sexta-feira, 16 de abril de 2010


A Origem dos Afectos


Estavam os dois sozinhos, mas não se conheciam há muito tempo, havia ainda algum embaraço no trato entre ambos, pois ela chegara muito depois dos dias. Estavam ambos numa praia, uma praia deserta, uma daquelas praias frequentadas apenas por naturistas, porventura. Na extensão do areal não se topava mais ninguém, para além destes dois seres completamente nus que se miravam mútua e ternamente. Eu olhava para eles, fixo, mas eles pareciam nem sequer se dar conta da minha presença. Ignoravam-me, como se não existisse. Eu não parava de olhar para o olhar deles, que, ávidos um do outro, se entreolhavam: ela perseguia os movimentos dele, admirava o seu aspecto rude e selvagem; ele tinha o olhar preso ao dela, parecia extasiado com a rara beleza daquela criatura. Ela trazia numa das mãos uma maçã, esticou-lhe o braço, ele agarrou o fruto e trincou-o, devolveu-lho e ela trincou também e assim socializaram durante alguns minutos, até ao fim da fome e dos frutos. Nos olhos dele e dela despontavam mãos e nas mãos nasciam miradas que tocavam e eram tocadas. As primeiras carícias foram subindo e descendo o peito dele , desgrenhando e arrepiando – a sua pele recolhia-se ao toque, enrugava-se. As mãos toscas dele passeavam sobre ela, no rosto, ao lado do carinho dos olhos dela.
Um raio parecia ter caído sobre os dois, e, depois de se terem tocado e dado por todos os lugares durante horas a fio, sem tréguas e sem preconceitos, na ressaca, ela dirigiu-se de novo a uma macieira próxima e trouxe mais um regaço cheio de maçãs, que lhe estendeu e partilharam. Comeram ambos até ficarem saciados. Adormeceram. No meio do sono ele despertou inquieto e lançou o olhar na minha direcção, alertado pelo meu pigarrear. Os cigarros que fumara sem parar e toda a cena que havia presenciado, deixaram-me a garganta seca. Rastejei por alguns metros colado ao chão até desaparecer por detrás de uma duna. Ele escutou o meu rastejar e acalmou-a, dizendo-lhe que era apenas uma serpente, que havia logo fugido só ao sentir os seus passos. Voltou ao seio do abraço dela, cingindo-a no abraço dele, respiravam um no outro o odor de um e de outro, e os dois eram um só. E recomeçou o frenesím dos corpos em festa. Ele acendera uma fogueira ao lado, no meio dela; e o fogo dele e dela ateavam as sombras trémulas da carne que se esvaíam dos movimentos dos seus corpos cálidos e sedentos – até a lareira se fazer em brasas lentas e adormecerem de novo, com as bocas coladas pelos lábios adocicados das maçãs.
Aos primeiros gemidos dela voltei a abeirar-me da linha da duna e ficar a assistir a tudo. Não me movia qualquer instinto de voyeurismo sexual, apenas a curiosidade e o olhar preso nos olhos e nos gestos de afecto que ambos davam um ao outro. O destino interpusera-se nos meus sonhos e fazia de mim a testemunha privilegiada de uma casta cena entre dois amantes que há muito se haviam separado e agora se reencontravam, se uniam enfim, para mitigar uma saudade de séculos. Nem todas as histórias podem acabar com a morte de amantes impossiveis. A realidade de tudo o que presenciara (presenciava ainda) levava-me numa viagem por um outro mundo, um mundo mais puro, mais humano, onde as uniões dos seres eram eternas, onde as histórias eram o oposto dessas histórias tristes: não tinham fim e eram sempre o início. Eu sabia-o...
E voltei a saber deles alguns anos mais tarde, por acaso, numa notícia num jornal: haviam sido encontrados empedernidos de afectos, colados um ao outro num abraço, adormecidos; tinham 17 mil anos e eram feitos de barro rijo e assim se haviam conservado por milénios sob a poeira do deserto. Chamaram-lhes Adão e Eva, e, disseram os sages, são um dos mais bem sucedidos casos de dois, porventura o mais conseguido da humanidade.

Joshua M.

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