Sem res-sentimentos
“És sempre a mesma coisa!”,
disse-lhe eu muito irritado. Ela indignou-se, achou
injusto que a sentenciasse assim tão sumariamente – “como podia alguém que a amava ser tão crítico
e administrar um acicate psicológico tão negativista!?”
Estávamos para ali atirados os dois a arguir razões de que nenhum
de nós dispunha, ambos deixáramos de ter razão antes de todas as
palavras em que nenhum de nós foi racional. O nosso último reduto
era unicamente a falta primeira de razão do outro; e essa era a
nossa razão mais segura. Dissemos coisas que não devíamos, e
ficámos mudos ao perceber que a voz pode ser uma bomba com um efeito
nuclear e letal, se transmitir por palavras as ideias com a carga de
urânio e plutónio certa. O rastilho de uma bomba sentimental
acende-se com motivações pouco razoáveis, com mágoas que caem no
estômago como indigeríveis pedras e por ali ficam alheias aos
porquês do afecto. Discutimos, até que as palavras se nos azedaram
nos lábios crus. Zangámo-nos veementes, inamovíveis. Achámos que
era melhor cada um de nós seguir o seu caminho, separámo-nos
verbalmente. O vazio dividia os nossos mares, para deixar passar uma
torrente de diferenças insanáveis, tal como na metáfora de Moisés.
E por ali acabámos tombados na promessa de queimar o futuro que
julgávamos não ter, deitados numa insónia em quartos separados.
Fiquei algumas horas sem conseguir a reparação do sono que previa
agitado. Passei a atenção por um programa sobre o Maio de 68 e não
pude aguentar mais tempo separado dela. Subi ao seu quarto,
acordei-a com beijos, abraçámo-nos, chorámos ambos nervosamente
sentidos, sentindo na boca o sabor de uma perda plausível.
Despertámos para a ternura, tomámos um chá e comemos torradas. No
dia seguinte, fomos até à beira-mar passar o fim-de-semana, como que para
fugirmos da explosão de emoções que naquela noite tinha deflagrado
nas nossas mentes doridas. Viajámos juntos como se fosse a primeira
vez, levando na mala a certeza de que os sentimentos são coisas
demasiado importantes para se aventarem como coisas.
Joshua Magellan
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