terça-feira, 8 de janeiro de 2013

SETE DIAS VEZES POESIA (I)


infeliz anatomia

A felicidade altera o lugar dos substantivos no corpo:
o vinho branco crepuscular na esplanada do Marais
não encontra o caminho para o fígado;
um joelho entre a obscenidade azul de Mutriku ultrapassa
o golfo na capacidade de protagonizar ângulos agudos;
em Praga dois lábios inacreditavelmente carmins foram
classificados como património imaterial da humanidade,
o suficiente para que haja sempre fila;
sempre que chove em Buda um rim confessa saudade
do irmão gémeo transplantado para Peste;
nenhum oleiro ousa confessar a autoria dos pés de barro
largados pelo santo na Praça de S. Pedro;
o útero de pedra de Florença clama ainda por um
derradeiro Renascimento;
os olhos elevados de Santa Justa foram levados de urgência
ao hospital vítimas de cataratas do Niágara súbitas, foi
visto a sair apressadamente um emigrante;
um jardineiro bêbedo perdeu as mãos enquanto podava
o riso de uma fêmea no Jardim da Sereia, o seguro
recusa considerar o episódio como acidente de trabalho;
nos Clérigos existe um pescoço literário fora de moda.

Dirá o médico que o bisturi cirúrgico da literatura tudo
explica, tudo corrige, que a cada órgão é intrínseco
o caminho para casa.
Eu fecho o meu pensamento com postiça perfeição
sob as sobrancelhas de tantas vésperas e imagino
como é longe a felicidade.
Eu abro o mapa que a pode guiar ao longo das entranhas
labirínticas que amam em múltiplas direcções e imagino
como é longe a felicidade.
Eu procuro desenhar esquemas e poemas e croquis e
palavras que pedem indicações a cada músculo e imagino
como é longe a felicidade.
Eu troco vezes e vezes sem conta o coração viajante
por um bilhete sem carimbo sem destino e imagino
como é longe a felicidade.

Não sei como vim aqui parar. Talvez o sangue me
acontecesse assim, sem princípio
nem desejos de regresso.
Eventualmente
todas as coisas se desfarão dentro do próprio vento
e nas bagagens restarão apenas detectores de mentiras,
fotografias de ângulos mortos, naturezas mortas,
talvez uma estátua de mar que já não sabemos onde fica.
Apenas o corpo, adulterado, incaracterístico, esventrado,
conservará marcas de cada viagem por vocação
de pequena felicidade,
justificando aos demais o prazer infinito da autópsia. 


Renato Filipe Cardoso

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