sábado, 12 de novembro de 2011
OS CINCO SENTIDOS - VIVER COM TODOS... (VI)
Em todos os sentidos
A catástrofe era previsível, eminente, o sol estava cada vez mais próximo e era inevitável que desabasse antes da lua nova. Eles sabiam que o dia chegaria, mais dia menos dia, mas não estavam certos quanto à data. O evento fora aprazado há anos entre todos. Chegara o momento, o dia esperado. Todos o aguardavam com um misto de impaciência e nostalgia. O banquete estava a ponto de servir, a mesa posta a rigor, com todos os luxos e mordomias à disposição dos convivas que começavam a chegar. Eram apenas um grupo de amigos que, a si próprios, tinham prometido realizar uma festa sem fim. Uma festa até ao fim dos dias.
A Visão de Pan
No início de Maio, quando as terras transpiram as derradeiras águas de inverno, ainda os prados estão viçosos. A primavera cobre os campos de flores, pinta-o de todas as cores e matizes. Pela hora do meio-dia, o astro atingia o zénite sobre o centro do terreiro onde haviam improvisado a grande mesa. A paisagem estendia-se tranquila e verdejante. Os raios de sol ofuscavam o olhar deixado no encanto da paisagem. O calor derretia as silhuetas dos que ao longe se iam avistando, dos que se iam fazendo perto do fim do caminho. Voltavam a encontrar-se, para não mais se separarem. Era bom verem - reverem - todos aqueles amigos, com um sorriso aberto nos olhos. Conhecer os amigos dos amigos, porventura novos amigos.
O Tacto de Hedoné
À medida que iam chegando cumprimentavam-se efusivamente, com beijos ternos, prolongados apertos de mão que se convolavam em abraços amigáveis, mãos batidas nas costas. Sob o sol ardente o suor ia abrindo os poros e inundando o corpo. Um conjunto de sensações sitiava a pele. A mesa do banquete convidava ao repasto, com loiças imaculadas, finos copos de cristal. A toalha era de linho áspero, ao pousar as mãos, sentia-se cada entretecer do movimento do tear, como se a pele absorvesse toda a sua história pela textura, todo o seu ciclo - de semente a pano cru.
O Olfacto de Grenouille
O respirar da natureza deixava no ar uma infinita mescla que invadia docemente o nariz. O acre do limão e do vinagre temperava-se com o cheiro adocicado das flores e do mel. O delicado bouquet dos vinhos casava por amor com o aroma da fruta madura. A sombra e o odor da tília pairava sobre a frescura da hortelã e do manjericão, do alecrim e do aloendro. O cheiro de especiarias vindo da cozinha divagava ao sabor da brisa quente do suão, mesclava-se em torrentes de ar com o odor dos perfumes da natura. Entretanto, já sentados à mesa, os convivas salivavam ao sentir próximo o começo do festim.
O Paladar de Pantagruel
Atiraram-se com ganas ao repasto por volta da hora do meio-dia, cada qual de talheres em punho, aparentando uma fome de séculos. Na mesa, havia de tudo: as melhores iguarias, a doçaria mais fina, os mais raros manjares, os néctares mais exóticos e estranhos. Num frenesi gustativo deglutiam, degustavam, sorviam, arrotavam, apreciavam. Engoliam, bebiam e voltavam a beber, a espaços, com brindes, com palavras votivas de que o prato, o vinho seguinte, seja ainda mais delicioso. A cena intercalava com o vómito de alguns, com a sesta de outros e a cavaqueira dos resistentes, que se prolongavam numa infindável degustação etílica.
A Audição de Ulisses
Por uma larga hora, apenas o silêncio cortado por murmúrios de satisfação, apenas o zumbido das moscas sob o calor estival. Na cabeça de cada um, a percussão maquinal das mandíbulas induzia ao êxtase. Como se um inaudível canto de sereias encantasse os comensais, deixando-os em transe com as suas melodias. Sem desviar os olhos do prato, sorriam como se o sol reflectido na porcelana lhes cantasse, ele próprio, metido entre coribantes, bailando ao som da flauta e do címbalo. Por vezes, pausavam para necessidades, para uma sesta sobre as ervas. E por ali se foram quedando, dominados por aquele encanto sonoro, numa folia sem tréguas.
Até perderem os sentidos. Até ao fim dos dias do sol...
Joshua M.
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