quinta-feira, 1 de julho de 2010


Flashback

Não há nevoeiro. O dia é de sol mas está fresco porque ainda é cedo. Sou muito mais novo, vestido com calções, t-shirt e sapatilhas sem meias. Dei por mim sentado num banco de cimento na estação de Campanhã, com a toalha de praia a fazer de cachecol, todo encolhido, à espera do comboio para Espinho. Levanto-me e vou para o princípio da plataforma, onde o sol já queima, para me aquecer. Encho os pulmões de luz enquanto penso num plano para te trazer ao mundo. Talvez aconteça hoje, na praia, num jogo de cartas onde tenhamos que piscar o olho um ao outro, ou então, surgirás de uma troca de palavras inocentes, durante a indecisão de mergulharmos ou não na água gelada.
De volta à estação, as mães e os filhos, armados de baldes e pás, levantam-se da longa fila de assentos, animados com a chegada do comboio. Ainda não se vê mas já se anuncia no zumbido dos carris. Levo a mão ao bolso, para confirmar não ter perdido nada. Viajo leve; sem carteira, sem comida; um bilhete de ida e dinheiro suficiente para a viagem de volta.
O comboio está à pinha. Percorro as carruagens repletas de férias, raparigas bonitas mais despidas do que é costume, toalhas aos ombros, cestas entre pernas, as gargalhadas incontidas de um menino a brincar com o chapéu do avô. Procuro um lugar para me sentar. Na carruagem da frente, descubro três turistas estrangeiras a partilharem dois bancos, frente a frente. Sento-me no lugar vazio junto à janela, virado para a cabina do maquinista. A pele das coxas descobertas arrepia-se com a napa gelada do assento. Olho para a janela, para outro comboio a arrancar da estação, com a sensação de estarmos nós a avançar. Mais um pouco e é a nossa vez. Um ligeiro empurrão e arrancamos decididos, rumo às praias.
Não esperem que meta conversa com as personagens loiras. Numa outra história perguntarei de onde são e se estão a gostar da minha cidade, ao que a mais baixa responderá que sim e que são holandesas. Lancharemos todos no dia seguinte.
Adoro andar de comboio. Adoro o bater das rodas nas junções mal acabadas dos carris. Tam-tam, tam-tam, tam-tam. A luz rasante do sol nascente enche de brilho o alumínio da janela, os cabelos loiros da Joyce, a paisagem rápida nos meus olhos. A vida acelerou... Tam-tam, tam, tam.. Gaia, Madalena, Francelos, Aguda, Granja. Tam-tam, tam-tam, tam-tranc.. Não bateu certo. O som não bateu certo.. O comboio trava apressadamente antes do tempo, na recta a seguir ao grande hotel. A carruagem inquieta-se. Não é uma paragem que se faça, assim tão perto da praia, ainda distante da estação para que possamos ir a pé. As crianças sentadas ao colo, perguntam às mães o porquê de tamanha injustiça, apontando para o areal no horizonte. As turistas holandesas, trocam palavras arranhadas, sem saber o porquê. Posso jurar que o som há pouco não era de ferro a bater em ferro. Abre-se a porta do maquinista. Descobrimos que é branco. Um branco demasiado branco para ser vida. O senhor da camisola com um símbolo da CP, olha para nós a pedir perdão, a chorar, horrorizado com a imagem de uma menina a correr atrás de um cão, para o salvar de ser atropelado. Ela não se salvou. O maquinista mantém-se quieto, de pé no lugar da porta, ajoelhado a explicar-se, desculpando-se com a máquina infernal, imparável, que ele não conseguiu dominar a tempo. Talvez nem queira dizer nada com aquilo. Talvez o faça para ocupar a cabeça, empurrando para longe o filme da figura franzina a correr cega na boca do inferno, até desaparecer no enorme vidro para os meus ouvidos, naquele tranc nada misericordioso.
O meu lugar também não é fácil, a suar frio, petrificado pelo som, envolto em gritos de outros passageiros, a imaginar as mães nas minhas costas apertarem os braços dos filhos, cheias de dor pela dor de outra mãe - Meu rico filho!!
Levanto-me, fingindo-me forte, e salto para a gravilha grossa.
(Não olhes para trás.. Não faças isso.. Não queiras ver a multidão à procura do que restou. Um cão à procura da dona, a pedir-lhe desculpa, a cheirar pedaços demasiados pequenos para segurar-lhe na trela. Não olhes para a roda de ferro.. O som dos ossos a serem triturados, espalhados em mil partes ao longo dos barrotes queimados, manchados de sangue. Não olhes para a frente do comboio... Não queiras imaginar o medo nos seus olhos, perante aquela parede de aço demasiado alta para ser um engano.)
Salto da linha de comboio para as dunas que não devo pisar; para a praia, de sapatilhas nas mãos; para a areia húmida, os pés na água, a pensar num outro plano para te trazer ao mundo, que este não funcionou. Não resisto olhar para trás, para o rasto de pessoas que me persegue, prontas para mais um dia de férias.
O comboio continua parado, deserto de ideias, envergonhado por não saber fazer mais nada que não seja andar para a frente, ao sabor das pessoas.

Dedicado a ti,
Menina sonhada, a quem não tive tempo de pintar um rosto, nem dei um nome.
 
 
DuArte

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