camaleão
os vizinhos cultivam pequenas hortas de
estupidez
de subsistência. nada lhes invejo,
apesar de amiúde
trocar cebolas com alguns, porções
acesas de açúcar
ou formigueiros na colher dos milagres.
isto quando
sirvo jantares de orquestra, que
requerem preceito e
rigor na forma de trajar a pele
agridoce com harpas
e violinos até aos joelhos. a música
permanece única
visita que me pede verdura na alma.
passeio a cauda
revestida a lantejoulas pela casa.
a vida faz-se em redor de aparências
gourmet, tábuas
de queijos, desejos fumados, receitas
de encefalopatias
multiformes e multicolores e o
contraste em tons de
cliché no escorbuto e na subnutrição
televisiva. pára
de me lembrar que a morte é a
verdadeira cozinha de
fusão! pára de me lembrar seja do que
for! às vizinhas
devoto-lhes mãos pelas coxas
escorregadias, e é tudo.
sim, é tudo. pelos corredores
demora-se o odor grosso
a sexo e fritos acabados de fazer.
ah quem dera voltar à casa que sonhei
com vista para
a pena capital. esta vida é tudo tão
depois. assomamos
à varanda como se houvesse em nós um
músculo que
quer espreguiçar-se e, então, são
colinas a ir-se embora,
debaixo da língua amor, colinas que
desaprendemos por
causa da rarefacção da altitude, cada
vez mais embora,
dão lugar a novos vizinhos, moram
longe. os cigarros
agora são crime de fogo-posto, já não
se deixam mais
cavalgar pela poesia, dão coices nas
estrelas.
os vizinhos depositam luxo nos
contentores suculentos
da separação. no fim da tarde trocam
campainhas, para
a fotografia. e conversam,
sociabilizam. lavam os carros,
como pilatos. assinam a vida de cruz.
banham-se em café.
criam animais de cativeiro azul. ao
domingo inventam lixo
nos outros dias inventam domingos. têm
jardins penteados
geometricamente. escondo-me na
folhagem. sou imune à
solidão alheia. na entrada do prédio
afixaram avisos sobre
a próxima manutenção do elevador da felicidade. sempre
a próxima manutenção do elevador da felicidade. sempre
encravado, a semana passada chamei o
piquete.
Renato Filipe Cardoso
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