sexta-feira, 18 de junho de 2010

HOMENAGEM A JOSÉ SARAMAGO


O CENTAURO


Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse, era sempre uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais para trás: então, sim, via melhor a grande campanula nocturna das estrelas, o prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como sonha um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou de simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.


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O homem acordou. Sentia a angústia de não ter sonhado. Pela primeira vez em milhares de anos, não sonhara. Abandonara-o o sonho na hora em que regressara à terra onde nascera? Porquê? Que presságio? Que oráculo diria? O cavalo, mais longe, dormia ainda, mas já inquietamente. De vez em quando agitava as patas traseiras, como se galopasse em sonhos, não dele, que não tinha cérebro, ou somente emprestado, mas da vontade que os músculos eram. Deitando a mão a uma pedra saliente, ajudando-se com ela, o homem levantou o tronco, e, como se estivesse em estado de sonambulidade, o cavalo seguiu-o, sem esforço, num movimento fluido em que parecia não haver peso. E o centauro saiu para a noite.
Todo o luar do espaço se espalhava sobre o vale. Tanto era que não podia ser apenas o da simples, pequena lua da terra, Sélene silenciosa e fantasmal, mas o de todas as luas levantadas na infinita sucessão das noites onde outros sóis e terras sem esses e outros nenhuns nomes rodam e brilham. O centauro respirou fundo pelas narinas do homem: o ar estava macio, como se passasse pelo filtro duma pele humana, e havia nele o perfume da terra que foi molhada e agora devagar está secando, entre o labiríntico abraço das raízes que seguram o mundo. Desceu para o vale por um caminho fácil, quase remansoso, jogando harmoniosamente com os seus quatro membros de cavalo, oscilando os seus dois braços de homem, passo a passo, sem que uma pedra rolasse, sem que uma aresta viva abrisse outro rasgão na pele. E foi assim que chegou ao vale, como se a viagem fizesse parte do sonho que não tivera enquanto dormira. Adiante havia um rio largo. Do outro lado, um pouco para a esquerda, era a povoação maior, aquela que estava no caminho do sul. O centauro avançou a descoberto, seguido pela sombra singular que não tinha par no mundo. Trotou ligeiramente pelos campos cultivados, mas escolhia os carreiros para não pisar as plantas. Entre a faixa de cultura e o rio havia árvores dispersas e sinais de gado. O cavalo, sentindo o cheiro, agitou-se, mas o centauro seguiu para a frente, para o rio. Entrou cautelosamente na água, tenteando com os cascos. A profundidade foi aumentando, até chegar ao peito do homem. No meio do rio, sob o luar que era outro rio correndo, quem visse veria um homem atravessando a vau, com os braços erguidos, braços, ombros e cabeça de homem, cabelos em vez de crinas. Pelo interior da água caminhava um cavalo. Os peixes, acordados pelo luar, nadavam em redor dele e mordiscavam-lhe as pernas.
Todo o tronco do homem saiu da água, depois apareceu o cavalo, e o centauro subiu para a margem. Passou por baixo dumas árvores e no limiar da planície parou para se orientar. Lembrou-se de como o tinham perseguido do outro lado da montanha, lembrou-se dos cães e dos tiros, dos homens aos gritos, e teve medo. Preferia agora que a noite fosse escura, teria preferido caminhar debaixo duma tempestade como a do dia anterior, que fizesse recolher os cães e afastasse as pessoas para casa. O homem pensou que toda a gente naqueles arredores já devia saber da existência do centauro, que decerto a notícia tinha passado por cima da fronteira. Compreendeu que não podia atravessar o campo em linha recta, em plena luz. A passo, começou a seguir ao longo do rio, sob a protecção da sombra das árvores. Talvez adiante o terreno lhe fosse mais favorável, onde o vale se estreitava e acabava entalado entre duas altas colinas. Continuava a pensar no mar, nas colunas brancas, fechava os olhos e revia o rasto que Zeus deixara ao afastar-se para o sul.
Subitamente, ouviu um marulhar de água. Ficou parado, à escuta. O rumor repetia-se, diminuía, voltava. Sobre o chão coberto de erva rasteira, os passos do cavalo soavam tão abafados que não se distinguiam entre a múltipla e tépida crepitação da noite e do luar. O homem afastou os ramos e olhou para o rio. Na margem havia roupas. Alguém tomava banho. Empurrou mais os ramos. E viu uma mulher. Saía da água, completamente despida, brilhava sob o luar, branca. Muitas outras vezes o centauro vira mulheres, mas nunca assim, neste rio, com esta lua. Outras vezes vira seios oscilando, o tremor das coxas ao andar, o ponto de escuridão no centro do corpo. Outras vezes vira cabelos caindo para as costas, e mãos que os lançavam para trás, gesto tão antigo. Mas a parte que lhe cabia do mundo em que as mulheres viviam, era só a que satisfaria o cavalo, talvez o centauro, não o homem. E foi o homem que olhou, que viu a mulher aproximar-se da roupa, foi ele que rompeu por entre os ramos, correu para ela no seu trote de cavalo e depois, ao mesmo tempo que ela gritava, a levantou nos braços.
Também isto fizera algumas vezes, tão poucas, em milhares de anos. Acto inútil, apenas assustador, acto que poderia ter deixado atrás de si a loucura, se isso mesmo não aconteceu. Mas esta era a sua terra e a primeira mulher que nela via. O centauro correu ao longo das árvores, e o homem sabia que mais adiante pousaria a mulher no chão, frustrado ele, apavorada ela, mulher inteira, homem por metade. Agora um caminho largo quase tocava as árvores, e adiante o rio fazia uma curva. A mulher já não gritava, apenas soluçava e tremia. E foi então que se ouviram outros gritos. No virar da curva, o centauro foi parar a um pequeno aglomerado de casas baixas que as árvores escondiam. Havia gente no pequeno espaço em frente. O homem apertou a mulher contra o peito. Sentia-lhe os seios duros, o púbis no lugar em que o seu corpo de homem se recolhia e se tornava peitoral de cavalo. Algumas pessoas fugiram, outras atiraram-se para a frente, e outras entraram nas casas e saíram com espingardas. O cavalo levantou-se sobre as patas traseiras, encabritou-se para as alturas. A mulher, assustada, gritou uma vez mais. Alguém disparou um tiro para o ar. O homem compreendeu que a mulher o protegia. Então, o centauro ladeou para o campo aberto, fugindo das árvores que poderiam embaraçar-lhe os movimentos, e, sempre com a mulher agarrada, contornou as casas e lançou-se a galope pelo campo fora, na direcção das duas colinas. Atrás de si ouvia gritos. Talvez se lembrassem de persegui-lo a cavalo, mas nenhum cavalo podia competir com um centauro, como fora demonstrado em milhares de anos de fuga constante. O homem olhou para trás: os perseguidores vinham longe, muito longe. Então, segurando a mulher por baixo dos braços, olhando-a em todo o corpo, com todo o luar despindo-a, disse na sua velha língua, na língua dos bosques, dos favos de mel, das colunas brancas, do mar sonoro, do riso sobre as montanhas:
— Não me queiras mal.
Depois, devagar, pousou-a no chão. Mas a mulher não fugiu. Saíram-lhe da boca palavras que o homem foi capaz de entender:
— Tu és um centauro. Tu existes.
Pousou-lhe as duas mãos sobre o peito. As patas do cavalo tremiam. Então a mulher deitou-se e disse:
— Cobre-me.
O homem via-a de cima, aberta em cruz. Avançou lentamente. Durante um momento, a sombra do cavalo cobriu a mulher. Nada mais. Então o centauro afastou-se para o lado e lançou-se a galope, enquanto o homem gritava, cerrando os punhos na direcção do céu e da lua. Quando os perseguidores se aproximaram enfim da mulher, ela não se mexera. E quando a levaram, embrulhada numa manta, os homens que a transportavam ouviram-na chorar.
Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventada do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem voo e percorressem toda a região. O centauro procurava os caminhos mais escondidos, mas ouviu muitas vezes ladrarem cães, e chegou, mesmo, sob o luar que já esmorecia, a ver grupos de homens que batiam os montes. Toda a noite o centauro caminhou, sempre para o sul. E quando o Sol nasceu estava no alto duma montanha donde viu o mar. Muito ao longe, mar apenas, nenhuma ilha, e o som duma brisa que cheirava a pinheiros, não o bater da onda, não o perfume angustioso do sal. O mundo parecia um deserto suspenso da palavra povoadora.
Não era um deserto. Ouviu-se de repente um tiro. E então, num arco de círculo largo, saíram homens de detrás das pedras, em grande alarido, mas sem poderem disfarçar o medo, e avançaram com redes e cordas e laços e varas. O cavalo ergueu-se para o espaço, agitou as patas da frente e voltou-se, frenético, para os adversários. O homem quis recuar. Lutaram ambos, atrás, em frente. E na borda da escarpa as patas escorregaram, agitaram-se ansiosas à procura de apoio, e os braços do homem, mas o grande corpo resvalou, caiu no vazio. Vinte metros abaixo, uma lâmina de pedra, inclinada no ângulo necessário, polida por milhares de anos de frio e de calor, de sol e de chuva, de vento e neve desbastando, cortou, degolou o corpo do centauro naquele preciso sítio em que o tronco do homem se mudava em tronco de cavalo. A queda acabou ali. O homem ficou deitado, enfim, de costas, olhando o céu. Mar que se tornava profundo por cima dos seus olhos, mar com pequenas nuvens paradas que eram ilhas, vida imortal. O homem girou a cabeça de um lado para o outro: outra vez mar sem fim, céu interminável. Então olhou o seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.


Excerto do Conto "O Centauro", de José Saramago, In Objecto Quase

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