terça-feira, 29 de maio de 2012

Palavras Versadas



camaleão

os vizinhos cultivam pequenas hortas de estupidez
de subsistência. nada lhes invejo, apesar de amiúde
trocar cebolas com alguns, porções acesas de açúcar
ou formigueiros na colher dos milagres. isto quando
sirvo jantares de orquestra, que requerem preceito e
rigor na forma de trajar a pele agridoce com harpas
e violinos até aos joelhos. a música permanece única
visita que me pede verdura na alma. passeio a cauda
revestida a lantejoulas pela casa.

a vida faz-se em redor de aparências gourmet, tábuas
de queijos, desejos fumados, receitas de encefalopatias
multiformes e multicolores e o contraste em tons de
cliché no escorbuto e na subnutrição televisiva. pára
de me lembrar que a morte é a verdadeira cozinha de
fusão! pára de me lembrar seja do que for! às vizinhas
devoto-lhes mãos pelas coxas escorregadias, e é tudo.
sim, é tudo. pelos corredores demora-se o odor grosso
a sexo e fritos acabados de fazer.

ah quem dera voltar à casa que sonhei com vista para
a pena capital. esta vida é tudo tão depois. assomamos
à varanda como se houvesse em nós um músculo que
quer espreguiçar-se e, então, são colinas a ir-se embora,
debaixo da língua amor, colinas que desaprendemos por
causa da rarefacção da altitude, cada vez mais embora,
dão lugar a novos vizinhos, moram longe. os cigarros
agora são crime de fogo-posto, já não se deixam mais
cavalgar pela poesia, dão coices nas estrelas.

os vizinhos depositam luxo nos contentores suculentos
da separação. no fim da tarde trocam campainhas, para
a fotografia. e conversam, sociabilizam. lavam os carros,
como pilatos. assinam a vida de cruz. banham-se em café.
criam animais de cativeiro azul. ao domingo inventam lixo
nos outros dias inventam domingos. têm jardins penteados
geometricamente. escondo-me na folhagem. sou imune à
solidão alheia. na entrada do prédio afixaram avisos sobre
a próxima manutenção do elevador da felicidade. sempre

encravado, a semana passada chamei o piquete.


Renato Filipe Cardoso

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