quarta-feira, 7 de abril de 2010


A Mulher Vassoura

Perto da minha casa, a casa que não é minha, a casa onde durmo, pelo menos até um dia. Perto dessa casa, existe a rua mais limpa. Todos os dias uma mulher esfrega a vassoura no alcatrão, nos corredores de água, nos riscos que desenham o passeio.
Aquela mulher de traços assexuados, rosto vazio, queimado pelo sol e pelo frio, também ele varrido pelo vento, mantém a rua tão limpa e imaculada de despojos, que ninguém, por mais rápido ali passe, pode ficar indiferente.
Todos os dias que me lembro, e apenas nesses, ela está lá. Apetece-me dizer-lhe: - Pare um pouco, por favor! Por vezes dá tanta pena. É tanta a vontade de a meter no carro, de a enfiar em casa, fazer-lhe um chá, sentá-la no sofá a ver uma novela da "TVI".
Um dia, no ano passado, quando o Outono já dava a mão ao Inverno, vinha de volta para casa, de carro. Chovia que Deus a dava. Aquela chuva que só permite que se veja com as escovas na velocidade máxima. Uma humidade terrível. Ao desfazer uma curva, lá estava ela, ao fundo, indiferente à tempestade. Decidi parar uns cinquenta metros antes. Debrucei-me sobre o guiador, a olhar aquele varrer compulsivo. O que fiz a seguir é segredo até para mim. Saí do carro. A chuva acalmara um pouco. Dei os passos que nos afastavam. O cabelo molhado escorria-lhe copiosamente pelo nariz. A roupa pesada colava-lhe aos ossos. A expressão era sempre a mesma. A mais pura convicção da ausência. Dois ou três carros, devem ter passado entretanto, espalhando spray no espaço, abafando o som repetido da vassoura a esfregar. Ela nunca tirava os olhos do chão, sempre muito abertos. Os lábios tremiam e pareciam querer dizer algo. Inclinei-me para ouvir o que dizia. Quando já estava demasiado próximo para não poder passar despercebido, a mulher vassoura contornou o meu corpo como se fosse um poste, sempre a varrer.
É horrível a loucura. É horrível quando nos afastamos tanto, que já não sabemos como voltar para casa.
Eu voltei para o carro a pensar na minha sorte. O seu azar. A condição a que alguns estão condenados, e, outros tantos, quase todos, parecem não ver como se afastam todos os dias um pouco mais para longe de si mesmos. Afundei-me no conforto do banco e esperei que ela desaparecesse no espelho da porta do passageiro. A varrer. Ela nunca pára de varrer.
Hoje, quando fazia a viagem para o trabalho, lá estava ela. Chega a ser reconfortante, vê-la varrer num dia de sol.
É um padrão - pensei. Eu. Também eu, em momentos de insanidade emocional, tenho tendência para reorganizar a minha vida. Arrumar os meus livros, os meus CD’s. Pagar as contas em atraso. Enfiar numa pasta os documentos que espalhei por todos os lados. Arrumar a ideia que as minhas antigas namoradas fazem de mim, qual Earl a limpar o seu Karma. A Xana, quando destrambelha, arruma o quarto, o roupeiro, tem vontade de atirar metade das coisas pela janela. Outros conheço assim, e são tantos.
Naquela mulher que varre, talvez ainda exista um pixel de memória consciente no seu cérebro. Mas, é tão pouco e tão ténue, e é tal o seu esforço e desespero para trazê-la de volta, que aquele neurónio, o seu verdadeiro Eu, mais não faz, do que varrendo, tentar pôr ordem na sua cabeça.
Ela já não vai lá. Eu posso. Podemos quase todos, mas ela não. Aquela mulher tem um filho. Ultimamente o filho acompanha-a com um apanhador na mão.
Disse-me a minha sogra, que quando os homens da câmara vão buscar os contentores do lixo, aquela mulher que faz do varrer a sua vida, enlouquece.
- Mais!? - Disse-lhe eu - quando eles vão, vem ela. Despeja litros de lixívia no chão, por cima da água mal cheirosa que escorre dos sacos. E esfrega, esfrega, esfrega, esfrega... Como quem lava a alma.

Duarte

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