quinta-feira, 23 de agosto de 2012



Passadas

Suas mãos silenciadas abrigavam jacintos perfumados, Jacinta sentia, a cada passo, a leveza de um tempo perfeito, de estações, de uma flor que renasce em seu esplendor, intocável e alvíssara. Mulher majestosa. O filho enredava brincadeiras, noticiando os boatos da pólis, a ele não lhe passava nada, nesse mundo cão, a impunidade anda de vento em popa e as consequências são bastante tumultuosas. Cidades nascem aqui e acolá, com muitos personagens alvejados. Você bem sabe, madre, confunde-se até fala com prosopopeia, e metem-se os pés pelas mãos. Naquele momento da minha vida, não queria me confessar, nem mesmo fazer a primeira comunhão. Sim, sei que fiz tardiamente, mas jamais me declarei uma ré confessa, não condiz com meu estado de espírito, madre, soa falso, como levantar falso testemunho sobre mim mesma, o mundo pesa nas costas, a alucinação, madre, desafia minha mortal condição, sinto-me como atlas. Atlas existe, madre? Os gregos acreditavam que sim, nós descendemos de romanos e cremos em expiação, tem gente até de reza forte que vende sua mercadoria, madre, paguei até minha dor de existir, a rezadeira disse que era encosto, coisa ruim, moça, esse nome não lhe cai bem, tem de trocar o nome, moça, atrai defunto, assombração, coisa morta, moça, tem que tomar banho de folha, a reza vai ser "braba". Fiquei assustada, madre, quem não se assustaria! Fiz tudo que a dona da reza mandou, as coisas pioraram, meu corpo foi secando feito folha que se desmancha quando pisam, não suportava uma galhofa, madre, fui ficando sisuda e indigesta. Tomei gosto pela vida, madre, uma vida distinta, distante de tudo; alheia ao mundo, alienei-me. Esse gosto insípido é meu remédio para o nada, por onde passo deixo pegadas, meu filho imaginário comunica minha caminhada e as palavras não saciam minha fome alterada.


Manuela Barreto (Brasil)

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