quarta-feira, 30 de junho de 2010


O Padeiro Anarquista

Sem mais nem menos, a casa despejou-o na rua, a correr. Estava atrasado, de facto. Correu muito e depressa; tal como quem precisa de correr muito — por ter pressa, naturalmente. O boné queria desertar, que estas modernices das velocidades não lhe agradavam. Não fora, enfim, a vetusta e assaz limitadora idade do homem, que o impedia de correr tanto e com tanta pressa como se impunha face à pressa que tinha, e o infiel boné teria mesmo ficado para trás, refastelado no chão, a ressonar como uma ignóbil cartola fanfarrona.
O homem corria, o boné resmungava. De repente, o homem parou. O boné silenciou-se, expectante, perscrutando indícios de convergência na sua pretensão de preguiça. “Grande merda! Esqueci-me do pão. Trouxe o saco vazio. Há que voltar para trás”. Agora movia-se ainda mais veloz, porque tinha ainda mais pressa. Afinal, será que um padeiro que se esquece do pão é um padeiro que se preze? — indagou-se. E enquanto cozia estes modestos pensamentos, a viagem fez-se, mas não em tão pouco tempo como ele gostaria, dada a pressa que tinha.
Discutiu e praguejou mundanices, mas por fim a casa lá deu a porta a torcer e cedeu, deixando-se uma vez mais inocular pela chave, pobre rapariga, conspurcada e infectada de cada vez que saía à rua. Sem desperdiçar tempo, avançou presto para a casinha do forno com a intenção de, em escassos segundos, pegar no pão, pô-lo no saco e voltar a sair porta fora.
“Grande merda! Mas onde é que eu o pus?!?”. Na verdade, não sabia, e havia razões para não saber: depressa se lembrou — porque tinha muita pressa, cada vez mais, esclareça-se — que não tinha feito pão. E o céu estava há momentos em trabalho de parto, já se viam os primeiros cabelos do Sol. Nascia rapidamente. Mas sem pressa, que o Sol nunca tinha pressa de manhã.
O pobre padeiro, a correr, com muita, muita pressa, juntou os ingredientes no bom-velho alguidar de barro; amassou-os; deixou-os levedar depressa, porque tinha tanta pressa, tanta pressa, e não queria que faltasse um pão sequer nas mesas da aldeia. Que era para isso que ele ali estava, há tanto tempo, na aldeia. “Grande merda! Ainda não acendi o forno. Já devia estar quente e ainda nem cá estão as vides. Bem verdade é que quanto mais depressa mais devagar”. Mas o forno lá se acendeu, ainda estremunhado, e o seu secretário, o fogo, lá começou a escrever à máquina sobre molhos de vides e magros pedaços de madeira. Enquanto dactilografava, apareceram os primeiros candidatos para a entrevista de emprego, ansiosos por virem a preencher a vaga aberta para o lugar de pão. Simples porções de massa amalgamada envoltas em farinha, os moçoilos de tez pálida lá iam ganhando coragem ante o seu interlocutor, majestoso fogo, que os inquiria, minucioso, severo, em cada milímetro. Por fim, abrindo os braços, algo paternal, lá os deixava sair, alimentando esperanças de que tinham boas possibilidades de serem aceites e que aguardassem por um contacto nos próximos tempos.
O homem despejava os pães para o saco, ainda a escaldar de excitação, num ápice. Que estava desesperado com tanta pressa e a manhã já ia quase a meio. Reunira, finalmente, tantos pães quantos precisava, mais coisa menos coisa. Abriu a porta, com pressa, que estava quase a sucumbir a tanta pressa.
Nessa altura, contudo, apercebeu-se de algo estranho: o melancólico sino da aldeia entoava badaladas repetidas, chamando o povo para a missa. “Grande merda! Pois claro! Que grande burro que sou! Hoje é Domingo, porra!”. Ontem fora sábado, amanhã talvez segunda-feira. E eis pão de hoje. Feito a correr, mas não à pressa, apesar da enorme pressa que o padeiro teve. Teve, que agora já não a tinha. Acabou. Já não tinha mais pressa. Voltou para o forno, deixou-se adormecer. Despertou a meio da tarde. Para não deixar passar a folga em branco abriu uma garrafa de vinho especial. E fez uma açorda.

Bill Engates

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