sexta-feira, 30 de dezembro de 2011


Por mais anos que viva...

Os tempos eram outros. Nós éramos outros. A vida era outra. Vivíamos o tempo da nossa infância, estávamos isolados do mundo dos adultos mas sabíamos de cor o nosso mundo interior. Éramos – tentávamos ser – felizes na frieza e nos medos do espaço vital que nos deixavam. A felicidade passava por sermos nós genuinamente, por derrubar as fronteiras mentais que nos queriam impor. A sociedade crescia, nós crescíamos com ela.
Os tempos eram outros. Havia guerra, tinha havido guerras, havia medo, havia fome. Faltavam os proventos, o trabalho, a saúde, a sanidade, a educação. Os nossos pais calavam, mandavam-nos calar: cruzavam os lábios com o dedo a aconselhar silêncio. Os homens não tinham paz nem pão, não tinham liberdade. Alguns lutavam, trilhavam um caminho desconhecido que levava a um destino imprevisto. Um caminho em construção, onde as pedras se talhavam a cada passo.
Nós éramos outros. Sentíamos, na pele arreganhada, o frio da invernia; no corpo franzino, a fome; nos pés gelados, os buracos das botas; nas mãos e nas orelhas, a palmatória ou a vara de bambú eram o mestre-escola. Cada punição pelos nossos erros devia ser tomada como um castigo divino, uma benção correctiva. Sentíamos dor, a dor que se agravava com a injustiça, com o abuso da autoridade. Sentíamos revolta, sentíamos que haveria de chegar a nossa hora. Percorríamos a vida sem destino, sem planos, na miragem de um ideal que não era aquele que nos queriam impingir.
A vida era outra. Corríamos durante horas pelo campo, roubávamos para comer, para não ter de interromper a “reinação”. Dávamos pontapés nas pedras e divertíamo-nos. Usávamos camisolas e meias tricotadas pelas mulheres da casa, calças e camisas costuradas pelo alfaiate, botas de sola de pneumático feitas à mão pelos sapateiros. Conversávamos à lareira, conversávamos muitas horas, todos os invernos. Contavam-nos estórias antigas. Aprendíamos os mitos de um mundo velho; sonhávamos com um mundo novo a despontar na razão de cada amanhã.


Joshua M.

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