sexta-feira, 23 de dezembro de 2011


A fobia do Tártaro

Proferiu um curto discurso, despediu-se sem uma lágrima , pediu que lhe passassem o copo. Bebeu e recostou-se comodamente na eternidade da poltrona. Diante uns dos outros: olhos em alvo, cabeça erguida, olhar perdido no infinito de um nada. Ali, estávamos todos sem dizer, olhávamos parados uns nos outros, olhávamos em frente sem distância focada. Era a única maneira de não vermos, de não nos contagiarmos de emoções. Olhávamos para dentro de nós de lá do fundo do tal infinito que imaginávamos, víamo-nos longe pequenos pontos a acenar às vidas que passavam. Ali, todos os seis com ele, estávamos os sete juntos de novo. Depois de termos conseguido anular o olhar de forma a não tocarmos uns nos outros, quedámos como que em estado cataléptico, nenhum de nós se mexia, ninguém dizia uma palavra, o silêncio não continha mais que um embirrante zumbido de uma mosca que atravessava a sala a espaços. Dei um passo atrás, quebrando a imobilidade de estátua e fazendo menção de me retirar. Senti sobre mim a atenção da sala toda, toda a humidade dos olhares fixos. Girei a cabeça, passando olhos pelos olhos dos meus companheiros perfilados, como que para os avisar da minha manobra. E retirei-me da sala abafado pelos tapetes em busca da solidão, em busca de mim, caminhei pausadamente até que me detive numa zona escura do corredor. Acendi um cigarro, com as mãos em concha: no espelho diante de mim reflecte-se uma luz num rosto que se aproxima. Viro-me automaticamente e aceno-lhe com o maço de tabaco mais a caixa dos fósforos. Ela aceita, acende um cigarro, e, sem dizermos nada um ao outro, caminhamos para junto de uma janela que filtrava a claridade da rua. Uma névoa de fumo marca a nossa posição, o soalho sustenta o peso da gravidade dos nossos passos sob o silêncio do corredor frio. Sem o sabermos, a luz vinda do mundo era o nosso destino: parámos os dois junto à janela virados para a rua a ver passar as vidas da gente que vivia renascendo do lixo. Num dos contentores estava um pequeno boneco de peluche que uma mulher acareou: aconchegou-o ao peito, cobriu-o com o xaile (como se tivesse reencontrado o afecto perdido) e seguiu pelo trilho da sua loucura rumo à escuridão. Como se a mulher tivesse sido ela também aventada à rua, com os trapos e os plásticos e todos os restos de existência que completam o nosso ciclo vital. Ficámos a ver o filme que passava na janela como se não fosse real, como se o mundo verdadeiro estivesse contido todo inteiro naquela casa e para lá dela se estendesse outro planeta desconhecido cujo acesso nos era vedado como realidade. A mulher caminhou vaga embalando os farrapos até desaparecer no fundo do breu da rua, até nos fazer perder a razão de observar o mundo. Num gesto simultâneo apagámos ambos o cigarro, fixámo-nos no rosto um do outro, abraçámo-nos. Perdido no conforto do abraço escutei a sua voz muito serena: “ – se um dia me vires assim alheia a tudo, vagueando pelas ruas, ajuda-me...!” Quando retornámos à sala um dos presentes, médico de profissão, acabara de declarar o óbito.


Joshua M.

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