sexta-feira, 25 de junho de 2010
Para Lucinda Gray
Psico-Portrait (ou o que ela teria dito se houvesse escrito este texto)
Naquela casa branca da lagoa respirava sempre o ar que era o meu. Respirava sempre oprimida contra o mundo, sempre contra tudo – contra esta lagoa, contra esta ilha, contra este mar, contra mim mesma. Sempre eu, contra toda a corrente: água e terra e fogo, todos contra todos. Sempre eu, a sós comigo, a ter de vencer muros e marés, estendendo o olhar para além dos prados limitados, quadrados verdes vivos com muros negros, num horizonte de verde manchado, sem fundo nem distância. O longe e a distância restam prenhes de significados quando o nosso horizonte se abate sempre sobre a mesma linha do mar em todas as direcções, num dia os barcos vão, num outro voltam, sempre um ponto que cresce ou mingua, lá ao fundo na paisagem.
Estava só, quase só, apenas eu entre mim e eu, estabelecendo ténues teias de contacto com o mundo: soprando um insecto, tocando uma flor, pisando as ervas, uma palavra ou duas aos que vivem comigo. A solidão mede-se pela capacidade de sairmos de nós, de nos envolvermos com o mundo, sem que ele se envolva connosco em identidades obscuras.
Por isso, In ilo tempore preferia estar só. Não se trata de resolver aqui, se gosto ou não gosto de estar só, já expressei por escrito, aliás, a minha preferência por estar só. Não me quero contradizer, mas já vos disse também que estar só não é obrigatoriamente só. Comigo viviam fantasmas ciclopes, monstros inimagináveis que transportava para todo o lado, numa sacola de estudante que trazia breve a tiracolo.
Comigo vivia eu e um mundo lá fora, onde tinha de ir comprar barato o conforto enganador de um mero cigarro, mover-me sem falar, dizer apenas a audácia de uma única palavra com um único objectivo, ou apenas um gesto estereotipado e cumplíce de dois dedos esticados com as polpas sobre os lábios. Nesse momento uma das minhas asas de solidão roçava delicadamente no topo mundo, que rodava à velocidade da minha impaciência – uns dias turbilhão, outros dias roda de mó lenta a arrastar o grão. Comigo viviam marés mansas e vagas tão poderosas, imagens tão fortes, que eram temidas pelos homens e pelas baleias, que fogem até ao fundo do mar para se acoitarem das tempestades e dos homens.
Quando abria a janela da minha alma, a rua estava fria como as casas por fora, sempre com o céu a desabar estilicídios contínuos sobre as cabeças torturadas. O mundo era uma cela fechada, vista de fora para dentro, um pequeno compartimento acanhado visto da imensidão do meu recolhimento. O mundo ia mudando de cada vez que abria a janela e o ontem nunca era igual ao amanhã. O mundo ia ficando cada vez maior. O tempo estava cada vez mais largo. Sabia que ainda não podia sair de mim e entrar naquele mundo, tinha de esperar para crescer e deixar crescer o tamanho do mundo.
Estava quase a chegar a primavera, digo isto pelas contas do tempo, porque o sol não chegara ainda para temperar os dias. Às vezes, quando sufocava ali fora fechada e isolada do interior do mundo, sentia ganas de voar, de abrir a janela mais alta de todas a quimeras que construí e saltar desamparada sobre o mundo. Este pensamento perseguiu-me durante todos os sonhos, passou a visitar-me na realidade de todos os dias, depois tomou o tempo de todas horas, tornou-se cada vez mais presente no meu mundo, até que tomou completamente conta de mim.
“Um dia, enchi o peito de ar, cobri-me com um xaile e sai para a rua. Quem me poderia impedir?”
L.G.
Joshua M.
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