terça-feira, 17 de agosto de 2010

Palavras Versadas

 
Piolho

A menina sabe que pisca os olhos em tiquetaque obsceno?
Bem o sabe. E quer. Não por esgar de elementar pornografia,
tão-pouco por convidar intermitentemente à euforia,
mas porque o mundo acaba no seu olhar pequeno
e consome no jugo das pálpebras a obstipação do dia;
enquanto eu, apenasmente um entupido rapaz
a escrevinhar o mar impossível mergulhando na cidade
numa esconsa mesa de café,
sou incapaz
de libertar na tinta a onda terrífica que me invade
e perco o pé
e insisto em ideias que encontram ricochete na miopia.
Menina, tantos livros que traz...
Vejo que lê os filósofos... veio em busca da verdade?
Partidária da fé ou das conservas em vácuo da universidade?
Não tarde, diga lá quem é.
Alguma vez lhe tingiram de amoras o rodapé?
Como ama, como se chama, como inflama a sua idade?
Costuma ir ao estádio ver chutar a liberdade?
Aproveita as horas vagas para vaguear no salão da dança?
Desacredita da política, que os políticos só enchem a pança?
Tem uma avó paralítica com verrugas na herança?
Decorou Cervantes na quixotesca fase de criança?
Ah!, sente saudades da maternal redoma adornada de faiança
e aos domingos o porco, a providência, a missa, a matança.
Menina, afaste-se da esperança!
(Acaba de entrar na limitação urbana com esplanada para o infinito)
Abafe o seu grito
que não lhe adianta gritar.
Respire fundo, outra vez, e outra, aproveite para respirar.
Aqui cada um vive aflito
imaginando que respira, inventando o próprio ar
como se o ar não fosse um mito.
Eu transpiro essa aflição em cada poro, bem admito.
Mas este café é em todos os hemisférios o único onde o
mundo ainda brilha,
se quiser pode chamar-lhe a ilha
onde atracam erráticos navios quase prestes a sufocar.
E por falar em boca, o seu olhar,
que de pestanejar bruxuleante como quem beija
pode bem beijar como quem pestaneja.
Seja como seja,
afigura-se-me obsceno esse seu viço
e por isso
eis que me atrevo a confessar como é em mim pleno o feitiço,
o quanto desejo obsequiá-la voltando-lhe a página enquanto estuda
e portanto não me importa que leia, releia e permaneça muda.
Basta-me o seu piscar castiço,
a maneira omnisciente e poderosa de obliterar o mundo inteiro
com o seu piscar incessante de miúda,
esse olhar sobranceiro
de quem decide inundar uma viela ou implodir uma praça;
de quem encerra lenta e profundamente a luz como uma ameaça
que o tempo presente não despedaça;
de quem por mera pirraça
mas com intangível graça,
pode decidir no calendário a próxima desgraça
com um simples piscar de olho.
A menina pisca obscenamente e apresenta-se assaz singela
mas não se iluda com a fugaz aguarela:
pode esmagar com a unha o piolho
que embate e insiste contra a vidraça
ou abrir a janela
e confiar na sorte para que de si faça e desfaça.
mas, sabe?, ao contrário do que lhe disseram a vida não é assim tão bela,
— infelizmente ela
resume-se a uma breve piscadela
que dói e nunca mais passa.


Bill enGates

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