terça-feira, 26 de junho de 2012
DIA MUNDIAL DA LUTA CONTRA A DROGA - 26 de Junho de 2012
Amanhã é Domingo
O diabo é sedutor, e a sedução aparece como seu atributo básico. Cativa o homem para convertê-lo em seu próprio cativeiro. Neste sentido, o diabo é mais sedutor do que opressor.
Mia Couto
Andávamos na merda há uns dias. Havia quase uma semana que não encontrávamos “produto” em lado nenhum, as dores começavam a moer o corpo e a mente não tinha ar, recusava-se a pensar. Todo o esforço era dirigido ao objectivo encontrar uma dose de “branca”, ou de “cavalo”, ou lá o que fosse, desde que nos disparasse da nossa mente para fora. A droga rareava no mercado, uma série de rusgas sucediam-se, a promessa de limpeza do Casal Ventoso de todo o lixo material e humano que a droga trazia desta vez chegava avassaladora. Passámos na Curraleira, no “Vinte e oito de Maio”, na Cova da Moura, mas apenas encontrámos umas cenas maradas, com muito mais “corte” que “produto”. Aquela porcaria derretia-se como plástico, escorria mal lhe chegávamos o calor do isqueiro, nem dava para fazer “base”. No dia seguinte, por sugestão da Sandra, resolvemos passar pelo Bairro da Ajuda, com pouca esperança, mas levados a toque de caixa pela ressaca. Fomos à “casa da velha”, lá sempre paravam alguns “dílares” fugidos às rusgas dos bares e aos riscos maiores da distribuição de rua, onde, apesar de tudo, o negócio era mais rendoso. Quando entrámos, o filho da velha, o Júlio, diz-nos que o “homem”, o Espanhol, já estava à nossa espera havia um bom bocado. E mais: "o Piriscas era um merdoso"; e o Espanhol, quando o apanhasse, lhe ia “fazer a folha em menos de um fósforo". Tinha ficado de estar lá haviam mais de duas horas e ainda não tinha aparecido. O Espanhol estava fulo, estava capaz de lhe dar um tiro, de cinco em cinco minutos repetia: – Aquel cabrón de mierda siempre está retrasado, le voy a hacer comer la nieve toda por el culo! Enquanto o Júlio nos ia fazendo o relatório da danação do castelhano, fomos andando para a cozinha, ao som da voz grave e catarrosa dele praguejando contra o Piriscas. Quando me apercebi do que estava prestes a acontecer, já era tarde. Empurrado pelo Júlio e pela minha companheira, em lidas de ressaca, franqueei as portas da cozinha. O Espanhol dirigiu-se de imediato a mim, mirou-me com faíscas de lume nos olhos e inquiriu-me:
– Donde, coño, esta aquel cabrón del Piriscas, que ya lo mato?
A minha companheira, a Sandra, tomou a dianteira e começou a falar. Explicou-lhe calmamente como o Piriscas, depois de uma espectacular fuga, conseguira esconder-se numa barraca no Bairro da Boavista, mesmo debaixo das barbas da polícia. Estava agora acoitado em casa do cigano, do Nacho, o homem que tinha feito o contacto e que aguardava a sua percentagem. A Sandra respirava agora fundo, enquanto esperava uma reacção do Espanhol, que entretanto acendera um cachimbo atulhado de “base”. Fumou até queimar a impaciência, depois perguntou-lhe:
– Tienes las pelas contigo?
Ela acenou que sim, apontando para a bolsa a tiracolo; e ele abrangeu-lhe uma embalagem de plástico, sensivelmente do tamanho e volume de um dicionário. Trocaram o pacote da mercadoria pelo envelope, que o Espanhol se apressou a abrir. Lá estavam um maço de notas de dólar e um pequeno papel que o Espanhol leu avidamente. Contou o dinheiro com os olhos, sorriu com ar aliviado, e rematou:
– Muy bien, me voy a ver Nacho, el me esta esperando!
II
A Sandra quis sair dali imediatamente. Eu segui-a, depois de ter dado dois contos de réis ao Júlio e prometido voltar com um pacote de branca, como paga pelo favor. Estava atónito sem conseguir perceber o que se tinha passado. Onde arranjara a Sandra aquele dinheiro todo? Como preparara tudo sem que eu me desse conta? Como saberia ela deste negócio e da amizade do Piriscas com o Nacho? Eram interrogações que tentaria esclarecer logo que estivéssemos a salvo. Passámos pela minha casa para ir buscar algumas roupas e o pouco dinheiro que tinha amealhado. Em seguida, fomos a casa da Sandra: um dos vizinhos estava de saída e perguntou-lhe se queria ir até ao sul. Esperei junto à porta com o vizinho enquanto a Sandra subiu e amanhou um saco de viagem. Dez minutos depois estávamos a caminho do Algarve, com dois quilos de cocaína na sacola e meia dúzia de notas de mil escudos na algibeira. Ao chegarmos a Albufeira, rapidamente despedimos o vizinho, e fomos directos a uma casa de férias que a Sandra me disse ser de um amigo. Nunca cheguei a saber de quem era a casa, mas, chegados ao local, ela retirou uma chave de uma das janelas e abriu a porta. Mal entrei, corri para a casa de banho, a carência de droga desarranjara-me os intestinos, já não aguentava mais. Deixei a Sandra na sala a acender luzes e a retirar panos de cima dos móveis e dos sofás. Alguns minutos depois, quando voltei, ela já abrira o pacote do produto e, com um canivete, ia dando facadinhas na enorme pedra cristalizada e recolhendo o pó que apontava logo à narina. Já de pupilas bem abertas e com ar satisfeito, pegou no canivete e derramou mais dois ou três gramas sobre um espelho que havia entretanto retirado da parede e depois acenou-me, dando-me o turno. Acto que se repetiu vezes sem conta nas semanas seguintes, até ao colapso total. O tempo foi-se escoando por um fio de excitação, foi-nos consumindo sem que déssemos conta da sua passagem. Deixou marcas indeléveis, levou consigo toda a boa memória desses dias.
III
Só mais tarde, tarde demais, soube a resposta às minhas interrogações. O Piriscas morreu, os jornais noticiaram que tinha sido morto com seis tiros de revólver disparados à queima-roupa por uma jovem toxicodependente, depois de se terem envolvido numa discussão supostamente por motivos passionais. O cigano, o Nacho, levou um tiro numa virilha mas lá se safou depois de ter estado às portas do inferno. O Espanhol foi abatido a tiro quando, encurralado, se envolveu num tiroteio com a “bófia” do País Basco que o tomou por um “etarra”. Jurou-nos vingança até à morte, vivemos ambos com esse espectro até ele se finar.
Estou melhor de saúde agora, mas, desde que tive aquela overdose, nunca mais fui o mesmo. Já recuperei bastante, já consigo andar sozinho e já me aguento sem qualquer amparo por cerca de uma centena de metros. Éramos sonhadores e queríamos viver a vida no brilho de um cristal que nos parecia puro. Fomos os melhores amantes e um dueto imbatível, sobretudo quando se tratava de arranjarmos droga. Fomos os melhores amigos – somos. Nunca perdemos o contacto um com o outro. Sempre apoiei e visitei a Sandra, mesmo ainda sem me poder deslocar senão numa cadeira de rodas. Nos últimos anos, tenho ido visitá-la ao estabelecimento prisional quase todos os dias. Depois de termos descoberto todas as sensações fortes que a droga nos proporcionava, de nos termos encharcado de tóxicos até à insanidade, aprendemos agora a viver a doce sensação dos afectos.
Parece-me difícil crer que se cumprem amanhã vinte anos sobre aquele fatídico episódio que vive na minha memória como se estivesse sempre a acontecer. Não tenho nostalgia nem horror do passado, apenas arrependimento por não o ter vivido; agora, vivo placidamente o meu presente e espero sem nada esperar o futuro, o que ele me trouxer. Amanhã é Domingo. É uma data feliz para ambos: é o dia do meu aniversário, faço quarenta e nove anos; e é também o primeiro dia de liberdade da Sandra. Vou buscá-la à prisão de Tires logo pela manhã. Vamos passear de mãos dadas à beira-mar, até que os nossos espíritos estejam apaziguados e as ondas nos abordem serenas.
Joshua Magellan
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