Sonhos rasgados
A cozinha, quadrada e escura, tinha apenas uma pequena janela numa
das paredes de barro que um dia já haviam conhecido a alvura da cal.
Na parede oposta uma porta com postigo. Uma mesinha, cinco cadeiras
pequenas e uma bancada com louça era tudo o que havia. E uma
lareira, a um canto, onde o lume crepitava sob uma panela já muito
tisnada pelo uso. Pairava no ar o cheiro a eucalipto queimado e a
couves cozidas.
“Ouve o que te digo homem, a gaiata é de raça ruim, é malina.
Os irmãos todos trabalhando e ela querendo estudar”, desabafava a Ti
Mari do Monte, uma mulher de idade indefinida e temperamento
amargo. “Há-de abalar para a monda do arroz como os outros para
lhe passarem estas finuras. Os três mais novos não vão pôr os pés
na escola para não lhes prantarem ideias e saírem de lá a
alarvejar como esta”. O pai, sentado numa das cadeiras,
mais complacente e carinhoso, veio em defesa da filha Rosinha que,
sentada em frente ao lar, lutava contra as lágrimas. “Ó mulher, a
desgraçadita só queria estudar mais, gostou das letras... mas sabes
Rosinha, nós somos pobres e os pobres não podem sonhar", rematou
tristemente. “Sonhos?” Continuou a mãe, “nós carecemos de
dinheiro e não de cabeças cheias de vento e de letras que não
servem para nada. Quando fores moça casadoira não vai haver homem
que te pegue. Nenhum quer uma mulher bicosa como tu e que
saiba juntar as letras.” Rosinha olhava o lume hipnotizada e nas
brasas viu os seus sonhos ruírem e a réstia de esperança dar lugar
à desesperança e os dias de escola ficarem para sempre no passado.
Viu os livros que lera e os retratos resplandecentes das senhoras da
cidade nas suas roupas formosas e vislumbrou sítios que pressentia
mas que jamais conheceria. Viu os seus pés descalços sobre a geada
de inverno e os seus sapatos usados de verniz vermelho que a fizeram
ficar horas a dançar de felicidade. Viu que nunca devia ter lido um
único livro porque estes a tornaram diferente. Pressentiu que o
toque dos livros na sua alma jovem lhe fora fatal.
Missanga
Sem comentários:
Enviar um comentário