sábado, 16 de junho de 2012

Crónica Benzodiazepina



O amor nunca é demais

A minha cadela está muito mal. Está muito doente e tem mais de dez anos. Desenvolveu uma coluna vertebral psicológica e esqueceu-se da real, e com isso foi perdendo sensibilidade nos membros posteriores que agora arrasta penosamente. Quase não ouve. Os olhos belos e meigos estão baços e pouco devem ver. Os pelos do focinho estão da cor dos cabelos de um ancião. Treme muito. Volta e meia, ladra, chegámos à triste conclusão que é de dor. Nos próximos dias vamos dar-lhe um medicamento que a alivie das dores, depois vamos fazer de conta que somos o deus todo poderoso, decidir que a qualidade da vida já não é suficiente e levá-la para uma injecção misericordiosa.
Ontem sentei-me ao fundo das escadas que ela já nem tenta subir, de forma que ela pudesse pousar a cabeça no meu colo. Estivemos a ver o pôr-do-sol.
Eu nunca menti à minha cadela. Acredito que ela também nunca me mentiu. Se lhe dava para arrancar uma fralda cheia de cocó dum saco de lixo para depois a desfazer, não tinha pudor em fazê-lo à minha frente. Nunca vi, nesses e noutros episódios, motivo para gostar menos dela; e ela parecia ser sabedora do mesmo amor incondicional.
Nos dez anos que a Corkie me acompanhou, amizades se fizeram e caíram nos esquecimento, paixões de Primavera, amores de Verão, Outono e Inverno. Relações alternativas, familiares e tudo o que não me recordo, veio e foi. A Corkie foi indiferente a tudo. Mantendo-se fiel apesar de todas as minhas variantes, todas as minhas asneiras, todas as minhas hesitações.
O amor nunca é demais. Demasiado é o que se pede em troca.


DuArte

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