quinta-feira, 9 de agosto de 2012



Corpo Dócil

Não há quem imagine tal cena da vida cotidiana. Uma criança linda, com formação física perfeita a observar a alegria da família diante de sua chegada. Não entendia nada, nem sabia onde estava. O branco lhe excedia. Uma sombra envergava-lhe a alma. Deram-lhe o nome Zofar. Seu choro era contido, similar a um gemido, o corpo se contraía no ato, tamanha sua força. O berço estremecia. Nos primeiros dias, a mãe sentia muitas dores ao dar a mama, algumas vezes, desfalecia. Após o nascimento dos primeiros dentes, precisaram mudar a alimentação. Os primeiros brinquedos, dilacerados, terminavam no lixo. À medida que Zofar crescia, sua força se intensificava e sua mente se esvaía. Não se relacionava com as outras crianças, suas vontades próprias se sobrepunham às regras de convívio social. Os brinquedos foram substituídos, tudo se tornara o inanimado destrutível. Zofar não falava, grunhia. O que mais impressionava nele era a sua beleza, digna de divinização, um ser que incorporava símbolos opostos. A história de Zofar similava à estória de “a bela e a fera”. O espelho refletia a face límpida de uma prisão absoluta. Conter tais características como uma anomalia irreparável não era nenhum conto de fadas. Após exames médicos e pesquisas, nenhuma resposta foi encontrada. Ainda na infância, a triste criança fora acorrentada em prol da segurança de seus familiares, os quais, mesmo em tais circunstâncias, dispunham de tamanho amor por aquele estranho particular. Assim fora a existência de Zó, apelido dado por seus entes queridos. Há histórias que findam numa página, mas ninguém pode prever a temporalidade de uma realidade amarga. Este narrador compadecido diante dos fatos testemunhados retoma o fôlego para continuar a prosa.
Com as mãos e os pés atados, Zó recebia os cuidados de uma assistente, a qual lhe dava banho, trocava-lhe as roupas e lhe satisfazia fome e sede. De viver, de liberdade. Palavra esta que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Zofar não desvendou o mistério de tal vocábulo, apesar de representá-lo muito bem em condição adversa. Cresceu. Tornou-se um adolescente solitário, isolado do mundo. Acredita-se que ele tinha o seu modo de expressão, entretanto, este não condizia com os costumes da sociedade contemporânea. No período primitivo, seria cultuado como um deus ou fariam dele um caçador nato para saciar as necessidades dos mais fracos. Fruía nele o absurdo, um Sísifo às avessas. Não adquirira as astúcias para driblar o destino, o vazio da lucidez instalara-se na parte mais indecifrável do organismo humano, através do qual se transita pelo corpo social. Optou-se pela retirada das correntes. Eis o contraste que permeia o absurdo. Zofar ficava num quarto trancado e recebia toda a atenção necessária, mas rejeitava qualquer tipo de afeto mais íntimo. Há momentos em que a sina se personifica no sujeito de forma tal a não haver finitude de sofrimento. Diria o imortal Albert Camus, onde reina a lucidez, a escala de valores torna-se inútil. No homem absurdo, a loucura e a morte são aspectos irremediáveis. Ele não escolhe. Zofar, com voracidade do seu vigor, destruíra todo o quarto. Aos quinze anos de idade, fora inserido numa jaula, qual um leão absorto em meio à selva de pedra. Domesticá-lo seria um ato vil. Vivera assim até completar a maioridade, nascera desenganado, morrera tranquilo em berço de aço.


Manuela Barreto (Brasil)

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