quinta-feira, 2 de agosto de 2012


Sonhos rasgados

A cozinha, quadrada e escura, tinha apenas uma pequena janela numa das paredes de barro que um dia já haviam conhecido a alvura da cal. Na parede oposta uma porta com postigo. Uma mesinha, cinco cadeiras pequenas e uma bancada com louça era tudo o que havia. E uma lareira, a um canto, onde o lume crepitava sob uma panela já muito tisnada pelo uso. Pairava no ar o cheiro a eucalipto queimado e a couves cozidas.
“Ouve o que te digo homem, a gaiata é de raça ruim, é malina. Os irmãos todos trabalhando e ela querendo estudar”, desabafava a Ti Mari do Monte, uma mulher de idade indefinida e temperamento amargo. “Há-de abalar para a monda do arroz como os outros para lhe passarem estas finuras. Os três mais novos não vão pôr os pés na escola para não lhes prantarem ideias e saírem de lá a alarvejar como esta”. O pai, sentado numa das cadeiras, mais complacente e carinhoso, veio em defesa da filha Rosinha que, sentada em frente ao lar, lutava contra as lágrimas. “Ó mulher, a desgraçadita só queria estudar mais, gostou das letras... mas sabes Rosinha, nós somos pobres e os pobres não podem sonhar", rematou tristemente. “Sonhos?” Continuou a mãe, “nós carecemos de dinheiro e não de cabeças cheias de vento e de letras que não servem para nada. Quando fores moça casadoira não vai haver homem que te pegue. Nenhum quer uma mulher bicosa como tu e que saiba juntar as letras.” Rosinha olhava o lume hipnotizada e nas brasas viu os seus sonhos ruírem e a réstia de esperança dar lugar à desesperança e os dias de escola ficarem para sempre no passado. Viu os livros que lera e os retratos resplandecentes das senhoras da cidade nas suas roupas formosas e vislumbrou sítios que pressentia mas que jamais conheceria. Viu os seus pés descalços sobre a geada de inverno e os seus sapatos usados de verniz vermelho que a fizeram ficar horas a dançar de felicidade. Viu que nunca devia ter lido um único livro porque estes a tornaram diferente. Pressentiu que o toque dos livros na sua alma jovem lhe fora fatal.


 Missanga

Sem comentários: