sexta-feira, 4 de maio de 2012

SEMANA DA LUSOFONIA (IV)


Dona Preta

Andávamos em grupo no bairro, não havia variedade de cores, mas nuances de tons sóbrios, neutros, chão de barro que, em dias de chuva, tornava-se lama acesa; casas de tijolo escuro avermelhado, de barro, outras vezes, de madeira velha; janelas acinzentadas e desbotadas. Naquela época, não se falava em reciclagem ou reutilização, e nós, de alguma forma, catávamos o lixo da cidade para construirmos nossa moradia ou vasculhávamos entulhos para adquirir enfeites para nossas casas. Passávamos despercebidos e não havia diferença entre nós, havia solidariedade, uma grande família, cujos únicos prestígios eram o afeto mútuo e a história de nossos ancestrais contada de geração a geração.
Lembro que nossas brincadeiras eram inocentes. Corríamos pelas ruas da Liberdade, inventávamos carrinhos de garrafa, de rodinhas velhas amarradas em pedaços de madeira, todos os nossos brinquedos eram fabricados por nós mesmos. Há momentos em que a necessidade provê a criatividade. Também brincávamos de fura-pé, peão, gude, pipa, futebol, então minha avó gritava da janela “menino, vem comer”. A mesa não era farta, mas o rumo da prosa era de um sabor inesquecível, e quão vasta era nossa presença, os doze irmãos. Papai contava sempre a mesma história, minha bisavó era índia e fora caçada por meu avô português, quando teve seus longos cabelos tocados por ele, cortou-os. Não entendíamos muito bem o significado daquele ato, de minha parte, pensava como minha bisa deveria ser uma mulher selvagem. Meu pai era um exímio contador de histórias, com direito a acréscimos e adornos.
Dona Preta, assim era conhecida a lendária mendiga do nosso bairro, movia-se com dificuldade, era cega, a vida dera-lhe a morada no escuro e a escuridão do olhar. Ninguém sabia o paradeiro de seus familiares, era unânime que todos a consideravam chata, palavra bastante indefinível, mas correspondente aos seus atos incômodos. Perambulava num resmungar nada silenciado, sandálias gastas no arrasto do pé em meio às vielas de paralelepípedo. Uma dor de não se caber o quê fazia de suas mãos um segurar de cadeiras, sentava. Era o início do ofício da esmola, a mão estremecia em pesar, chocalhando de um lado a outro, a voz quietava doce e melancólica, até que gritavam de algum lugar: - Dona Preta, esse é preto. Era o suficiente para empunhar sua bengala e mirar ao acaso, com golpes repetidos no ar. O donatário nem sempre era um ser caridoso, era troça, algumas vezes perversa, outras, inocente. A notícia circulava e muitos riam em suas casas, acentuados eram os olhos circundantes. E não importa se os olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo.


Manuela Barreto (Brasil)

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