quinta-feira, 1 de abril de 2010


Bela Mas Pouco

Cavalgava à velocidade da luz, mas ainda não lhe parecia suficientemente rápido, a julgar pela força com que castigava o seu corcel com os estribos afiados. Um estranho pavor ensombrava o seu belo rosto. Em flashback tentava recapitular as suas acções. Tinha feito tudo a preceito. Matara a bruxa má, após violento duelo. Escalara a torre mais alta, e beijara a sua prometida com todo o seu amor, fervorosamente.
Não conseguia esquecer a visão daquele ser tão frágil quanto belo, ali deitada. Observara em hipnose os movimentos do seu peito, aquela respiração profunda e abandonada era a única coisa que o assegurava não se tratar ela de uma estátua de pedra ricamente decorada. Assim, sem guarda, totalmente exposta pelo seu estado de inconsciência, de pureza cândida, assemelhava-se a uma criança desprotegida. Seus lábios carnudos atraíram os seus como um íman e para seu deleite, ao mais leve toque dois olhos, de um azul profundo se abriram como dois lagos iluminados pelo sol. A Profecia cumprira-se.
Bela deambulava livremente pela terra dos sonhos. Já fora cão, gato, peixe, já conhecera todas as constelações do universo, também conhecera o amor, profundamente e em total liberdade. Assim era há já dezoito anos. A sua forma mudava a seu belo prazer como se fosse feita de nuvens. Voara com águias-reais, caçara como uma pantera durante a noite, já tivera até filhos que nunca choravam e eram eternamente pequenos. Era feliz no sono morno que constituía toda a sua vida. Um dia, algo de estranho aconteceu, um calor vindo do além inundara os seus lábios. Uma espécie de febre aqueceu lentamente o seu sangue, como se de um veneno se tratasse, obrigando-a a abrir os olhos para a fonte desse estímulo, para outro mundo. Foi com um espanto atordoado que se apercebeu da face colada à sua de um homem extremamente belo. O calor da sua pele contaminava o seu sangue, mas assim que este se distanciava um pouco, à semelhança de um fósforo que após ser acendido o fogo diminui de intensidade, também o seu corpo pela primeira vez experimentava o frio. Bela, que nunca antes tinha sofrido qualquer estímulo desagradável, lutava pelo recobro da sua consciência naquele novo mundo e pelo domínio do seu próprio corpo, agora de carne e osso.
Já haviam passado umas horas quando conseguiu colocar pela primeira vez um pé no chão. Durante esse tempo, o Príncipe nunca a largou, tratando-a zelosamente. As dores foram imensuráveis, mas resistiu. Lentamente, materializava-se.
Cheio de ternura assistia ao milagre do renascimento da sua amada. Bela ainda não proferira uma única palavra. Saberia falar? Apesar de desperta ainda não recuperara totalmente os sentidos. Com todo o seu amor velava-a tentando aquecê-la. Com o coração aos pulos assistiu aos seus primeiros passos. Sempre silenciosa e frágil, encantadora. Sentaram-se então, ele a seus pés, onde expressivamente e sem a certeza de que Bela estaria a compreender, explicava-lhe toda a história da bruxa má, da decisão inquieta de seus pais, o rei e a rainha, do zelo das fadas… Subitamente, reparou que os olhos azuis da sua amada se haviam esverdeado, entre as suas delicadas sobrancelhas um vinco se formou, e de seus lábios carnudos uma voz profunda se soltou: Ide-vos... ou arrancar-lhe-ei o coração com as minhas próprias mãos!

Lucinda Gray

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