toque e pelo tormento que nos provoca aquele abraço e aquele beijo.
O amor surge sempre como que um dilúvio, uma insanidade, um despropósito, um descontrole, porque nós não somos só vítimas das teclas do destino! Viver é perturbador e precisamos de sentir que os nossos anjos e os nossos demónios estão despertos e lutam!
Por vezes temos tanto medo de continuar a manter esse entusiasmo, e esse olhar arregalado, que se apaixonou pela existência honesta e arrojada do amor, que lhe dizemos que já não está na hora, que já veio tarde…
Mas o amor não atende ninguém com hora marcada!
O amor com hora marcada, só existe nas relações em que se sabe sempre como resolver todas as crises familiares, mas não sabe como preencher as horas livres de um fim-de-semana!
O amor tira-nos o sono, o amor tira-nos do sério, tira-nos o tapete, defronta-nos com os nossos medos com as nossas fragilidades... Mas, em troca, dá-nos generosidade a acachapa-nos com quilómetros de felicidade!
Por isso só podemos pedir a quem amamos que nos mime, que não nos obrigue a controlarmo-nos e por fim a distanciarmo-nos…
Não podemos pedir aos outros que nos considerem, porque esse sentimento só depende da forma como nós mesmo nos comportamos e nos consideramos, por isso só depende de nós.
A verdade é que quase todos nós, neste palco real que é a vida, e nas mais variadas situações, já fomos confrontados e por vezes até afrontados, com vários desafios, estímulos e impulsos e tivemos que optar. E as opções eram inúmeras, mas sabíamos que poucas eram as que nos podiam levar a merecer a consideração dos outros.
E, por fim, não podemos pedir a ninguém que nos dê a sua vida, porque pedir a alguém que nos dê a sua vida é pedir-lhe que deixe de existir.
O que não nos faz agitar, estremecer, tremer, desatinar, beijar e abraçar não merece fazer parte da biografia!

Maria Paula Elvas

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

PALAVRA EXPERIMENTAL (VII)


JULGAMENTO

O recinto transbordava
pessoas submergiam nas profundezas da superficialidade
petiscavam e bebericavam segundo é de costume

a fidelidade religiosa zodiacal, tema corrente nas rodas, não as prevenira
aquele tal pressentimento de algo incomum adormecera alcoolizado
tudo transcorria nos moldes da naturalidade

reticências
fecham-se as cortinas para o segundo ato 

persona non grata
nu como quem acabara de nascer
somente para os olhos da turba horrorizada, ao menos

aqueles olhos... viam mais do que lhes era dado a ver
penetravam os andrajos qual "ultrasonografia" moderna
detinham-se no peito parcialmente desnudo, ignorando o coração

"não passa de um cão sarnento!" - diziam entre si
"sujeito horrível!"
"sem classe!"
"de que sarjeta terá surgido?"
"crianças, fechem os olhos ou terão pesadelos em série pelo resto dos seus dias!"
"garçon, se quiser atendê-lo é por sua conta e risco!"

dava de ombros... acostumara-se ao tratamento desde há muito
o orgulho ferido havia aprendido a fechar um sem-número de cortes
açoite após açoite era quase que imediatamente cicatrizado

já não sangrava ante as ofensas
o sangue rubro transformava-se em translúcidas bolhas de sabão
apoucando e desaparecendo no ar
com a rapidez de algo que não intentara criar raízes

reflexo daquele cujo sangue nobre e injustiçado se perdia novamente na sarjeta

enveredava pela trilha dos humilhados
ao mesmo tempo em que brindes de alívio eram propostos em sua homenagem

comemoravam uma pré-concepção da realidade

concepção... quem teria cometido tal ato criminoso?
se teve um êxito na vida foi o de conseguir esquecer
fosse quem fosse a madre desnaturada que lhe dera à luz
dela herdara unicamente as trevas

tateava no escuro desde as primeiras passadas
e se ainda lhe restava alguma parcela de orgulho
era a de nunca ter olhado para trás
por uma mão de ajuda

entre um gole e outro de cachaça, eterna companheira
era acolhido pelos braços do torpor
enquanto aqueles olhares de repulsa e de acusação
iam perdendo o foco sob a enxurrada etílica

talvez sonhasse e quem sabe fosse visto por outros olhos


Rinaldo Leriano (Brasil)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012


O rosto que (re)invento sob esta máscara 

A máscara é o nosso semblante reinventado, o nosso avatar eleito, o nosso “eu” propositadamente deformado. A caricatura que nos apresenta uma outra e a mesma criatura. É o nosso alter ego, a face que damos para esconder a que não mostramos. A máscara – dizem – é uma porta. Contudo, não a vejo como porta funcional: não se pode entrar por uma máscara adentro. Mas antes, como um par de janelos ou portinholas de uma cela fechada, por onde se esquiva um olhar (com ar de caraça) e a ânsia de uma outra verdade. E se, por acaso, a máscara fosse uma porta, seria uma porta trancada, vista de fora; e uma porta por abrir, vista de dentro. Entrar dentro de um disfarce é muito difícil; sair dele, nem sempre é fácil. Já me escondi dentro de uma falsa aparência para fugir à vergonha de um imprevisto, para evitar ouvir as mil e muitas estórias sempre repetidas do vizinho do lado, para sobreviver simplesmente... O rosto por detrás da dissimulação traz-nos a comodidade de podermos ser nós sem termos de ser nós. A carne nua pode ser pintada de vermelho, de azul ou de qualquer colorido sobrenatural. Dentro de nós podem ganhar vida deuses, heróis, santos, figuras mitológicas extraordinárias, anões, gnomos, bruxas ou apenas almas de acidentais festejantes de carnaval – uma máscara é sempre outra fisionomia, sempre um outro "eu" que não o "eu" próprio. Pode cobrir todos os sentimentos, ocultar todas as paixões; pode dar todas as caras possíveis e inimagináveis ao rosto que oculta. A ocultação da verdade objectiva é a raiz criadora do fruto da imaginação. Na sua relação com a máscara, o mascarado adere inicialmente à personalidade da máscara, depois cria uma terceira personalidade, entre a que possui de cara descoberta e a que lhe confere o rosto da máscara. Numa máscara, em cada máscara que oculta um rosto, há inilidivelmente uma trindade de pessoas distintas e uma só, a mesma, reinventada desta e/ou daquela forma. Uma espécie de santíssima trindade sem santidade, um uno e trino pagão e dogmático, cujo mistério reside em esconder uma realidade anterior – onde a falsidade é passageira. A realidade posta em cena existe sem existir, efémera e transitoriamente, até se depor a máscara e a trapaça que ela própria representa no palco da vida. É o que acontece com todas as trindades – mágicas ou divinais –, ao cair do pano desvendam os seus esconderijos tamanhos, cheios de fantasmas e de castigos. Ou abrem à plateia, tão só, uma realidade de existência morna e lenta em modo de sobrevivência. E os segredos de amor por detrás da caraça? Esses são venturas, não são coisa que se ande por aí a dizer ao vento, bem sabemos que ele assobia tudo a quem passa.


Joshua Magellan