sábado, 10 de abril de 2010


Conchas Desabridas

Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes e vejo uma água límpida numa concha marinha. É sempre um corpo amante e fugidio que canta num mar musical o sangue das vogais.
Ramos Rosa

Dormito levemente, o sol da manhã vai lavando com rasgos de luz os olhos da noite, desponta um novo dia e eu dormito. Cada vez menos pesado, sigo pela matina inerte e conchego a coberta. Imagino o sabor dos nossos beijos e imagino-te, cálida, a meu lado, carne que acende a alma para violar os espíritos diminutos: são os corpos que se perfilam atentos e se unem na amálgama do sono, ávidos de roçar fantasias incontáveis; os pés que se encontram e se afagam ao fundo dos panos; as mãos, que, com ripanço, contam os cabelos desgrenhados, soltos pelas almofadas, e tenaz se agarram aos teus seios e te abrem fenda; as velas, que permanecem acesas como monstros impassíveis, a falarem dos nossos segredos, quando nos entregamos aguilhoados pelo vulto fantástico das sombras; os odores fluidos a escorrer pela prontidão erecta, a espada que te fere os lábios a cada estocada e te arranca dolentes vagidos de prazer; as línguas nossas que se enleiam, únicas, como polvos obstinados contra a rede que os tira à vida, em êxtase... São os nossos sentidos, ambos mergulhados na vertigem do abismo; e tu que, com langorosa assertiva, me cicias: - Quero-te….
Assim velamos, assim fazemos o nosso mar alteroso, até à exaustão de ficarmos presos um no outro e adormecermos como conchas, um contra o outro, fechando todas as pérolas que a noite despertou. Acredito agora, ou sonho, que nunca saíste daqui, que estás ainda memória presente no odor das madrugadas mais reais que em mim despontam.

Joshua M.

1 comentário:

Ana Paula Pinto Lourenço disse...

Muito bonito!
Gostei muito deste relato que usa, na descrição crua de um acto carnal, toda a poesia dos sentidos, dos pressentimentos e dos sonhos.
Parabéns!