quarta-feira, 20 de outubro de 2010


Onirismo envelhecido

Gosto de olhar o tempo, dizia. Agosto ainda ia a meio e já esperava a chuva. Amanhã chuvisca, dizia, e nem uma nuvem no céu. O certo é que de tanto crer realmente assim acontecia. Era velho, a pele encarquilhada, o olhar fixava pontos que mais ninguém via, a boca entreaberta no alegre espanto inocente da infância. O seu corpo era clausura para uma alma jovem, quase infantil, quase imatura, passando anos em rugas mas nunca em envelhecimento. Porque é só na alma que se envelhece, não no corpo. O corpo é mero vasilhame contendo riachos de corrente brava.
Anos atrás disse-me ter medo de envelhecer. Um temor no seu olhar, como criança que se esconde do escuro a toda a volta. Um terror de ver a vida afunilar em linhas esguias de íngremes subidas. Nesse dia apeteceu-me abraçá-lo, dizer-lhe que a sua alma nunca morre, como nunca morrerá dentro de mim.
Anos atrás, como ontem, um olhar embevecido fitando o céu e tudo o que ele lhe lembra como quem contempla a sétima maravilha do mundo, o santo graal, o elixir da longa vida. Anos atrás, em aventuras desmedidas, saltitando em gargalhadas mais ou menos auto-centradas, sempre vivas, nunca descrentes, nunca adultas.
Hoje, perdido dentro de si, sem consciência do mundo, vivendo o tempo que acredita mudar com as suas mãos. E muda mesmo. Dentro de mim o tempo muda, faz-me sorrir, de cada vez que na sua mente o sol torna a brilhar.


Virginia Machado

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