quarta-feira, 2 de maio de 2012

SEMANA DA LUSOFONIA (II)


A BALADA DO CADELÃO ROUCO

A garota acabava de encerrar uma dança enquanto outra apenas começava. Tumultuada e sangrenta, a dança das cadeiras e das garrafas voando encontrava alvos aleatórios entre os clientes desavisados. “Nada pessoal”, diriam, se além de voar também falassem. Era sempre assim com os frequentadores daquele bar: amigos, amigos; desentendimentos à parte. Desentendimentos marcados por costelas fraturadas e traumatismo craniano, por sinal. E em meio ao mar vermelho-violência estava ele, aquele Moisés inabalável; o profeta do caos que, cantando o refrão de “Não diga que não avisei”, despachava o corpo do violão impiedosamente contra a horda de arruaceiros.
Lamentava muito ter de agir daquela forma, afinal, era o quarto instrumento posto a perder somente naquela semana. Cada vez que lembrava do prejuízo que nem a confusão o fazia esquecer se enfurecia ainda mais, queria ter em mãos algo apropriado - como a espada ou a maça dos cavaleiros medievais, por exemplo – mas, em vez disso, teria que se contentar com o pedestal do microfone e seu kit de apresentação.
Os efeitos eram igualmente devastadores. Potencializados pela fúria selvagem, revelavam fins terapêuticos, no fim das contas, servindo de consolo para a frustração que sentia ao ver a canção inacabada sem esperança de se completar. É bem verdade que parte da culpa cabia a ele mesmo e por incrível que pudesse parecer estava conformado com isso. As outras partes ficavam a cargo dos bêbados encrenqueiros e da falta de seguranças no local.
Aquele ambiente era terra de ninguém, o último resquício dos saloons de faroeste; lá os desajustados faziam leis para os ajuizados obedecerem - o problema é que não haviam ajuizados (e se houvessem permaneceriam do lado de fora, a vários metros de distância). O excedente da penitenciária municipal batia ponto na casa noturna, os aspirantes a marginais os seguiam e dirigiam-se todos para aquele terreno baldio onde a sociedade despeja seus restos.
Como músico, o amor à arte tinha seu lugar de honra, obviamente; no entanto, sua simpatia pelo ofício não se definia por esse termo – amor, para ele, em qualquer formato que pudesse se manifestar, era coisa de gente afrescalhada (evitava a todo custo pensar em ser confundido com esse tipo de pessoa). O desapego dos bens materiais tão comum aos genuínos artistas, porém, ainda era virtude que não fazia questão de cultivar.
As paredes manchadas de sangue, as portas e divisórias quebradas, os vidros e espelhos partidos e todos os demais estragos, em circunstâncias diferentes, seriam motivo de preocupação, mas quem disse que ele era um empresário típico? Enganava-se quem o via como simples proprietário do estabelecimento – e por ele tudo bem que estivessem convencidos dessa imagem. Os negócios escusos e o acordo com a prefeitura (cuja política de segurança pública se resumia em investir na manutenção constante daquele “centro de lazer”) garantiam suas reservas de tal maneira que não tinha por quê se desesperar.
Com a rapidez de um passe de mágica o bar estaria de pé novamente, funcionando a todo vapor, como das tantas outras vezes. E novamente as moscas se reuniriam em torno do estrume do cavalo do bandido. Desde os tempos em que liderava rebeliões no presídio as moscas se juntavam ao seu redor, não foi à toa que em detrimento aos apenados mais exemplares justamente ele tivesse a pena “revista”. Para quem se espremia numa cela imunda abarrotada de vermes mal-cheirosos a liberdade condicional gerenciando a boite era como prestar serviço comunitário, um verdadeiro “upgrade” na carreira.
Mesmo com todas as regalias o Cadelão Rouco não estava feliz. Faltava uma última “realização”. Finalizaria “Não diga que não avisei”, nem que para isso tivesse que passar por cima de vários cadáveres… de desavisados.
 
 
Rinaldo Leriano (Brasil)

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